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Hiram Reis e Silva

Rondon e o cachorro Caí


Rondon e o cachorro Caí - Gente de Opinião 

 
 
“É o melhor amigo do homem”, diz a máxima popular.
É mesmo de se pensar: será o ser humano capaz
de fazer o que ele faz? De ser leal, companheiro,
de se entregar por inteiro em função de uma amizade?
Um sentimento me invade ao lembrar o seu fim derradeiro.
(José Itajaú Oleques Teixeira)

 

Por Hiram Reis e Silva 

 

- Campanha Sertanista - Última Fase
 
De 1915 a 1919, última fase de sua grande campanha sertanista, inaugurada com o descobrimento do Juruena, consagra Rondon seus esforços ao levantamento geográfico de pontos e regiões importantes de Mato Grosso. Finalmente, a Carta de Mato Grosso e Regiões Circunvizinhas ficou pronta, conseguindo dar sintética e condigna representação a todo o sistema de itinerários topográficos realizados sob a sua direção ou superintendência. Para isto tivera que, à medida que elaborava a representação dos levantamentos sertanejos, interpretá-los geograficamente, a eles reunindo o resultado de longas pesquisas em arquivos do Brasil e do estrangeiro, revivendo explorações esquecidas ou inaproveitadas, juntando dados modernos, de tal forma que, pode-se dizer que a carta, bem atualizada, sintetiza duzentos anos de cartografia. Em 1919, ao ser chamado ao Rio pelo Ministro da Guerra, Pandiá Calógeras - Governo Epitácio Pessoa - Rondon, que perdera tantos companheiros na selva, levava a tristeza de uma nova perda, a do seu Caí, seu inseparável companheiro (...)”. (Coutinho)
 
- O Fiel e Inseparável Caí
 
Mas foi nesse período que perdi meu pobre Caí, meu fiel e inseparável companheiro de sertão durante quatro anos, isto é, toda a sua vida, porque aos quatro meses partiu comigo.
 
À tardinha do dia 2 de junho (1919) veio ainda me receber, embora já andasse doente, saltando para a canoa onde eu estava - teve então a primeira síncope. Tentou, ainda assim, carregar o meu chapéu, o que fazia sempre, quando eu chegava. Porque era um cão excepcionalmente inteligente, um pointer de rara beleza. Meu nobre Caí! Admitindo minha superioridade, não te consideravas, entretanto escravo. Era voluntária a tua submissão e teus olhos, quase humanos, viam em mim um deus, um rei, acima de tudo justo, capaz de conhecer todos os teus pensamentos para, de ti, só exigir aquilo que te conviesse.
 
Por teu lado, lias o que se passava em mim, compreendias minha disposição de ânimo, conservando-te horas a meu pés, imóvel se me vias ocupado. E, se me sentias triste, vinhas encostar tua bela cabeça, olhando-me como se dissesses: ‘Não te aflijas, aqui estou eu, o teu verdadeiro amigo, pronto para substituir todos os teus amigos que falharem, para combater todos os teus inimigos. Vamos dar um passeio e não penses mais. Eu não costumo pensar...’ Tudo isso acompanhado de expressivo movimento de cauda...
 
Meu Caí, mais humano do que muitos humanos! Disse-me, uma vez, um índio(1) que nos acompanhava depois de muito observá-lo:
 
- Meu Coronel, Caí não é cachorro!
- Que é ele, então?
- Caí é... gente...
 
E que precioso auxiliar, como guarda do acampamento, carregando a caderneta com inexcedível zelo, indo buscar o que se lhe pedia, encontrando, com seu admirável faro, as fichas que, durante a medição, caíam entre as folhas secas.
 
Perdera-se, certa vez, uma caderneta. Chamei-o e, segurando-lhe a cabeça pelas orelhas, olhei-o bem nos olhos e ordenei repetidas vezes, com voz firme:
 
- Caderneta, Caí, busca!
 
Daí a dois dias voltava ele com a caderneta na boca. Não admitiu que ninguém lhe tocasse. Correu para mim, deitou sua grande cabeça no meu colo, a me fitar amorosamente, a solicitar os afagos que lhe não foram regateados...
 
Morreu quando terminamos nossos trabalhos, quando não mais corríamos perigo e eu não tive a alegria de lhe proporcionar vida sossegada na chácara onde sonhava viver com os meus, com a minha bicharada...
Vida que não estava muito longe, porque eram meus últimos esforços no sentido de minha completa emancipação da vida do mato...
 
Enterramo-lo no último dia de serviço da expedição, no porto do antigo fortim da Conceição, debaixo de três grandes loureiros cuiabanos...” (Viveiros)
 
(1) Kierton, da etnia Barbados, que depois viveria com ele no Rio de Janeiro - como uma espécie de mordomo no seu apartamento de Copacabana.
 
Fontes:

VIVEIROS, Esther de – Rondon conta sua vida - Brasil, Rio de Janeiro, 1958 – Livraria São José.
 
COUTINHO, Edilberto – Rondon - o civilizador da última fronteira - Brasil, Rio de Janeiro, 1969 – Olivé Editor.
 
 
 
 
Fonte:
Coronel de Engenharia Hiram Reis e Silva
Professor do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA)
Acadêmico da Academia de História Militar Terrestre do Brasil (AHIMTB)
Presidente da Sociedade de Amigos da Amazônia Brasileira (SAMBRAS)
Site: http://www.amazoniaenossaselva.com.br

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