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Francisco Matias

USINA DO JIRAU, O POMO DA DISCÓRDIA


Por Francisco Matias(*)
 

1. A construção do Complexo Madeira tem seguido um ritual inusitado para os padrões de desenvolvimento socioeconômico e sociopolítico de Rondônia, da megarregião Norte e, por extensão, da Amazônia Ocidental, neste início de milênio. Considere-se, para simples compreensão desta análise inicial as transformações econômicas, sociais e políticas que estão ocorrendo no município de Porto Velho, nas áreas dos distritos de Jacy-Paraná e Mutum-Paraná e, sobretudo, do distrito-sede, a cidade de Porto Velho, por conta  do aporte de centenas de empresas e milhares de pessoas em busca dos recursos que estão sendo derramados sobre a economia regional, algo em torno de 70 bilhões de reais. Aproveite-se e considere-se também a ocorrência de graves problemas sociais e ambientais, com ênfase aos impactos sobre o meio ambiente e, note-se, sobre a própria sociedade porto-velhense. Tudo isto somado, tem-se como resultado uma gama de problemas que somente serão mensurados ao longo do tempo. Destarte, poucos estão percebendo que as obras das usinas do Madeira guardam, por sua dimensão e complicações sociais, um paralelo com a construção da ferrovia Madeira-Mamoré, do início do século passado.

 2. Atualmente, estão sendo construídas duas usinas hidráulicas, como parte das cinco que compõem o Complexo Madeira. A primeira, a de Santo Antonio, tem como holding o consórcio Santo Antonio Energia Civil, CSAC, e a segunda, situada a 150 km à montante da primeira, é denominada Usina do Jirau e tem a holding Energia Sustentável do Brasil,ESBR, à frente. E aí está o Pomo da Discórdia. A Usina do Jirau é problema desde sua denominação. Senão vejamos: enquanto a Usina Santo Antonio está localizada na cachoeira de Santo Antonio, a do Jirau não está no Salto do Girau como bem deveria estar e foi projetada inicialmente. Por razões geopolíticas e diplomáticas e por envolver a faixa de fronteira Brasil-Bolívia, seus construtores foram obrigados a deslocar o empreendimento a seis km à jusante do Salto do Girau, localizando-a na Cachoeira Caldeirão do Inferno, ou Perdidos, precisamente na Ilha dos Padres, o que causou atraso para o início das obras. Logo, a Usina do Jirau não é no Girau, apesar de manter a denominação original. Não ficaria bem Usina do Caldeirão do Inferno. Ou ficaria?

 

3. Na conjuntura atual ficaria. Na verdade, a obra está mais para Caldeirão do Inferno, ou Perdidos, do que para Jirau. No dia 16, deste mês, quarta-feira, o caldeirão explodiu. De novo. Mais uma vez a Usina do Jirau faz juz ao lugar onde está sendo edificada. Um verdadeiro caldeirão do inferno. Nada menos que 54 ônibus foram incendiados pela turba que resolveu queimar também seus próprios alojamentos. O posto bancário foi saqueado, dos dez caixas eletrônicos dois foram arrombados. Sem saída viável, o consórcio teve de despejar mais de 20 mil trabalhadores desalojados emergencialmente. A maioria foi enviada em 300  ônibus para a cidade de  Porto Velho e outros ficaram “perdidos” – nada a ver com a cachoeira – nas vilas de Nova Mutum e Jacy-Paraná. Na tarde-noite do dia 17, quinta-feira, a vila de Jacy-Paraná parecia uma cidade fantasma com milhares de zumbis zanzando de um lado para outro, o comércio fechado e a BR 364 tomada por centenas de veículos conduzindo populares e comerciantes em fuga. Na mesma noite, a cidade de Porto Velho recebia os peões que, qual judeus errantes, buscavam um lugar para dormir e comer. As obras foram paralisadas e os canteiros eram só desolação e fumaça. O caos instalou-se de mala e cuia no Jirau. Só faltaram os “donos”, imitando os diretores da Madeira-Mamoré, de 1931, embarcarem em navios e partirem rumo ao poente. O último a sair apague as luzes.

 4. Não se sabe muito bem o que está em jogo ou o que deflagrou o processo destruidor. Pergunta-se: foi interesses do consórcio ou dos trabalhadores? De todo modo, não foram apresentadas reivindicações trabalhistas, além dos reclamos naturais por perdas de algumas conquistas compensatórias retiradas dos holerites por medida de economia, dentre as quais as horas-extras. Ah!, as “horas-extras”, como fazem falta no pagamento dos peões que vêm de longe pensando muito mais no dinheiro-extra do que no salário. De repente, some do contra-cheque o valor agregado por muitas horas de serviço a mais e o saldo fica menor.... Mas, só isso seria motivo suficiente para tanta violência e vandalismo?

5. Mas, paira outra dúvida no ar. O consórcio ESBR requereu do BNDES um grande aporte de recursos para cobrir despesas com custos operacionais da obra e deixou transparecer que houve falhas na contabilidade que feriram profundamente o orçamento inicial. O reflexo disso recai sobre a mão de obra que recebe o pagamento mais magro no final do mês. Dinheiro curto, insatisfação plena. Mas não deve ser isso. Pode-se aventar, a grosso modo, que existam questões políticas a permear o quadro. Um dos manda-chuva do Jirau em entrevista a uma emissora de TV local, disse que estranhou uma mensagem que recebeu, ou alguém teria recebido pelo rádio, que dizia mais ou menos assim: “ou atende nossas reivindicações ou vamos cumprir nossa missão por aqui”. “Cumprir nossa missão” não é linguagem de peão de trecho. É bem mais esmerada, ideológica e trabalhada. Se for verdade, pode-se imaginar que existe uma conotação não-trabalhista nesta coisa toda, com forte tendência político-ideológica. Será que foi isso?

6. Em meio aos escombros emergem a dúvida, a desinformação e os interesses não- confessáveis. Comenta-se que o próprio consórcio teria interesse em paralisar as obras e, desta forma, fazer pressão junto ao governo federal para viabilizar e agilizar a liberação dos recursos que tanto precisa. Mas isto pode não passar falácia para por mais brasa no caldeirão e muita água na fervura. Contudo, obra parada não rende dividendos políticos e deixa uma massa de desempregados cuja imagem e ações podem causar os piores transtornos sociais, e ninguém quer isso. Seja como for, o caso é grave o bastante para o governo mobilizar seu aparato de segurança, envolvendo PM, Polícia Civil, Polícia Federal, Guarda Nacional, ABIN e o Exército e, por outro lado, o movimento sindical do país deslocar alguns diretores para verificarem in loco a situação. O quadro geopolítico é mais grave ainda e faz lembrar o fechamento da BR 364 de alguns meses atrás (que já houve neste episódio), aliado a desemprego, desabastecimento, desalojamento, ameaça de saques, instabilidade social, descumprimento das leis trabalhistas, atrasos no cronograma da obra, aumento do custo final e outras mazelas que, querendo ou não, estão no olho do furacão. Melhor dizendo, no fundo do Caldeirão.  

 

Na outra ponta da linha, melhor dizendo, na outra curva do rio, o CSAC registrou mobilizações grevistas em Santo Antonio e resolveu paralisar as obras na sexta-feira. Pode ser mais um caldeirão pronto para explodir, desta vez, no último acidente hidrográfico à jusante do rio Madeira.

PS – Até o fechamento desta página não havia ocorrido saques em Porto Velho, apesar dos boatos que levaram os comerciantes, desesperados, a baixar suas portas

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Fonte: Francisco Matias - Historiador e analista político

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