Por Francisco Matias(*)
1. A minissérie Amazônia traz de volta alguns dos principais aspectos da formação histórica da Amazônia, de um modo geral, e, em particular, do Acre e de Rondônia. Mostra às populações atuais como era a vida dos primeiros acreanos e rondonienses. Pode até conter imperfeições históricas ao misturar ficção e realidade nos tempos em que os seringais ditavam os rumos e as leis da vida e da morte. Não apenas isto. A autora Glória Perez faz ressurgir com sua devida dimensão à figura do espanhol Luiz Galvez Rodriguez y Arias, o homem que fundou a República Independente do Acre, um país dentro de outro país, no dia 14 de julho de 1899, na sede do seringal Volta da Empresa, às margens do rio Acre. Disse Galvez: “A pátria brasileira não nos quer”. “Portanto, não podendo ser brasileiros, os acreanos não aceitam tornar-se bolivianos”. E assim, ele proclamou e fundação de um país da borracha, em plena selva, contrariado, inclusive, àqueles que lhe davam apoio político, bélico e logístico. A solenidade, na manhã de uma sexta-feira mormacenta, foi prestigiada por mais de 1.500 pessoas e “a festa durou até às seis da tarde”, como estampou na primeira página o jornal Diário de Notícias, de Manaus, edição de 24 de agosto daquele ano.
2. Mas, outros aspectos são mostrados como muito realismo, dentre os quais destaca-se a ausência de mulheres nos seringais, exceto uma ou outra família. Este era um dos piores tormentos para os seringueiros da Amazônia, e não apenas do Acre: a solidão. Não apenas a solidão social que as distantes “colocações” infligiam, mas a solidão sexual, o que levava muitos seringueiros a praticarem sexo até com “pelas” de borracha e, pior ainda, raptarem mulheres índias, acirrando o crônico conflito do seringal com as populações indígenas. Mas o sistema percebeu a gravidade do problema que o isolamento causava e criou uma espécie de confraternização a cada trimestre. Uma festa na sede do seringal onde os rudes homens dançavam uns com os outros. A festa ficou conhecida como Cavernada, na qual tudo podia acontecer. Imagine-se homens curtidos pela solidão e pela floresta inclemente, sem o contato sexual com mulheres, regados a muita cachaça, dançando juntos, uma deles fazendo o papel da mulher. Invariavelmente, havia brigas entre seringueiros, muitas vezes, com assassinatos, por conta do velho costume nordestino de pedir “uma parte na dança”. Ou seja: em plena dança, o seringueiro queria tomar “a dama” do outro. Quando não era aceita a proposta, o pau cantava. Homem brigando por homem na Cavernada, dançando e morrendo na solidão dos seringais.
3. Outro aspecto mostrado e pouco notado diz respeito à figura marcante do jagunço e sua Winchester 44, a lei maior do seringal. O “artigo 44”, representado pela figura do matador, aquele que executava a ordem do patrão sem pena nem dó. O “artigo 44’ referia-se ao calibre do rifle Winchester, norte-americano, de repetição, doze tiros, utilizado em várias situações. A mais comum era na prestação de contas anual, quando o seringueiro mais cuidadoso tinha saldo a receber em dinheiro. Muitas vezes ele nem saía da sede do seringal. Em qualquer ponto da floresta estava o jagunço para lhe aplicar o artigo 44 bem no meio do peito. E não era só isso. Havia seringueiros que roubavam as “pelas” de borracha para trocar por mercadorias nos regatões, ou roubavam tigelas de coleta de látex para vender em outro seringal. Também ocorria o “roubo” de mulheres dos próprios companheiros, atitude cobrada pela lei do seringal. Enfim, o jagunço foi companheiro de vida e de morte do seringueiro e, de certo modo, viveu os mesmo infortúnios, pois ele era algoz e vítima ao mesmo tempo do artigo 44.
4. Outro aspecto está relacionado à população seringueira. Nem todos eram nordestinos. A maioria, até pelas circunstâncias regionais e políticas, era nordestina. Mas havia a presença do negro escravo, de bolivianos, peruanos, turcos, judeus, árabes, europeus e norte-americanos. Os brasileiros vinham de toda parte, principalmente os patrões de seringais, guarda-livros e pequenos comerciantes. Havia ainda o tráfico de indígenas, notadamente índios paraguaios, bastante utilizados nos seringais do Acre e do Vale do Guaporé rondoniense. Havia os ricos, mas não a riqueza. O sistema era cruel. A única produção permitida era a da borracha, o resto era proibido. Por isso a terra não tinha valor. O seringal, através do barracão era um misto de atividade extrativista, industrial e comércio atacadista, onde se comercializava de tudo, inclusive mulheres. A figura poderosa do padre itinerante e os casamentos pelo rumo, faziam parte dos costumes que as longas distâncias entre as colocações seringueiras impunham aos primeiros povoadores da Amazônia. Assim eram os seringais. Assim viveram os primeiros acreanos e rondonienses.
Historiador e analista político(*)
Quarta-feira, 9 de outubro de 2024 | Porto Velho (RO)