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QUEM É IMORTAL?


                                                     Gente de Opinião             

Por William Haverly Martins
 

Em função dos vários telefonemas de confrades e dos e-mails recebidos, logo após minha fala no programa Viva Porto Velho da Rede TV, deste domingo, também reproduzida no site Gente de Opinião (Vídeo AQUI), resolvi explicitar minha posição sobre a imortalidade do autor, acadêmico ou não, lembrando pontos de vista já defendidos, quando escrevi o necrológio de José Saramago e discursei no plenário da AGL (Academia Guajaramirinense de Letras), por ocasião do aniversário de primeiro ano.

Sobre José Saramago: Ninguém morre após escrever 16 romances de boa lavra, além de poemas, peças de teatro, contos e crônicas. O paradoxal tempo nunca começou nem vai acabar para um autor que usou a arte literária para redimensionar o eu num mundo condicionado pelo capitalismo, pela cultura consumista e pela ética do dinheiro, um mundo que dita modas e modelos de comportamentos sociais, relegando sempre a um perigoso segundo plano os direitos do homem e o respeito ao próximo.

A morte foi, é e sempre será, na literatura, como na vida autoral, personagem secundária, coadjuvante, jamais protagonista, uma vez que é do autor ficcional as rédeas da temporalidade, e quando ele as solta, ao término de um trabalho, a obra adquire vida própria, imortal na arte que a criou, rivalizando-se com o autor, ao tempo em que o imortaliza.

Como é fascinante perceber Dom Quixote, medindo forças com Cervantes, contemplando os séculos, como se um dos vasos da ampulheta do tempo nunca se esvaziasse, despertando, na vida cognitiva das esquinas acadêmicas de outrora, perguntas oriundas da dubitação retórica: quem é imortal - o autor ou a obra?

Como separar o que está irremediavelmente junto, como questionar a coexistência de princípios indecomponíveis se não pensarmos a “obra”, como transcendência da criação, que adquiriu vida própria pela arte que a criou? Segundo Jung, a palavra criativa sempre transcende seu autor.

A verdadeira obra de arte literária, embora exista no universo das palavras, precisa do choque neuronal criativo para vir a ser, então, o literato abstrai-se de si mesmo, se descobre sectário de um panteísmo próprio, onde o criador, ao mesmo tempo, se identifica, mas não se confunde com a criação, permitindo multifaces ao eu artístico. Foi assim com os escritos dos heterônimos de Fernando Pessoa e, em outro patamar intelectual, também é assim quando o romancista se divide, mas não se confunde com o universo das aventuras de seus personagens, no fantástico e imortal mundo da criação artística.

Outra linha de pensamento defende que a obra literária é a um só tempo a criatura e o criador. É criatura enquanto expressão de quem a criou, é criador para cada um que a lê e recria, estabelecendo uma nova relação, sobrevivendo na mão de quem a manuseia e a transforma: o leitor tem o poder de mudar o ângulo de visão do autor, estabelecendo com a história narrada, com a poesia, ou com as personagens uma nova linha de relação, mediante uma interação própria.

Vale ressaltar que o autor como elemento constitutivo do fenômeno literário é importante, porém relativo: as obras anônimas não perdem, nem ganham por não haver dados referentes à autoria.

Compreende-se assim, que a instituição Academia, ao se tornar guardiã das obras literárias de seus membros, confere, por extensão metonímica, o certificado de imortalidade ao autor.

O crítico americano Harold Bloom, em seu livro Shakespeare A Invenção do Humano, afirma na página 522 que Hamlet – o Príncipe, mais que a peça – tornou-se um mito: de tanto falarmos dele, tornou-se figura lendária. “É impossível desmitificar Hamlet; vem de longuíssima data o seu misterioso fascínio. Entre os personagens ficcionais, Hamlet ocupa a posição correspondente à de Shakespeare entre os escritores: o centro do centro”.

Quem seria capaz de negar que obras do quilate de O Engenhoso Fidalgo D. Quixote Da Mancha, Memórias de Adriano, O Pequeno Príncipe, Crime e Castigo, Servidão Humana, O Velho e o Mar, Ulisses, Grande Sertão Veredas, Dom Casmurro e tantas outras alcançaram o nicho da arte no altar da perfeição, onde o autor é um personagem de outra dimensão, como se a obra adquirisse, pela arte, vida própria. Caminho que fábulas e histórias infantis já seguiram há muito tempo: palavras do meu neto – eu gosto da estória do Chapeuzinho Vermelho, mas não sei quem escreveu.

Não se trata da fetichização do livro, ou da obra de arte, mas da evidência de uma experiência profunda, da mesma natureza criadora do mito. A denotativa morte, um significado na insignificância, tão manipulada pela conotação literária, desce ao mundo da transitoriedade e extermina o ser material criador, entretanto não se apropria do fogo atemporal da criação artística transcendente, cala o homem, mas não tem poderes sobre a imortalidade da obra.


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Detalhes biográficos: baiano de nascimento, mas rondoniense de paixão, cursou Direito na UFBA e licenciou-se em Letras pela UNIR, é professor, escritor, presidente da ACRM – Associação Cultural Rio Madeira, ocupa a cadeira 31 e é o vice-presidente da ACLER – Academia de Letras de Rondônia             

* O conteúdo opinativo acima é de inteira responsabilidade do colaborador e titular desta coluna. O Portal Gente de Opinião não tem responsabilidade legal pela "OPINIÃO", que é exclusiva do autor.

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