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Projeto Memória



Por William Haverly Martins

Nunca gostei dos decorebas, aqueles que, vaidosamente, decoram datas para impressionar o entorno, que bom se todos os livros de história pudessem começar dizendo: Foi há muito tempo... Num tempo distante... Lá, onde Judas perdeu as botas, começa a nossa história... Os fatos, as palavras sempre disseram algo a mais que o positivismo incerto das datas. Entretanto, nos valemos da cronologia para não nos afastarmos da História, Ciência que não pode, como o poeta e o ficcionista gostariam, simplesmente jogar todas as datas num balaio e ignorar a sequência das conquistas civilizatórias. O tempo entre o Paraphysornis Brasiliensis e a nave Atlantis precisa ser escalonado, como se sobre a civilização existissem várias capas, correspondentes a evolução da humanidade. Cada capa retirada equivale a uma década, século, milênio, milhões de anos, tudo de acordo com a palavrinha mágica dos historiadores: pesquisa!

Pois bem, valendo-nos da pesquisa dos historiadores Abnael Machado de Lima, Yêdda Pinheiro Borzacov e Antônio Cândido da Silva, membros da Academia de Letras de Rondônia, relatamos as informações colhidas: no início da segunda década do século XX, um seringalista português, chamado João Soares Braga, construiu para residência, um vistoso sobrado. Edificado na ladeira Comendador Centeno, quase no topo de uma elevação de onde se tinha uma bela vista da cidade, tendo em primeiro plano a Praça Jonathas Pedrosa e parte da Avenida Sete de Setembro.

Quatro anos depois de construído, o sobrado foi negociado com Joaquim Augusto Tanajura, o primeiro intendente que era como se chamava o prefeito daquela época, para ser a sede própria da Intendência do Município de Porto Velho, ainda pertencente ao estado do Amazonas, nos idos de 1924. O prédio, com os juros acrescidos nas parcelas, custou mais de 20.000$000 (vinte mil contos de réis), valor bastante criticado pelos munícipes, diziam que a dívida faraônica não condizia com o sofrido passivo público.

Muita gente ainda se lembra dos paralelepípedos, aqueles blocos de granito com que se calçavam ruas, edificavam chafarizes, fortaleciam e enfeitavam a entrada de prédios públicos e residências pelo Brasil afora, acompanhando a moda dos arquitetos europeus. A Ladeira Comendador Centeno foi a primeira rua de Porto Velho a merecer o mimo dos pesados paralelepípedos, o calçamento ocorreu na gestão do prefeito Carlos Augusto Mendonça, no distante 1946.

Vejam então, rememorando nosso pequeno relato histórico, que, até aqui, já temos duas importantes conquistas que justificariam a reverência memorialista das nossas autoridades: primeira sede própria da Prefeitura e primeira rua calçada! Mas, tem mais...

Na década de sessenta ingressamos num período negro da história do Brasil, a famigerada Revolução de 64 estendia seus tentáculos ditatoriais direitistas aos distantes rincões de nossa Pátria. Curiosamente, talvez sensibilizado com a eloqüência libertária dos mitos amazônidas, ou rendendo homenagem à pátria democrática do todo poderoso Percival Farqhuar, ou querendo mostrar ao mundo que havia uma democracia no país, o então ditador/presidente da república, Arthur da Costa e Silva, assinou o Decreto-Lei nº 411, em 08 de janeiro de 1969, modificando a estrutura administrativa dos Territórios e concedendo-lhes uma Lei Orgânica. Por esta lei os municípios de Porto Velho e Guajará Mirim recebiam de volta um dos poderes essenciais ao exercício da democracia: o Legislativo.

O prefeito da época da nova lei orgânica dos territórios, Valter Paula de Sales, sensibilizado com o retorno da casa das leis e já com a prefeitura estabelecida no endereço atual, cedeu o prédio da Comendador Centeno, depois de reformas internas e na fachada, para sede da Câmara Municipal. Vale salientar que as câmaras municipais de Porto Velho e Guajará Mirim estavam fechadas desde 1930.

Os dois municípios dividiam, então, um imenso território. Começava um novo período no município de Porto Velho, que possuía um território maior do que alguns estados do Nordeste. Pipocavam, ali e além, novos distritos ao longo da BR 364, aberta no governo Juscelino Kubitscheck, ligando Rondônia, por terra, ao resto do país.

Durante os quinze anos em que funcionou na ladeira histórica, a Câmara Municipal de Porto Velho foi palco de discursos emblemáticos e de peleias memoráveis entre MDB e ARENA, envolvendo nomes importantes da sociedade rondoniense. Só para lembrar alguns: Dionísio Xavier, Antonio Leite da Fonseca, Antonio Serpa do Amaral, Inácio Mendes, Francisco das Chagas Teixeira, Osmar Vilhena, Cloter Mota, Paulo Struthos Filho, Abelardo Townes de Castro, Luiz Lessa Lima, Dilson Machado, Amizael Gomes da Silva, João Bento da Costa, Marise Magalhães Castiel e tantos outros.

Só os nomes citados já merecem a reverência do presente e do futuro. Nossa memória, já que não podemos preservar a vida insigne dos nossos antepassados, deve ser cultuada na preservação dos prédios e monumentos que simbolizam e representam o passado histórico cultural da nossa região. Sem memória não existe projeto de vida, identidade.

O prédio em tela, majestoso nas fotografias históricas em preto e branco e deprimente nas coloridas da atualidade, já foi sede do IBGE, do Corpo de Bombeiros, do Batalhão Feminino da Polícia Militar, da Estação Termoelétrica da Prefeitura e hoje, em ruínas, pertence à marginalidade, resistindo ao tempo, aos gritos de “respeitem a memória de nossa cidade” pela via das ações corajosas da ACRM – Associação Cultural Rio Madeira - que lá se instalou e vem trabalhando com o Ministério Público e a Fundação Iaripuna, no sentido da necessidade da restauração do prédio e revitalização do espaço, com vários Projetos Memória e outras atividades: Museu da Oralidade, Museu da Cidade, Auditório para Apresentações Culturais, Oficinas de Artesanato, Sede de Associações e tudo que seja necessário para que a esponja do esquecimento autoritário dos administradores da coisa pública, não consiga apagar nossa memória histórica, nem tumultuar elementos da formação da nossa identidade cultural.

Só para avivar a revolta de todos nós, o prédio em ruínas foi tombado pela Lei nº 1.099 de 26 de maio de 1993, sancionada pelo Prefeito José Guedes. Qual seria a pena ideal para políticos que descumprem a Lei de Tombamento Histórico, sugerimos a perda do mandato para o resto da vida, ou o degredo nas catacumbas do esquecimento dos eleitores. Publique-se e cumpra-se na forma da vontade da Sociedade Civil Organizada.


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Fonte: William Haverly Martins
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O autor é baiano de nascimento, mas rondoniense de paixão, cursou Direito na UFBA e licenciou-se em Letras pela UNIR, é professor, escritor, presidente da ACRM – Associação Cultural Rio Madeira e ocupa a cadeira 31 da ACLER – Academia de Letras de Rondônia.


 

* O conteúdo opinativo acima é de inteira responsabilidade do colaborador e titular desta coluna. O Portal Gente de Opinião não tem responsabilidade legal pela "OPINIÃO", que é exclusiva do autor.

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