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Dante Fonseca

Linguagem, cultura e sociedade e História colonial e narrativas orais do povo moré da Bolívia


Linguagem, cultura e sociedade e História colonial e narrativas orais do povo moré da Bolívia - Gente de Opinião

Será realizado entre os dias 26 a 30 de julho do corrente o VI Encontro Universitário Internacional sobre Linguagem, Cultura e Sociedade. O Encontro é promovido pelo Departamento Acadêmico de Ciências da Linguagem-DACL, do Campus Jorge Vassilakis, da Fundação Universidade Federal de Rondônia (Guajará-Mirim) e está sendo organizado pelas Professoras Mestres Rosa Maria de Lima Ribeiro e Janine Félix da Silva. O objetivo do evento é discutir os diferentes modos de ver a língua, objeto de estudo da linguística, bem como as diferentes vertentes de estudo da linguagem (linguística e literatura), com trabalhos nas linhas de pesquisa indigenista, africanista, amazônica, também voltados para a aplicação pedagógica, constantes no CEPLA: Centro de Pesquisas Linguísticas da Amazônia, do DACL.

É com enorme prazer que anuncio estar previsto para o evento em tela o lançamento do livro “Pequena história colonial e narrativas orais do povo moré da Bolívia” escrito pela prof. dra. Geralda de Lima Vitor Angenot e por mim. Digo enorme prazer em razão das circunstâncias que envolveram a produção desse trabalho. Passo aqui a palavra à dra Geralda Angenot:

Em 1994 uma equipe de pesquisadores dirigidos por Jean-Pierre Angenot, professor titular recém-chegado em Guajará-mirim, vindo da Universidade Federal de Santa Catarina para trabalhar na Universidade Federal de Rondônia, iniciou um estudo sobre as línguas da família linguística txapacura e criou um grupo de pesquisa assim como o CEPLA-Centro de Estudos e Pesquisas Linguística da Amazônia. Neste momento inicial da pesquisa havia dúvidas se ainda existiam falantes da língua moré. [...] Nesse momento, apresentaram um ancião quase cego pela catarata chamado Towa Saé Paray, conhecido como dom Manuel e que era considerado na comunidade como o detentor da memória coletiva da língua e da cultura moré. Ele era uma pessoa educada, extremamente respeitosa, de uma grande inteligência, qualidades a que se somava um fantástico e extenso conhecimento de sua cultura. Tinha muita energia, estava sempre no seu ritmo tranquilo, mas bem-disposto, sempre fazendo alguma coisa, apesar de ter uma saúde pulmonar frágil em decorrência de uma tuberculose. Towa Saé Paray veio morar em Guajará-Mirim (Brasil), na fronteira com Guayaramerin (Bolívia). [...] Possuía grande amor, respeito e nostalgia das práticas de suas tradições e via a importância de documentar suas memórias. A sua luta interior consistia em, por um lado, buscar meios para registrar a sua língua, contos e histórias do seu povo. Acreditava ser a atitude certa e insistia para contribuir, compartilhando seus conhecimentos, o que fazia com muito prazer e paciência. De outro lado, a luta com seus ancestrais em seus sonhos, que para Towa não eram sonhos e sim realidade. Ele contava que seus antepassados vinham a noite irritados e brigavam com ele, eles o questionavam e o derrubavam da cama. E eles perguntavam: -“O que fazes aqui? Por que ensina nossos segredos a esses brancos? Eles são nossos inimigos. Volte para Monte Azul”. E ele respondia que não poderia morrer e levar consigo toda cultura tradicional do grupo moré. Que tinha o dever de passar aos jovens moré, ou a outros que desejassem aprender. Via-se um conflito interno entre cumprir sua missão como ancião moré de repassar os conhecimentos recebidos de seus ancestrais e a desobediência a seus ancestrais que vinham lhe visitar à noite.

Então, foi a pedido de Towa que começamos a registrar essas narrativas de mitos, contos, lendas, relatos de vida, etc. Pois não havia, naquele momento, um projeto para trabalhar a literatura oral moré, apenas registrávamos pensando em documentar e guardar a memória tradicional do povo moré.”

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O indígena moré da Bolívia Towa Saé Paray (dom Manuel) e o linguista belgo-brasileiro Jean-Pierre Angenot, fotografia 1994.

Os fatos acima apresentados transcorreram por volta de 1994. Há alguns anos atrás a professora Geralda Angenot pediu-se que realizasse um estudo da trajetória histórica do povo moré, para que os leitores das histórias de Towa Saé Paray pudessem melhor situar os contos. Então, o trabalho que ora publicamos é composto de duas partes. A primeira consiste em um estudo sobre a história do contato dos grupos morés, ou itenez, com a sociedade colonial. O nosso objetivo foi fornecer ao leitor uma perspectiva histórica da dinâmica secular do contato desses grupos com o Mundo Colonial, que é socialmente diferente do Mundo Nativo e que se institui e inicia a expandir-se com a conquista europeia. Tal contato foi realizado ao longo dos séculos de colonização espanhola na região de Mojos e Chiquitos. O grupo moré, ao qual pertencia o nosso informante, foi contatado nos anos de 1930 e submetido inicialmente à administração de um agente do Estado Nacional Boliviano. Desse contato, graves consequências advieram, de uma maneira geral com a perda de grande parte do seu modo de viver originário, costumes e língua.

A segunda parte apresenta as Narrativas orais do povo moré: mitos, contos, lendas e relatos. Da experiência de décadas em contato com o colonizador, restaram os resquícios de elementos de sua cultura tradicional, ainda existentes na memória de alguns de seus membros mais velhos. Vale dizer, memórias dos seus contos e lendas tradicionais, embora já muito misturados e “contaminados” pela experiência neocolonial, assim como aquilo que restou de sua língua original.

Por fim, devo dizer que fico feliz em lançar mais esse trabalho, duplamente feliz. Primeiro porque é sempre motivo de alegria compartilhar com o público em geral nossas pesquisas. Segundo por ter ajudado a realizar o sonho do sr. Towa Saé Paray. Esse livro, constitui-se em mais uma tentativa de legar à posteridade moré e boliviana, podemos mesmo dizer humana, porque sempre há algo de universal no particular dos povos, alguns fragmentos da memória de seu povo nas lembranças de Towa Saé Paray ou dom Manuel. É também um tributo à sua memória de luta e persistência.

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Por fim, brindamos ao leitor com uma das histórias contadas pelo nosso narrador, e publicadas no livro, que trata de como o seu grupo conheceu o trabalho de extração da borracha silvestre. 

∞ 3.18. História de samaa ‘ipwik [samaː ʔipwik˺] : o machadinho para tirar leite da seringa 

Antes não existia faca para tirar leite da seringa, existia só um machadinho que se chamava tom kuti pa ‘ipwik [tom˺ kxuti pa ʔipwik˺] e o trabalho com a seringa chamava-se pwɨt kuti pa ‘ipwik [pwɨt˺ kxuti pa ʔipwic˺].

Os morés não sabiam trabalhar na seringa, mas um dia tiveram que aprender, pois o patrão Leigue queria que cada homem moré entregasse para ele a cada quinze dias 100 kg de goma de seringa. E se não entregasse ficaria sem comida. Sendo que a comida era muito ruim como comida para porcos.

Apesar de que nas terras morés havia muitas manchas de seringueiras, eles jamais haviam trabalhado com isso, trabalhavam apenas com a roça, pesca e caça. E ainda mais, com suas machadinhas para colher seringa não rendia o trabalho nos seringais.

Foram mandados cinco seringueiros para ensinarem aos moré a tirar leite de seringa e lhes deram facas apropriadas. Aí, com as facas apropriadas e sabendo como se fazia o trabalho começou a render.

Os velhos e as mulheres trabalhavam na roça e os homens iam para os seringais.

O dinheiro desses trabalhos os morés jamais viram.

Um homem chamado Branco Florentino que se casou com uma índia moré se desentendeu com Leigue e o denunciou em Santa Cruz. O que aconteceu dessa denuncia ninguém sabe. 

Para aquisição de exemplares em Guajará-Mirim é só entrar em contato com os organizadores do evento.

Em Porto Velho e demais localidades: [email protected]

* O conteúdo opinativo acima é de inteira responsabilidade do colaborador e titular desta coluna. O Portal Gente de Opinião não tem responsabilidade legal pela "OPINIÃO", que é exclusiva do autor.

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