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Gente de Opinião

Samuel Saraiva

Me responde, Deus

Crônica humanista sobre silêncio, fatos e consciência


Me responde,  Deus - Gente de Opinião

Este texto não é um ataque ao direito à fé.
Não nasce da despeita, nem da intenção pretenciosa de convencer quem quer que seja.

Nasce da constatação dos fatos, da recusa em ignorá-los e da razoável incredulidade.

O que segue não é acusação, mas a expressão de inquietudes pessoais diante de acontecimentos reais que castigam, aprisionam e sufocam uma parcela majoritária da humanidade.

As perguntas aqui formuladas não pedem concordância, nem pretendem impor conclusões. Pedem apenas atenção.

Talvez provoquem desconforto. Se isso ocorrer, que não seja interpretado como afronta, mas como sinal de que certos fatos não podem ser suavizados sem custo à consciência.

Este texto não busca destruir a fé de ninguém. Busca apenas abrir um espaço de reflexão serena, onde razão, empatia e honestidade possam coexistir sem medo.

 

ME RESPONDE, DEUS

Não te falo por provocação, nem por desejo de negar-te. O que digo não é acusação — é constatação. E a indignação que dela nasce é legítima e justificável, porque emerge dos fatos, não do ódio.

Dizem que és bondade. Dizem que és amor. Dizem que és pai.

Então responde-me no limite da compreensão que, segundo afirmam, foste tu quem me deste.

Preciso entender para poder crer. Não em dogmas, mas na coerência entre aquilo que anunciam em teu nome e aquilo que se impõe, cruamente, na realidade.

Se és onisciente, por que uma criação tão frágil, tão vulnerável à dor, à violência e ao abandono?

Se és pai, por que o desamparo não é exceção, mas experiência recorrente?

O próprio registro que te defende narra que teu filho, agonizando, clamou: Pai, por que me desamparaste?

Essa pergunta não foi blasfêmia. Foi constatação. E permanece sem resposta.

Minha mãe acreditou. Não como quem exige milagres, mas como quem confia. Era adoradora fiel. Viveu na entrega silenciosa da devoção e da caridade.

Ap
ós um acidente de carro, foi levada a uma emergência. Esperou três horas por atendimento. Três horas.

ltiplas fraturas torácicas. Hemorragia interna. Dor consciente. Agonia prolongada.

Trê
s horas esperando socorro humano. Três horas esperando, talvez, algo além, teu socorro.

Imagino porque nada mais me resta que, em algum momento, tenha repetido as palavras do teu filho.


A resposta foi a mesma para ela e para milhares de crédulos adoradores que tiveram a vida ceifada antes da exaustão natural a que tinham direito. No silêncio, a constatação de uma punição injustificável imposta àqueles cujo único pecadofoi crer e amá-lo acima de todas as coisas.

Não como castigo. Não como lição. Apenas silêncio.

No ano passado, as imagens da grande enchente no sul do Brasil mostraram corpos de crianças boiando. Em outras regiões do planeta, o cenário se repetiu.

Crianç
as. Não metáforas. Não símbolos. Corpos reais.

E
nenhum dos milhares de teus anjos que os livros considerados sagrados dizem existir apareceu.

Nenhuma ponta de asa. Nenhum braço poderoso e acolhedor. Nenhuma intervenção invisível rompeu a lógica da tragédia.

Dizer isso não é acusar. É reconhecer o que os olhos veem e o que a consciência não consegue negar.

Como conciliar tais fatos com qualquer postulado honesto de amor? Como sustentar a ideia de cuidado quando a realidade insiste em desmenti-la?

Milhões morreram em teu nome. Milhões morreram esperando por ti. E milhões continuam morrendo ouvindo o eco das próprias vísceras rangendo de fome, enquanto discursos religiosos tentam suavizar o insuportável com palavras que não salvam nem acalmam as almas indignadas pela falta de respostas convincentes.

Talvez não sejas cruel e omisso. Talvez apenas sejas indiferente, ou demasiadamente ocupado com tantos outros seres em distantes planetas do universo eterno.

Talvez simplesmente não intervenhas por alguma razão incompreensível.

E se não intervenhas, então tu não és refúgio, não és amparo, não és resposta.

És, no máximo, uma construção humanaum substantivo criado para aliviar o medo, a solidão e a dificuldade de aceitar que estamos entregues uns aos outros.

O problema não é duvidar de ti. O problema é usar teu nome para anestesiar a consciência diante do sofrimento real.

Chamar de mistério o que é abandono. Chamar de plano o que é falha. Chamar de milagre o que é acaso.

Se existes e permaneces em silêncio, o silêncio precisa ser dito.

Se não existes, a responsabilidade é ainda maior, porque não há a quem terceirizar o dever de cuidar.

Talvez Deus, tu nunca tenha sido o problema. Talvez o problema seja a insistência em sustentar uma ideia de amor que não se manifesta quando mais necessária.

Me responde, Deus.

N
ão com promessas. Não com metáforas. Não com livros.

Responde com presençaou aceita, ao menos, que o silêncio também é uma resposta.

* O conteúdo opinativo acima é de inteira responsabilidade do colaborador e titular desta coluna. O Portal Gente de Opinião não tem responsabilidade legal pela "OPINIÃO", que é exclusiva do autor.

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