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Tráfico e não apreensão da droga


Eduardo Luiz Santos Cabette
Portal R7

A decisão do STJ revoluciona a interpretação da materialidade delitiva do crime de tráfico de drogas, tendo em vista especialmente os novos meios de investigação dispostos à Polícia mediante as interceptações telefônicas propiciadas pelo avanço tecnológico.

Segundo veiculado pelo Informativo 501 STJ, a Sexta Turma do Superior Tribunal de Justiça, no bojo do HC 131.455 – MT, tendo como relatora a Ministra Maria Thereza de Assis Moura, considerou que “a ausência de apreensão da droga não torna a conduta atípica se existirem outros elementos de prova aptos a comprovarem o crime de tráfico. No caso, a denúncia fundamentou-se em provas obtidas pelas investigações policiais, dentre elas a quebra de sigilo telefônico, que são meios hábeis para comprovar a materialidade do delito perante a falta da droga, não caracterizando, assim, a ausência de justa causa para a ação penal”.

A decisão do STJ sob comento promove uma verdadeira revolução na interpretação da questão da materialidade delitiva do crime de tráfico de drogas, tendo em vista especialmente os novos meios de investigação dispostos à Polícia mediante as interceptações telefônicas propiciadas pelo avanço tecnológico.

Fato é que essa nova interpretação, acaso venha a prosperar nos tribunais, poderá ter efeitos expandidos para outros casos, tais como contrabando ou descaminho sem apreensão de mercadorias ou tráfico de armas, uma vez que “ubi eadem ratio, ibi ide jus” (“A mesma razão autoriza o mesmo direito”).

É tradicional a lição da doutrina e a regra do direito (artigo 158, CPP) de que “quando a infração deixar vestígios será indispensável o exame de corpo de delito, direto ou indireto, não podendo supri-lo a confissão do acusado”. E o tráfico de drogas, considerando seu objeto material palpável, é induvidosamente de natureza material. É bem verdade que o artigo 167, CPP abre a possibilidade de que o exame de corpo de delito seja suprido pela prova testemunhal quando for impossível sua realização, mas se tem considerado que tal exceção somente pode ser aplicada quando a comprovação da materialidade em si não se dá porque resta comprovado que o próprio agente criminoso a destruiu ou ocultou, não sendo de se aceitar o suprimento quando o próprio Estado (Polícia, Ministério Público ou Judiciário) não consegue a materialidade por alguma falha ou negligência em sua atuação no sentido de satisfazer o “onus probandi” quanto à integralidade da imputação.

A doutrina costuma classificar as infrações penais quanto à obrigatoriedade do exame de corpo de delito em “crimes de fato permanente” (“delicta facti permanentis”) e “crimes de fato transeunte” (“delicta facti transeuntis”). Os primeiros são aqueles que deixam vestígios e os segundos são os que, ao inverso, não deixam vestígios. [1]

Por inferência do disposto no artigo 158, CPP os crimes de fato permanente devem ser comprovados em regra por meio do exame de corpo de delito direto ou indireto, não podendo ser este meio de prova suprido nem mesmo pela confissão do acusado. “Contrario sensu”, conclui-se que as infrações que não deixam vestígios normalmente (crime de fato transeunte) prescindem do exame de corpo de delito como meio necessário de prova.

A aplicação dessa regra sem qualquer ponderação perante a realidade do mundo da vida, permitindo que a letra fria da lei seja o único parâmetro a ser seguido pelos operadores do Direito, certamente não pode ser o caminho mais correto para a solução de determinados casos concretos que muitas vezes se apresentam sem qualquer aviso a fim de serem solucionados pela jurisdição.

A palavra “jurisdição” tem efetivamente por origem etimológica “juris” + “dictio”, que significa “dizer o Direito”, esperando-se mesmo mais do que isso dela. A grande expectativa que se tem perante a jurisdição é que mais do que o Direito ou a Lei, ela seja capaz de dizer e fazer a “Justiça”. Mas, não é apegando-se cegamente a uma formalidade que se pode buscar o Direito e a Justiça. A Justiça não deve e não pode ser cega. Quando os gregos, com sua sabedoria, idealizaram a representação da deusa Thêmis com a balança em uma das mãos, simbolizando o equilíbrio e a imparcialidade, e a espada na outra, demonstrando sua força para impor suas decisões e sanções, não optaram por vendar-lhe os olhos. Essa temeridade foi obra de artistas alemães do Século XVI na pretensão de dar ênfase ao aspecto da imparcialidade. [2] Com isso mutilaram pavorosamente o símbolo produzido pela sabedoria grega. Uma Justiça cega não é imparcial, mas sim falha, inepta, impotente. Talvez artistas contemporâneos, inspirados no erro dos alemães do século XVI e nas novas tecnologias, pudessem fazer uma releitura da simbologia de Thêmis dotando-a agora de uns óculos de visão noturna, já que longe de se pretender uma Justiça cega, muito mais interessante seria ter uma que enxergasse até no escuro. E mais, de acordo com o “decisum” em destaque do STJ, ela também poderia estar equipada com um aparelho de escutas.

Alvissareiro é saber que a legislação processual penal brasileira não se conforma a um modelo formalista e cego, mas apresenta-se, ao menos no aspecto ora sob discussão, com um sistema maleável e formatado na esteira do bom senso.

A regra do “limite probatório do corpo de delito” é, em geral, justa e funcional, mas impõe-se a criação de algum mecanismo a amenizar-lhe a rigidez em certas situações problemáticas. E isso deve ser feito com cautela e inteligência, tomada esta última no sentido de “mecanismo ou instrumento para a solução de problemas”, a “capacidade de ler a solução mais adequada para um determinado problema”. Através de uma solução informada pela inteligência pode-se, por meio de sua funcionalidade, fazer uso da “capacidade imediata e estanque de associar e dissociar elementos necessários e habilmente selecionados, quando de sua aplicabilidade”, fazendo para isso o uso “de forma associada dos recursos da memória, da capacidade de raciocinar e da criatividade”. [3]

Ao erigir em norma o disposto no artigo 158, CPP, o legislador pátrio foi abeberar-se na melhor dogmática que sabiamente estabeleceu certos “limites probatórios” a serem obedecidos pelas legislações. Encontra-se em Malatesta a doutrina do “limite probatório do corpo de delito”, a qual certamente confere corpo e alma ao dispositivo sobredito de nosso diploma processual penal. [4] Referido autor estabelece que as infrações que deixam vestígios devem ser provadas pelo respectivo exame de corpo de delito, não podendo ser supridas pela prova testemunhal e nem mesmo pela confissão do réu. Essa conclusão advém de um princípio da teoria geral da prova erigida por Malatesta, qual seja, o “Princípio da Melhor Prova”. São suas palavras:

“Primeiramente, se, para servir de base a uma condenação penal não basta a verdade formal, mas é preciso a verdade substancial, é necessário, pois, procurar sempre as melhores provas em matéria penal, porque são elas que melhor podem fazer chegar à conquista da verdade substancial: é preciso não contentar-se com provas fornecidas senão quando são as melhores que se possam ter em concreto, e, por fim, quando a lógica das coisas não obriga a crer que devam existir outras ainda melhores” (grifo nosso). [5]

Da lição acima o que se pode concluir, conforme já o fez outrora o autor em destaque, é que quando se tratam de crimes de fato transeunte pode haver contentamento com uma prova não material (v.g. um testemunho, uma confissão, um documento, um conjunto indiciário etc.). Mas, quando se versa sobre um delito de fato permanente, que deixa naturalmente seus vestígios materiais, as provas diversas do exame de corpo de delito não podem ser consideradas mais do que meras coadjuvantes. Jamais podem ser consideradas a “melhor prova” que se poderia ter da materialidade de um vestígio material. Ora, essa “melhor prova” no caso enfocado não pode deixar de ser o exame de corpo de delito que constata os referidos vestígios. Ocupando, portanto, a posição de “melhor prova” e considerando o princípio antes erigido de que se deve sempre buscar a “melhor prova possível”, impõe-se o não contentamento com um conteúdo probatório que não satisfaça o nível de qualidade exigível e possível no caso concreto. A penalidade processual para a desídia ou a negligência na busca da “melhor prova” é que o fato probando seja considerado não comprovado ou, no mínimo, duvidoso, o que, por seu turno acarretará no Processo Penal o chamamento à baila do “Princípio do Favor Rei” (“in dubio pro reo”) com a consequente inviabilidade de uma decisão condenatória ou, por vezes, até mesmo da formulação de uma acusação consistente. [6]

Entretanto não escapou ao formulador da doutrina em exposição, que tanto inspirou o legislador pátrio na formulação do artigo 158, CPP, o necessário bom senso de ter em mente que não é no brocardo “dura lex sed lex” que se encontra o melhor caminho para a Justiça. Na verdade, neste ponto bem lembrou-se Malatesta de outro ditado latino, a não permitir o inebriamento diante da formulação de regras inflexíveis encasteladas num idealismo que pode tornar o Direito uma ciência que se distancia da realidade e, por isso mesmo, perde todo seu caráter científico e prático. Esse aforismo é que aquele que diz “summum ius, summa injuria”.

Em sua exposição Malatesta admite que em certos casos a regra geral deva ceder espaço para situações excepcionais em que mesmo em crimes de fato permanente poder-se-á aceitar como melhor prova não aquela material, mas também as provas pessoais, tais como depoimentos de testemunhas ou confissões, além, é claro, de outros vestígios que indiquem a veracidade desses testemunhos e interrogatórios. Um conjunto probatório sólido e coerente poderá suplantar o corpo de delito em determinadas situações excepcionais. Resta saber que especificidade é exigível para a admissão de exceções ao “limite probatório do corpo de delito”?

Em sua doutrina o autor sob comento faz uso de um conceito extremamente comum na ponderação de diversas questões difíceis (“hard cases”) a serem enfrentadas no mundo jurídico. Embora sem fazer menção direta, traz à baila a chamada “justa causa”, ou seja, para que se possa concordar com a dispensa do corpo de delito em infrações materiais é preciso comprovar que o desaparecimento dos vestígios deixados pelo crime é justificado e, consequentemente, torna-se impossível a produção da chamada “melhor prova”. [7] Segundo Malatesta, “é preciso, então, antes de emprestar plena fé às testemunhas” que afirmam a materialidade delitiva, a qual por sua natureza deveria “subsistir”, comprovar uma “causa razoável do seu desaparecimento”. [8]

Certamente uma das principais causas razoáveis a creditarem a dispensa do corpo de delito impossível de ser realizado é a circunstância em que se consegue comprovar com certeza que os vestígios foram destruídos pelo próprio criminoso no afã de livrar-se da responsabilidade criminal. É claro que não se poderia concordar com a premiação ao Estado desidioso na produção da prova criminal, o qual simplesmente deixa escapar sem mais as oportunidades que tem de produzir as melhores provas. A sanção processual imposta pelo “limite probatório do corpo de delito” é, além de justa e coerente, de certa forma também pedagógica, pois que incita os operadores do Direito (Delegados de Polícia, Promotores, Advogados e Juízes) a atuarem com especial denodo sob pena de terem escancaradas à sociedade sua inépcia, para além de eventuais responsabilidades criminais e administrativas. De outra banda, o Direito também não poderia recompensar o criminoso astuto com a impunidade sempre que este, sabedor da importância da materialidade delitiva, venha a destruí-la ou ocultá-la de forma competente. Fato este que frequentemente ocorre nos casos de traficantes bem organizados. Isso seria o equivalente a estabelecer um “Direito Premial” para a má fé, para a velhacaria e, em alguns casos, até mesmo para a frieza e crueldade da premeditação criminosa. Não é sem razão que hodiernamente nosso Pretório Excelso, manifestou-se, pela pena do Ministro Gilmar Mendes, no sentido de que “os direitos e garantias constitucionais não podem servir de manto protetor a práticas ilícitas”. [9]

Nesse diapasão, se por um lado é verdade que a garantia do corpo de delito para comprovar os ilícitos materiais contribui para uma otimização da prova e para a segurança jurídica especialmente nos casos de condenações criminais, evitando muitas vezes a apenação de inocentes, por outro lado deve-se considerar o fato de que a legislação e os operadores do Direito não podem ser ingênuos e muito menos adeptos de um laxismo que permita uma válvula de escape formal em determinados casos em que é claramente reconhecível que o corpo de delito foi deliberadamente destruído ou ocultado pelo próprio infrator na intenção de obter sua impunidade. É nessas horas que a Justiça não pode mesmo estar com os olhos vendados. Deve mantê-los abertos e atentos a fim de julgar com equilíbrio e aplicar a força com precisão e proporção.

Acertadamente a legislação brasileira abraçou a tese ponderada de Malatesta que tanto influenciou a produção de legislações processuais penais ao redor do mundo. Estabeleceu sim o “limite probatório do corpo de delito” para as infrações que deixam vestígios, mas a temperou com a previsão de uma situação excepcional em que esse exame poderá ser suprido pela prova testemunhal “lato sensu” (depoimentos, declarações, confissão e agora os meios tecnológicos de interceptação telefônica). Tal aspecto da dogmática em estudo encontra-se estampado no artigo 167, CPP, conforme acima já aventado.

É bem verdade que faltou ao legislador ordinário brasileiro expressar em suas palavras a excepcionalidade de tal suprimento. A leitura pura e simples do dispositivo do Código de Processo Penal Brasileiro pode transmitir a mensagem de que em qualquer circunstância a prova pericial poderá ser suprida pela prova testemunhal, com o único requisito do desaparecimento dos vestígios que possibilitariam a produção da primeira. Como visto, não é esta a orientação da doutrina original referente ao tema, já que para autores como Malatesta, que mesmo não sendo contemporâneos estendem suas lições humanísticas e libertárias para o mundo atual, o suprimento sobredito somente seria possível em situações excepcionais devidamente justificadas e em que o corpo de delito não sofreu desaparecimento por desídia estatal na produção adequada da “melhor prova”. E isso é o que pode ocorrer em muitos casos em que traficantes sabem atuar com astúcia, pulverizando a distribuição das drogas e impossibilitando apreensões mesmo com o recurso das interceptações. Não obstante, seria fechar os olhos à realidade não acatar a evidência de conversas telefônicas reveladoras dessa atividade criminosa de forma induvidosa. Nesses casos a atuação dos infratores inobstante os esforços policiais, está a justificar a dispensa do corpo de delito e seu suprimento pelas novas provas possibilitadas pela tecnologia.

Mirabete deixa claro que a regra contida no artigo 167, CPP, não permite ao operador do Direito uma conduta omissiva na busca da prova material. Afirma o autor que “sendo perfeitamente possível e viável o exame pericial, não deve o magistrado pronunciar o non liquet; cabe-lhe ordenar, de ofício sua realização (...) sob pena de nulidade da sentença, ex vi do artigo 564, III, “b”, CPP”. [10] Segue-se daí que, “contrario sensu”, se o exame é impossível não por desídia das partes, da polícia ou do magistrado, autorizada está sua substituição pelo exame indireto ou pela prova testemunhal. Desse modo consolida-se um tratamento equilibrado que não permite a omissão Estatal e nem a premiação da astúcia criminosa.

Prossegue então o autor sob comento exemplificando:

“Por vezes, as infrações não deixam vestígios ou estes não são encontrados, desaparecem, não permanecem, impossibilitando o exame direto. Citem-se como exemplos o homicídio praticado por afogamento em alto – mar em que o corpo da vítima não é encontrado, o furto em que a coisa subtraída não é recuperada, o estupro (...) quando o fato é levado ao conhecimento da autoridade muitos dias após a ocorrência etc. Nessas hipóteses, inexistentes os vestígios, dispensa-se a perícia, fazendo-se então a prova da materialidade do crime por outros meios que não o exame direto. Forma-se, então, o corpo de delito indireto, como prevê a lei, em regra por testemunhas (art. 167)”. [11]

Dentre os exemplos de Mirabete acima expostos, o caso do furto sem apreensão da “res furtiva” é bastante instrutivo. Não há razão plausível para que nesse caso se admita a prova da materialidade sem a apreensão e não se o faça no caso do tráfico de drogas com interceptações telefônicas conclusivas e contundentes.

Também Greco Filho aborda com cautela a questão do suprimento da prova pericial pela testemunhal, afirmando que “para que a substituição do exame pela prova testemunhal possa ocorrer validamente, porém, é preciso que o desaparecimento dos vestígios seja decorrente de causas não imputáveis aos órgãos de persecução criminal”.[12] Também ele lembra o caso do homicídio com o corpo jogado ao mar ou num rio, onde desaparece para sempre. Insiste, porém, que a exceção deve ser aplicada “cum grano salis”:

“O artigo 167 do Código de Processo Penal, como uma exceção à garantia do acusado quanto à constatação dos vestígios por exame pericial, deve ser interpretado estritamente, impondo que se aplique, exclusivamente, à hipótese de desaparecimento natural, ou por ação do próprio acusado, e não por inércia dos órgãos de persecução penal que atuam contra o eventual réu” (grifo nosso). [13]

Demercian e Maluly também apontam o artigo 167, CPP, como exceção legal ao “limite probatório do corpo de delito”, mas destacam “que o desaparecimento dos vestígios não pode decorrer da desídia ou inércia da autoridade, mas por circunstâncias que a impeçam de maneira peremptória de realizar a perícia. Portanto, não se admitirá o exame indireto quando, podendo ser realizado diretamente, não o é”. [14]

Na mesma esteira manifesta-se Espínola Filho, destacando a supletividade da prova testemunhal perante o corpo de delito. O Exame de Corpo de Delito somente se torna prescindível quando resta impossibilitado por circunstâncias alheias ao poder de iniciativa estatal. Esse impedimento decorre sempre do desaparecimento dos vestígios deixados pelo delito, mas quando estes existem devem ser objeto da iniciativa dos órgãos persecutórios para seu exame, sob pena de nulidade e inviabilidade probatória por outros meios. [15]

Analisando, porém, as diversas manifestações jurisprudenciais acerca do tema em sua época, Espínola Filho erige contundente crítica àqueles que tomam a regra da exigência do exame pericial em crimes de fato permanente como absoluta. Aponta tal postura como inflexível à realidade, tornando o Direito Processual Penal um instrumento inócuo quando privilegia o aspecto garantístico em detrimento exagerado da eficácia. Em suas palavras:

“Não aceitamos a tese, que tem esteio na opinião de Câmara Leal, da qual resulta a orientação de ser o exame de corpo de delito indispensável, para a prova da materialidade de crimes que devem deixar vestígios, ou, como se expressa o comentador paulista, ‘que por sua natureza costumam deixar vestígios’ (Comentário ao Código de Processo Penal Brasileiro, Volume 1º, 1942, p. 434). Essa compreensão traduziria uma dificultação considerável da obra de apuração das infrações criminais, em benefício dos malfeitores, a qual está longe de corresponder ao sistema antiformalista do novo Código, tão cioso de armar a justiça com todos os elementos aptos e seguros à verificação real dos fatos, como se passaram – embora nos pareça uma concessão, sem sentido e sem razão, à tradição, aferrada a preconceitos de forma, firmar a proibição de ser o exame de corpo de delito direto suprido pela confissão, quando esta, se dada em juízo, deveria servir, sem relutância alguma, a tal fim”. [16]

Resta clara a necessidade de prover as normas processuais de uma construção, interpretação e argumentação que lhes possibilite manter o delicado equilíbrio necessário entre eficácia e garantias, certamente consistente num dos maiores desafios da ciência processual penal moderna. Trata-se de uma busca que Aristóteles já indicava há milênios ao referir-se a uma mediania virtuosa, concluindo que “a virtude é certa medianidade, como a que ao meio dirige a sua mira”. Daí se chegando à inferência de que “é a virtude um hábito de propor-se o que consiste na medianidade para nós, determinada com a razão e como o homem sábio a determinaria. E é uma mediania entre dois vícios, um por excesso e outro por falta: porque, enquanto dos vícios alguns faltam e outros excedem da medida conveniente, quer nos afetos, quer nas ações, a virtude, ao invés, acha e escolhe o meio”. [17] Mister se faz neste nosso contexto, encontrar o ponto fulcral de equilíbrio mediano entre eficácia e garantias processuais, o que tem sido ao longo do tempo uma busca contínua dos cultores da ciência processual em geral e, especialmente, do Processo Penal.

No seio dessa noção de mediania virtuosa deve-se promover uma harmonização entre os dispositivos dos artigos 158 e 167, CPP, inclusive com reflexos na interpretação e aplicação do artigo 564, III, “b”, do mesmo “codex”. Este mandamento por último mencionado estabelece que haverá nulidade pela falta de exame de corpo de delito nos crimes que deixam vestígios. Entretanto, o próprio dispositivo em destaque ressalva o disposto no artigo 167, CPP, promovendo, portanto, expressa e claramente, a necessária harmonia entre o “limite probatório do corpo de delito” e sua excepcional substituição pelo exame indireto e/ou pela prova testemunhal “lato sensu”, à qual certamente se podem acrescer as interceptações telefônicas urdidas na tecnologia contemporânea.

O sopesar de todas as circunstâncias que envolvem o caso concreto diante do qual se procura ajustar sistematicamente os dispositivos legais acima aventados, adquire ainda maior relevo quando se está diante da situação em que foi o próprio réu ou investigado o autor da destruição ou ocultação da materialidade delitiva, impossibilitando por seus atos a realização regular do exame pericial necessário. É que nessas circunstâncias há que notar-se que a nulidade não pode beneficiar àquele que lhe deu causa, sob pena de abrir uma porta de entrada à litigância de má fé no processo. Se tal fosse permissível num sistema jurídico, bastaria que a parte interessada em anular um processo provocasse “sponte propria” uma causa de nulidade, de modo que o mundo do Direito estaria definitivamente escancarado para o abandono do ideal de Justiça, abraçando as puras manobras maliciosas e a permissividade imoral, que transformariam o mundo jurídico em exclusiva discussão retórica e embate de técnicas de contorno da lei e do justo.

Portanto, não é sem razão que o artigo 565, CPP, estabelece que “nenhuma das partes poderá arguir nulidade a que haja dado causa, ou para que tenha concorrido”. Seria mesmo o cúmulo alegar o traficante que deveria ser absolvido porque a polícia não conseguiu apreender as drogas devido à sua “esperteza”, mesmo com quebra de seu sigilo telefônico. Ora, se resta comprovado por outros meios de prova seguramente que o infrator foi quem impossibilitou o exame pericial devido a manobras de destruição ou ocultação, não há dúvida de que foi ele o causador direto da eventual nulidade que, de acordo com o ditame coerente e sábio da lei, não lhe pode beneficiar. Anote-se que tal regramento é mantido no Projeto de Código de Processo Penal n. 156/09 em seu artigo 156. Isso porque a legislação pátria não poderia abrir mão de uma norma que assegura um processo justo e ético, além de que obediente ao princípio geral do Direito do qual se extrai que de um ato ilícito não podem decorrer direitos ao seu executor. Muito ao reverso, dos atos ilícitos somente podem decorrer direitos aos por ele prejudicados e deveres e sanções àqueles que o praticaram. Por isso ao infrator que destrói ou oculta o corpo de delito, impossibilitando a perícia por parte dos órgãos persecutórios que para isso se esforçam, não decorre o reconhecimento da nulidade da prova contra si produzida, mas sim, por força do artigo 167 c/c 565, CPP, o direito às agências estatais de comprovarem a materialidade por outros meios tais como o exame indireto, a prova testemunhal, gravações telefônicas licitamente colhidas etc. É claro que para que isso possa ser aceito deverá haver prova cabal quanto à conduta do implicado em impossibilitar a realização da perícia, pois que, conforme já dito, se esta não se realiza por desídia das agências estatais, não cabe ao indivíduo arcar com as consequências, mas sim ao próprio Estado.
 


REFERÊNCIAS:

ARISTÓTELES. A Ética. Trad. Cássio M. Fonseca. Rio de Janeiro: Ediouro, 1985.

DEMERCIAN, Pedro Henrique, MALULY, Jorge Assaf. Curso de Processo Penal. 6ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2009.

ESPÍNOLA FILHO, Eduardo. Código de Processo Penal Brasileiro Anotado. Volume II. Campinas: Bookseller, 2000.

GRECO FILHO, Vicente. Manual de Processo Penal. 8ª ed. São Paulo: Saraiva, 2010.

JÚNIOR, Bosco, TERCEIRO, José Gil. O Mito de Thêmis. Disponível em www.discipulosdethemis.hpg.com.br , acesso em 03.04.11.

MALATESTA, Nicola Framarino Dei. A lógica das provas em matéria criminal. Trad. Paolo Capitanio. Campinas: Bookseller, 1996.

MIRABETE, Julio Fabbrini. Processo Penal. 18ª ed. São Paulo: Atlas, 2006.

ORRUTEA, Rogério Moreira. Sobre a hipérbole humana ou o homem este desconhecido. Curitiba: Juruá, 2010.

TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Manual de Processo Penal. 13ªed. São Paulo: Saraiva, 2010.


Notas

[1] TOURINHO FILHO, Fernando da Costa. Manual de Processo Penal. 13ª ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 569.

[2] JÚNIOR, Bosco, TERCEIRO, José Gil. O Mito de Thêmis. Disponível em www.discipulosdethemis.hpg.com.br , acesso em 03.04.11.

[3] ORRUTEA, Rogério Moreira. Sobre a hipérbole humana ou o homem este desconhecido. Curitiba: Juruá, 2010, p. 106.

[4] MALATESTA, Nicola Framarino Dei. A lógica das provas em matéria criminal. Trad. Paolo Capitanio. Campinas: Bookseller, 1996, p. 514 – 523.

[5] Op. Cit., p. 102.

[6] Não é também em outra fonte que se abeberou o legislador brasileiro ao estabelecer a redação do artigo 525, CPP: “Nos casos de haver o crime deixado vestígio, a queixa ou denúncia não será recebida se não for instruída com o exame pericial dos objetos que constituam o corpo de delito”.

[7] Op. Cit., p. 521.

[8] Op. Cit., 523.

[9] HC 103.236, Rel. Min. Gilmar Mendes, 2ª Turma, Julgado em 14.06.2009, DJ de 03.09.2010.

[10] MIRABETE, Julio Fabbrini. Processo Penal. 18ª ed. São Paulo: Atlas, 2006, p. 266.

[11] Op. Cit., p. 266. O autor arrola várias decisões jurisprudenciais neste sentido: RT 387/2020; 550/272; 564/400; 575/479; 582/375; 605/321; RTJ 89/110; RDJ 8/111.

[12] GRECO FILHO, Vicente. Manual de Processo Penal. 8ª ed. São Paulo: Saraiva, 2010, p. 212.

[13] Op. Cit., p. 212.

[14] DEMERCIAN, Pedro Henrique, MALULY, Jorge Assaf. Curso de Processo Penal. 6ª ed. Rio de Janeiro: Forense, 2009, p. 325.

[15] ESPÍNOLA FILHO, Eduardo. Código de Processo Penal Brasileiro Anotado. Volume II. Campinas: Bookseller, 2000, p. 522.

[16] Op. Cit., p. 547.

[17] A Ética. Trad. Cássio M. Fonseca. Rio de Janeiro: Ediouro, 1985, p. 71

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