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REVISTA ÉPOCA: Porto Velho, A cidade que não estava lá




Eliane Brum   -  Revista Época

Porto Velho, capital de Rondônia, recebe as famílias de trabalhadores das usinas do Rio Madeira com aluguéis exorbitantes, sistema de saúde precário e uma coleção de problemas de infra-estrutura.
Os funcionários que chegam a Porto Velho para trabalhar na construção das usinas enfrentam falta de infra-estrutura e aluguéis mais caros do que os de São Paulo

As famílias dos trabalhadores das polêmicas usinas do Rio Madeira começam a desembarcar em Porto Velho, capital de Rondônia. Encontram uma cidade com aluguéis mais elevados que São Paulo, sistema de saúde precário, rede escolar deficiente, calçadas esburacadas, saneamento básico quase inexistente e lixo para todo o lado. Com a perspectiva de anos de trabalho por lá, os maridos tem de se esforçar para que a mulher não faça as malas e pegue um avião de volta enquanto ele está no trabalho. São funcionários das empresas dos consórcios que constroem as usinas de Santo Antonio e Jirau e não têm escolha, é “vai ou vai”. “Meu marido não me contava a verdade quando falava comigo por telefone”, conta Andrea Rocha Izac, de 37 anos, três filhos. “O bicho é muito mais feio do que eu pensava. Acho que meu marido tinha medo que, se contasse como era, eu não viesse. E ainda nem sei se vou conseguir ficar!”

Nos primeiros anos, na fase de estudos de viabilidade, os homens vinham sozinhos. Desde o final do ano passado, começaram a chegar as famílias. Os problemas de Porto Velho, que sempre foram muitos, multiplicaram-se, acentuados por uma voracidade do setor imobiliário, especialmente, e do comércio em geral. O preço do aluguel de imóveis em Porto Velho triplicaram e hoje tornou-se um dos mais altos do Brasil. “Eles olham pra nós e não enxergam pessoas. Vêem uma notinha de dólar”, desabafa Andrea. “Como vou me sentir bem num lugar que me recebe assim?”

Andrea e o marido, o engenheiro agrônomo Marco Antonio Izac, 39 anos, que trabalha para uma das empresas do consórcio há 17, deixaram uma casa própria de 140 metros quadrados, com três quartos, dois deles suítes, num condomínio fechado de uma área nobre de Cuiabá, no Mato Grosso, a 500 metros de um parque. Conseguiram alugá-la por R$ 1500. Em Porto Velho, o melhor que encontraram foi uma casa menor, distante da área central e das partes mais nobres, também num condomínio fechado, mas cercado de água empoçada há semanas, por R$ 1800. Insatisfeitos, eles procuram outro imóvel, mas apartamentos bem localizados, cujo aluguel valia R$ 1 mil há um ano, hoje custam R$ 2.500. Negociação é uma palavra riscada na cartilha dos agentes imobiliários de Porto Velho. Não precisam dela. Toda semana tem alguém desesperado batendo na porta em busca de casa para morar.

As usinas hidrelétricas do rio Madeira, vitrines do PAC (Programa de Aceleração do Crescimento), custarão cerca de R$ 20 bilhões.

O choque da família Izac aumentou ainda mais depois que o caçula dos três filhos adoeceu. Antonio Jorge, de seis anos, pegou dengue, provavelmente porque a água empoçada ao redor do condomínio é um criadouro de mosquitos. Mas só conseguiu atendimento no quarto hospital – e isso com plano de saúde. A filha mais velha, de 15 anos, está com problemas de adaptação à escola e à cidade. Procuraram uma psicóloga. Depois de esperarem horas pela consulta, foram embora sem que a profissional conveniada tivesse aparecido. Para quem só pode contar com o SUS, a situação já começa a virar caso de polícia. Na edição dominical do jornal O Estadão, de Porto Velho, a manchete era: “Médicos ameaçados de morte nos postos de saúde da capital”. A causa: demora no atendimento.

A educação, para quem pode pagar, é cara. Para quem não pode, há risco de ficar sem. Com três filhos na escola, a família Izac desembolsa, em Porto Velho, 40% a mais no valor das mensalidades em uma escola privada. “É tudo muito feio, muito sujo e muito caro. Eu preciso dizer aos meus filhos que vai dar tudo certo, mas minha vontade é só dormir”, diz Andrea. “Quando meu caçula adoeceu e foi aquele descaso, quase fiz as malas e fui embora.”

As mulheres recém-chegadas encontram-se na casa de Andrea para trocar informações e desencantos. “Conto os dias para ir embora”, diz a dona da casa. “Acho que quando cansar de contar, acostumo.” Ela tem pela frente uma perspectiva de pelo menos sete anos na capital de Rondônia. Animada mesmo, só Odila Pereira. Aos 55 anos, dois filhos adolescentes, Porto Velho é a sétima cidade em que ela desembarca com o marido. Já morou com bebê pequeno em hotel, já passou por todo tipo de perrengue. “A mulher é a pessoa principal nessas mudanças, nós temos de ser o esteio psicológico para o marido, que tem um desafio novo no trabalho, e para os filhos, que estão deixando cidade e amigos”, ensina Odila às mais jovens. “Não é fácil, mas a gente tem de ser forte. Pra mim o que importa é estar com a minha família, mesmo que seja difícil. E é.”

Porto Velho é uma cidade que tem a história tatuada na geografia urbana. Quase não há árvores nas ruas esburacadas, mesmo no centro, o que torna o calor ainda mais opressor. A floresta desmatada é um eco também ali. Diferente de outras capitais amazônicas, quase não se veem índios. Praças e espaços públicos são escassos, as calçadas são desiguais e pontuadas por lixo. A atmosfera é pesada e triste. Não parece um lugar para pessoas. Ou pelo menos para exercer a cidadania. Assemelha-se a uma cidade de passagem. Como definiu um companheiro de viagem, Claudiney Ferreira, “Porto Velho é uma cidade que não é daqui”.

Políticos, empresários e até jornalistas festejam o que está sendo chamado de “crescimento chinês em Rondônia”, que estaria assim imune à crise econômica mundial. Caras e controversas, as usinas hidrelétricas do rio Madeira, vitrines do PAC (Programa de Aceleração do Crescimento), custarão cerca de R$ 20 bilhões, com a previsão de injeções polpudas na economia de Rondônia pelo menos até 2013. Mas se a elite empresarial e política de Rondônia aprecia comparar o crescimento com os melhores índices da China, é bom também que perceba as semelhanças com as piores mazelas.

Acostumados a seguir as grandes obras de suas empresas, os trabalhadores mais especializados, que não são substituíveis por mão de obra local, estão assustados com Porto Velho. “Já fiz todos os cálculos”, diz o engenheiro civil Ângelo Leal, 41 anos, coordenador de equipe, em Furnas, uma das empresas que constrói a usina de Santo Antonio. “Se tiver de me mudar para cá com a minha esposa, o custo de vida vai aumentar 40% e a qualidade vai diminuir muito.” Uma casa equivalente ao sobrado que vive em Goiânia e cujo aluguel custa R$ 550, em Porto Velho ele só encontra por R$ 1300. O casal gasta, na capital goiana, R$ 500 mensais em gêneros de primeira necessidade. Segundo a pesquisa de Ângelo, em Porto Velho serão R$ 150 a mais, com qualidade pior. “Sem contar que apenas 20% da água de Porto Velho é tratada e há apenas 3% de esgoto sanitário”, afirma. “Estou aqui há quatro anos, indo e vindo, e me sinto trabalhando em outro país.”

A vida piorou também para quem já vivia em Porto Velho. A estimativa é de que hoje exista um déficit de 2 mil vagas escolares na rede pública. O atendimento nos hospitais chega a dois dias de espera, cirurgias estão sendo adiadas por meses. Na hora de renovar os aluguéis, moradores descobrem que o proprietário quer três vezes mais, apostando nos recém-chegados. O jeito é pagar o mesmo por um lugar três vezes pior e ainda mais periférico. Outra leva de gente vai chegando dos cantos empobrecidos em busca de um cantinho na mais recente das grandes obras amazônicas. O desfecho dessa migração a história já mostrou. Mas com alma de migrantes, que já andaram um bom trecho do país, os que chegaram há anos e os que alcançam hoje a borda de Rondônia, comungam de uma esperança que já virou ilusão em empreendimentos anteriores: a de que a vida vá melhorar com um posto de serviço nas obras de Santo Antonio e Jirau. Ou em algum dos milhares de empregos indiretos prometidos. Sem outra alternativa a não ser buscar, nessa migração eles vão carregando o Brasil nos pés.

Fonte: REVISTA ÉPOCA

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