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LÚCIO: Novas hidrelétricas: quem (o que) mudou?


Lúcio Flávio Pinto*
Num tom inquisitorial, uma pessoa me abordou logo que encerrei minha conferência durante a 59" reunião anual da SBPC: "Você mudou de opinião sobre as hidrelétricas na Amazônia?". Era como se me flagrasse num ato de vira-casaca, que raramente é risonho e franco. A razão para a dúvida angustiada: eu alertara para aspectos inovadores do projeto das usinas de Santo Antônio e Jirau, no rio Madeira, licenciadas provisoriamente pelo Ibama na semana anterior.
Não, não mudei de posição. Depois de anos de estudos e acompanhamento de obras, firmei uma posição: a definição da viabilidade - ou conveniência - da construção de hidrelétricas na Amazônia deve tomar como premissas alguns fatores. O primeiro deles é que o aproveitamento energético do rio deve ser precedido por um plano de desenvolvimento econômico e social, abrangendo toda a bacia hidrográfica, plano esse que exige todos os estudos necessários para dar-lhe consistência técnica.
Além disso, precisa ser formalizado em um projeto de lei, a ser submetido pelo poder executivo ao legislativo e aprovado depois de audiências públicas, a serem conduzidas pelo Comitê de Bacia específico. O segundo ponto: a barragem tem que ser de baixa queda, evitando assim a inundação de grandes áreas para a formação do reservatório.
A elevação do nível natural do rio deve coincidir com a altura máxima que ele alcança durante as cheias, ou apenas um pouco além desse limite.
O terceiro ponto: a energia gerada terá aproveitamento local, pondo-se fim às transmissões em alta tensão por grandes distâncias, com custos elevados e perdas no percurso.
Ao invés de a energia ser deslocada em grandes blocos para atender os grandes consumidores, nas regiões mais adiantadas do país, estes é que serão remanejados para o ponto de geração. AAmazônia, no futuro, e o Pará de hoje não podem continuar a ser exportadores de energia bruta, o que apenas atualizará seus atrasos.
Estes são apenas os pressupostos. Se eles forem atendidos, aí cada projeto hidrelétrico será analisado no seu contexto até que se decida se ele responde aos interesses sociais, ambientais e econômicos da área de influência da obra, da região e do país, nessa hierarquia. O que eu procurei destacar na minha conferência foi uma característica original dos projetos de Santo Antônio e Jirau, inexistente nas hidrelétricas anteriores, sobre tudo nas de maior porte (Tucuruí, mas também Balbina): as barragens serão de baixa queda.
Elas respondem à preocupação de não submergir grandes áreas (3 mil quilômetros quadrados no Tocantins, quase 2,5 mil km2 no Uatumã, com uma potência 32 vezes menor), mantendo a lâmina do semi-reservatório um pouco acima do nível máximo das cheias naturais do rio Madeira. Por ser um dado novo, essa característica das duas usinas precisa ser analisada com atenção, o que até agora não houve. Para quem já possui algum grau de informação sobre esse tipo de usina, foi uma surpresa saber que as duas hidrelétricas usarão turbinas bulbo, que funcionam na vertical, sem depender da verticalidade da queda de água, como nas turbinas convencionais (que criam um desnível artificial quando o curso d'água tem baixa declividade natural). Eu imaginava que essa tecnologia só era compatível com hidrelétricas de menor potência. Não é o caso das duas usinas do Madeira, com capacidade de geração de energia definida em projeto de 3,5 mil e 3,9 mil megawatts (em conjunto, representam mais da metade da potência da maior usina em atividade no mundo, a de Itaipu, que é de altíssima queda; essa metade, por isso, ao contrário do que têm assinalado os críticos dos projetos, que a minimizam, é muito expressiva). As usinas com turbinas bulbo, em operação em poucos lugares do mundo, têm potência entre 200 e 400 megawatts. A que tem maior quantidade de turbinas está na China e conta com apenas nove, cada uma delas com somente 31 MW. No Japão há uma hidrelétrica que tem turbina com potência maior, de 66 MW, mas só conta com seis turbinas. Santo Antônio terá 50 turbinas e Jirau 52, com potência entre 70 e 75 MW cada uma. Serão, portanto, e de longe, as maiores hidrelétricas com turbinas bulbo do mundo.
Esse é um dado a ser examinado com acuidade por causa do seu aspecto vanguardista. Qual o preço de ter uma barragem de baixa queda numa usina de grande potência, termos que até agora nunca foram combinados em qualquer lugar do mundo? Essa vantagem tem algum efeito colateral negativo? Um leigo, como eu, não sabe. E os especialistas ainda não foram cobrados sobre uma resposta. Convém formulá-Ia em público. E cobrar as respostas.
Os autores dos projetos de Santo Antônio e Jirau declaram que raciocinaram com base em mais três condicionantes, além da limitação dos níveis máximos de água dos reservatórios: não inundar território boliviano, incluir.as eclusas e desenvolver soluções de engenharia que produzam menos impacto ambiental. São boas condicionantes. Ainda falta testá- Ias até que se mostrem verdadeiras.
Nada indica, porém, que a Bolívia tenha razões para se queixar dos projetos se eles não prejudicarem a migração dos peixes, não retiverem sedimentos e assegurarem a navegabilidade do Madeira a jusante. A gritaria, na onda da reação que houve dentro do Brasil, é mais um lance de sagacidade do presidente Evo Morales.
Já a questão das eclusas não está bem resolvida. Embora previstas nos dois projetos hidrelétricos, elas não fazem parte do orçamento das obras da hidrelétrica. É o mesmo erro de Tucuruí. Ele só poderá ser corrigido se o sistema de transposição for obrigatoriamente associado à geração de energia. Em compensação, Santo Antônio e Jirau representam um retrocesso em relação a Tucuruí por não incluir o sistema de transmissão associado, que existiu no Tocantins, embora apenas em linha singela, que persistiu nessa condição por muito tempo, abusando do risco de interrupção por acidentes. A exclusão só é aceitável se as duas usinas do Madeira forem obrigadas a entregar a energia no ponto de geração para consumidores que se instalarem à sua volta, nem que para isso contem com incentivos oficiais (mas não leoninos, como no padrão Sudam). Se a dissociação dos dois orçamentos for simplesmente para não revelar o custo absurdamente alto da transmissão, como já aconteceu no projeto de Belo Monte, no rio Xingu, a manobra não pode ser tolerada. A preço de cinco anos atrás, só a geração de Santo Antônio e Jirau era calculada em mais de 13 bilhões de reais. Pelos mesmos parâmetros, a geração elevaria o custo total para R$ 20 bilhões.
Ao mesmo tempo em que repetem alguns erros e introduzem erros novos, os dois projetos apresentam inovações positivas, ou pelo menos abrem a possibilidade de se avançar na configuração de empreendimentos hidrelétricos que não causem danos irreparáveis ao meio ambiente; não sejam deficitários socialmente e não acarretem o desenvolvimento do subdesenvolvimento da Amazônia.
Não é que já estejam enquadrados nesse novo figurino. Podem até, no apurar das contas, não caber em seus parâmetros. O que não se pode é simplesmente rejeitá-los com base nas outras experiências hidrelétricas na região, cujo saldo é negativo.
Como há novidade, é preciso encará-Ia no novo posicionamento. Não fui eu que mudei, pois: foram os projetos. 
Fonte:
Lúcio Flávio Pinto, paraense, 57 anos (2007), é jornalista profissional há 41 anos. Também é sociólogo, formado pela Escola de Sociologia e Política de São Paulo. Tem sete livros individuais publicados, além de participação em várias obras coletivas. Foi professor visitante na Universidade da Flórida, em Gainesville, Estados Unidos, e na Universidade Federal do Pará. Trabalhou em alguns dos principais órgãos da imprensa brasileira, como as revistas Veja e Istoé e o jornal O Estado de S. Paulo. Recebeu quatro prêmios Esso, dois prêmios Fenaj (da Federação Nacional dos Jornalistas Profissionais) e o Colombe d'Oro per la Pace, um dos mais importantes conferidos na Itália a jornalistas. Atualmente é editor do Jornal Pessoal, uma publicação quinzenal alternativa, editada em Belém, que circula há quase 12 anos.

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