Quarta-feira, 31 de outubro de 2007 - 09h10
Nemo me confidenciou que, fora certos prazeres íntimos e gastronômicos, nada lhe imprime maior deleite do que, pela manhã, abrir a porta do apartamento e encontrar, sobre o tapete que lhe guarda a soleira, o jornal do dia. É como se, a cada manhã, virada uma página de nossa existência, encontrasse ali o novo momento da cidade, do país, do mundo.
Enquanto lhe preparam o café, aboleta-se confortavelmente numa poltrona e percorre os olhos nas manchetes do dia. Lê as chamadas políticas, que lhe soam repetitivas e, por vezes, vergonhosas, como se os nossos representantes no poder público vivessem numa esfera protegida da ética e, sobretudo, da voz dos que os elegeram. Toma ciência dos acidentes de trânsito, das novas descobertas científicas, da oferta de sofisticados equipamentos eletrônicos, das previsões meteorológicas.
Sente-se constrangido ao visitar a página policial com os assassinatos em série, cujas vítimas são, em geral, pobres e negros, num menoscabo completo do valor da vida humana. Alegra-se quando se depara com a boa nova de que a Polícia Federal desmantelou mais uma quadrilha de criminosos de colarinho branco. Detém-se com atenção nas páginas dos esportes, à procura de detalhes sobre seus times preferidos, e lê atento os colunistas que, informados dos bastidores, comentam a crise dos clubes e o mercadejar de jogadores a preços exorbitantes.
Não lhe agradam os editoriais, raramente neles se detém, como se soubesse de antemão a opinião do jornal sobre os assuntos enfocados. Para Nemo, editorial deveria vir em pequenas doses na mesma página em que figuram as notícias, como elucidação ou contraponto ao fato. Contudo, lê com avidez e interesse seus colunistas preferidos, como a confirmar, num texto bem escrito, uma opinião que também é sua, ele que carece de meio e forma adequados de expressão.
Passa ao segundo caderno, onde figuram as colunas sociais, as novidades do mundo artístico, o lançamento de livros, CDs, peças de teatro e filmes. Ainda que pouco saia de casa para assistir aos espetáculos em cartaz, agrada-lhe saber das novidades. Observa as fotos das colunas sociais, onde o estranho mundo da elite aparece sempre sorridente e perfumado (jura que chega a sentir-lhe o cheiro), como se jamais as celebridades sofressem de dor de barriga, de desespero diante de um filho drogado, de mágoa por terem sido preteridas na lista de convidados de uma recepção vistosa.
Nemo se distrai com as histórias em quadrinhos, gosta em especial do Hagar, o Horrível e, por vezes, ocupa-se com as palavras cruzadas e, de uns tempos para cá, com o sudoku.
Se uma notícia lhe parece importante, rasga a página e guarda-a numa gaveta de recortes amarelados que a faxineira insiste em dar cabo, mas ele, por razões que não sabe explicar, acha que um dia poderão ser úteis. De fato, outro dia um amigo insistiu que a Segunda Guerra Mundial derrotou Hitler e o nazismo graças ao desembarque das tropas aliadas, lideradas por EUA e Inglaterra, na Normandia. Nemo revirou pilhas de jornais velhos, respirou poeira, e não encontrou o artigo de um analista europeu, anticomunista, onde admite que Hitler perdeu a guerra graças à resistência dos soviéticos. Combateram com a mesma garra com que, no século XIX, expulsaram da Rússia as tropas de Napoleão, e em janeiro de 1945, entraram em Berlim antes dos ocidentais.
Nemo fica desapontado quando o jornal atrasa e o tapete da porta amanhece descoroado. Ansioso por novidades, reclama pelo telefone e, antes que o atendam, já envia a cozinheira à banca mais próxima.
Nemo tem consciência da dificuldade de o jornal competir com a agilidade, em tempo real, da TV e da internet. Ainda assim, apraz-lhe agarrar aquele maço de folhas nas mãos, sentir o cheiro morno do papel, ouvir o farfalhar da página dobrada, ler os fatos nas entrelinhas, sabendo que as notícias haverão de respeitar-lhe o ritmo. Pode saborear o café sem que elas lhe fujam da vista.
Frei Betto é escritor, autor, em parceria com Mario Sergio Cortella, de “Sobre a esperança” (Papirus), entre outros livros.
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