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A Senhora de la Palice


 
Roberto Smeraldi*

O Senhor de la Palice, marechal do rei Francisco I de França, se tornou desde o século XVI ícone da obviedade irrelevante, da afirmação de alguma verdade tão redundante que acaba desviando do que interessa. Tanto que seu epitáfio reza: “se não tivesse morrido, ainda estaria vivo”. Uma típica argumentação lapaliciana é aquela, por exemplo, de negar terminantemente o que ninguém disse, na ausência de elementos para poder afirmar alguma coisa sobre determinado assunto. A história mostrou depois que a fama do marechal foi causada mais por seus ajudantes de ordens: mas até hoje ele carrega o estigma.

Algo do gênero parece ter ocorrido com assessores da nossa presidente em ocasião de sua recente passagem pelos estados de Rondônia e Acre, para sobrevoar áreas alagadas. Mandaram a presidente afirmar em tom alto que “é absurdo atribuir às usinas a culpa pela cheia do Madeira”. Como discordar disso? Ora, se há muita água é porque houve muita chuva nas cabeceiras. Trata-se de uma frase tão óbvia que obrigaria até uma liderança dos black-blocs e o dono de um banco multinacional a assinarem juntos.

A visita da presidente visava atender obrigações imediatas de chefe de estado, como aquela de conhecer de perto uma conjuntura de calamidade e a de anunciar os devidos socorro e solidariedade para as populações atingidas. O que ela fez, ou prometeu fazer logo. Possivelmente queria se limitar a isso. Ou, caso quisesse ir além, inclusive para assegurar que é preocupação presidencial saber o que pode acontecer no futuro frente a situações como esta, podia determinar que se realizem estudos e projeções de cenários que deixaram de ser realizados, ou utilizados, quando do licenciamento das usinas.

É fato que os gestores do licenciamento na época assumiram a responsabilidade explícita de desconsiderar o parecer assinado por seu próprio corpo técnico, que alertava para a falta de estudos sobre os impactos do novo regime hidrológico nas beiras do rio à jusante do empreendimento (é o caso de Porto Velho). É também fato que os mesmos gestores assumiram a responsabilidade de desconsiderar parecer contratado pelas próprias empresas, a pedido do Ministério Público, que alertava sobre o efeito da curva de remanso (é o caso da Bolívia e de parcela de território brasileiro a montante de ambas barragens, incluindo a rodovia). E ainda é fato que tais gestores assumiram a responsabilidade de desconsiderar as consequências da mudança de localização da usina de Jirau sobre a cota do reservatório de Santo Antônio, negando de antemão que existissem. A tais três fatos, acrescente-se que se resolveu não estudar, talvez por considerá-lo improvável, um cenário com vazão como aquela que acabou sendo atingida logo neste primeiro ano após o início da operação de ambas usinas.

Anunciar que, embora tardiamente, se estudariam tais questões com consistência e transparência, pelo menos com o objetivo de controlar ou limitar ocorrências futuras, seria a opção mais prudente por parte da presidente. Até porque estaria alinhada com a decisão cautelosa do Operador Nacional do Sistema elétrico (ONS), que há semanas já resolveu suspender a geração de energia nas usinas em decorrência da atual situação. Ao desconhecer – pois ninguém estudou – quais impactos as usinas têm sobre um cenário de vazão como aquele atual, o ONS entendeu que devia eliminar o risco de agravar ainda uma situação já emergencial. Das duas, uma: ou o ONS agiu irresponsavelmente, ao interromper indefinidamente um serviço importante para o país e que sabidamente não guarda relação com a calamidade, ou agiu com prudência, justamente porque ignora como se dá esta relação.

E aqui vem o assunto de interesse público que a assessoria palaciana não deveria dispensar com motes lapalicianos. Não interessa à sociedade discutir da culpa da cheia, e sim saber como o conjunto das usinas interage com ela. Lembre-se que neste ano, ou seja no início de seu ciclo de operação, estamos ainda lidando apenas com a variável água. Progressivamente, nos anos vindouros, passaremos a lidar com a variável água e com a variável sedimentos, na medida em que os mesmos se acumularem, pois aquele sobrevoado pela presidente é o rio com maior carga sedimentária do mundo, contribuindo com apenas 15% do volume de água do Rio Amazonas, porém com 50% de seus sedimentos.

É isso que Ministério Público, Defensoria Pública, OAB, assim como instituições da sociedade civil organizada que se dedicaram a estudar o tema querem saber. É isso que o ONS assume desconhecer quando interrompe a geração elétrica, apesar de se tratar do momento mais favorável para a mesma, e portanto com expressivos prejuízos econômicos resultantes (até porque as usinas já custaram aos cofres públicos mais do que o dobro do valor previsto quando se decidira construi-las). E isso também pode acabar com a peculiar troca de acusações entre os dois consórcios – ambos com empresas estatais como principal acionista – que não perdem ocasião para reforçar que, se fizeram algo errado, só foi para se defender de algo pior feito pelo outro.

O que a cheia histórica do Rio Madeira sugere é de acabar logo com este desconhecimento. O pior cenário é o de conviver com uma perspectiva de vulnerabilidade episódica do território nas cheias – que inviabiliza qualquer investimento e planejamento – e, ao mesmo tempo, com o deligamento periódico das usinas nos momentos mais propícios para a geração elétrica, como forma de mitigação parcial dos impactos a jusante, mesmo sem saber se isso tem efeito.

* Roberto Smeraldi, 53, jornalista, é diretor da OSCIP Amigos da Terra – Amazônia Brasileira.

 

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