Para abrir o projeto Cesta Cultural do Sesc o cantor e compositor Binho preparou o show “Depois da Chuvas”, que estréia dia 13 de julho, às 20h30m, no Teatro Um do Sesc. O show terá uma reapresentação no dia 20. Trata-se de um espetáculo que mistura música, poesia, intervenções de artes plásticas e vídeo, costurados com a sensibilidade e inventividade do artista.
No roteiro estão canções que contam a trajetória do artista. Do início da carreira, “Lavadeiras”, “Descendo o Madeira” e “Cunhatã”, que na voz da saudosa Nega marcou a trilha sonora do antológico vídeo “Porto das Esperanças”, de Beto Bertagna. As mais recente são as inéditas “Pastiche”, “Vazio Azul” e “Ritos & ais”. “Composições como “Porto do Velho”, do grupo Radar, sucesso na década de 80 e “Terreiros”, do compositor Laio, resgatam preciosidades da música local”, conta Binho.
A carreira de Binho como músico sempre esteve aliada à poesia – ele é professor de literatura na Universidade Federal de Rondônia e teve um de seus livros “Arabescos Aéreos” indicado como obra de dois vestibulares da Unir – por isso não deixa de acrescentar nas apresentações a performance de poemas.
O show conta com a participação especial de vários artistas. Entre os interpretes Rinaldo Santos, compositor e vocalista da banda Soda Acústica, Boca, da banda Quilomboclada e Ceiça Farias, que atualmente grava seu CD com duas canções de Binho. Dois artistas plásticos, Júlio Carvalho e Joesér Alvarez, terão obras projetadas em vinhetas durante o show. O trabalho de mídia é assinado por Carlos Metal. Trabalhos dos fotógrafos Mário Venere e Paulo Berton também serão usados na intervenção midiática. Michele Saraiva fará uma performance. Na banda que acompanha Binho, os multiinstrumentistas Remis Michel (flautas, ritmos e efeitos percussivos) e Ronald Vasconcelos (cavaquinho, guitarra e violão).

“Isca Arisca” é base para “Depois das Chuvas”
Do antigo projeto do SESC “Grito de cantadores” até nossos dias, o compositor, músico e intérprete Binho nunca se fez ausente das manifestações culturais de Porto Velho. Participou como compositor do disco Porto das esperanças, no começo da década de 90. Com Augusto Silveira, Bado, Laio e Nega, gravou o histórico CD Amazônia em canto. Teve ainda uma de suas músicas incluída na coletânea que resultou da 5ª Cultural, projeto do Banco da Amazônia, em Rondônia. Participou ainda de importantes eventos musicais no cenário nacional como, por exemplo, o I Seminário da Música Instrumental Brasileira, em Ouro Preto-MG, Seminário cultural da Amazônia, em Belém-PA, e o Festival de Inverno de Campos do Jordão-SP, de caráter internacional.
O cd Isca Arisca, lançado há um ano, com patrocínio do Banco da Amazônia, é um resumo sonoro do percurso do autor portovelhense em sua caminhada musical. Sem abandonar as raízes amazônicas lança-se no pop, utilizando como elementos a fusão e a diversificação de gêneros. O disco é marcado pelas composições atuais e inéditas. Resgata pérolas ligadas ao início da carreira do compositor como “Cunhatã” e “Aporrinhadamente apaixonado”, que também estão no Show “Depois das Chuvas”.
O CD está dividido em três momentos climáticos, demarcados por poemas que dão a tônica litero-musical que sempre marcou as performances do cantor. No show elas não ficam de fora.
Os músicos que gravaram com Binho são de altíssima sensibilidade e qualidade técnica, o que dá ao disco uma sonoridade ímpar, capaz de conquistar o ouvinte desde os primeiros acordes. Destaques para o músico Chiquinho Chagas (acordeom), conhecido nacionalmente por tocar em discos e shows de Cássia Eller, Elza Soares, Moraes Moreira e Naná Vasconcelos.
Os arranjos e a direção musical tanto do CD, quanto do show são do guitarrista Ronald Vasconcelos. “Ronald tem o cuidado de manter a marca inconfundível das minhas composições”, declara Binho.
Ficção para uma biografia autorizada
Nasci no décimo quarto dia do primeiro mês do último ano da quinta década do século passado. Reza a lenda que foi no meio de uma manhã ensolarada e invernal, na qual gaivotas brincavam de inventar fissuras sonoras no incomensurável azul. A cidade e a maternidade beirando o Madeira – pleno de barro e troncos trazidos pelo degelo andino – oportunizaram ao choro recém-nascido misturar-se ao sussurro das águas no roçar das ribanceiras e ao esguicho dos botos nos remansos e enseadas. Vem daí, acredito, o hábito de expressar e referenciar a linguagem em palavras, imagens e sons.
Menino, preferi creditar à fantasia grande parte do meu olhar o mundo. Os papagaios empinados ao vento de julho, flechando ao sabor das peripécias das correntes, tramavam, na cumplicidade entre a linha e o papagaio, a condução do vôo no olhar do menino. Ver para mim virou voar. Ler para mim virou voar. Voar para mim virou transcriar as impressões que apreendemos do mundo em palavras. Assim venho aprendendo o jogo da linguagem.
Comecei copiando os meus autores preferidos. Interiorizava a mágica e com ela construía as asas que me possibilitariam superá-la.
Nesse processo de assimilação e superação, produzi artisticamente em várias modalidades de linguagem. Compus canções (com gravações efetuadas em vinil, CD e trilhas sonoras de vídeos), escrevi e apresentei peças teatrais, e escrevi e publiquei em livros de poesia e prosa.
Da poesia resultaram os livros Remo a duas mãos (em parceria com o poeta Basinho, na década de oitenta, pela editora Pannartz), Poukas, Roukas e Loukas (Mimeografado e ilustrado pelo compositor roraimense Armando de Paula, também da década de oitenta) e Na ponta da língua (pela editora Miguilim, década de noventa, adotado pela FNLIJ). Em 2003, pela EDUFRO (Editora da Universidade Federal de Rondônia), publiquei o livro de poesia Arabescos Aéreos, adotado para o vestibular de 2004 e 2005 da UNIR. Na prosa, a produção ligou-se mais ao gênero ensaístico, como a escritura em parceria com o poeta Carlos Moreira no livro Olhares sobre a Amazônia (pela Edufro, em 2001).
Continuo, apesar dessa aparência de senhor que agora me acompanha, o mesmo menino em busca dos sortilégios e encantamentos incrustados nos jogos da linguagem poética. Sei que a mágica é uma técnica que transcendeu os limites da racionalidade. Portanto, a poesia que me freqüenta está em constante movimentação e motivação na busca de garatujas e tartamudeios que atualizem a língua da tribo dos homens.
Continuo o mesmo menino, mas quando crescer quero ser boto tucuxi e ficar encantando uiaras no vai-e-vem da correnteza dos versos.
Poema performance de Binho
Euterpe terapia
cateretê
lundu
maxixe
&
modinha
samba
sambossa
sertanejo
&
chorinho
mpb
mpbrega
raiz-pop
&
abobrinha

Em todos os shows que você faz há uma preocupação com uma concepção de espetáculo. Qual é a de "Depois das Chuvas"?
A concepção do Depois das chuvas tem a ver, em primeiro lugar, com a questão climática da região norte, na medida em que o homem amazônida costuma começar seus projetos sempre depois das chuvas, quando a preguiça proporcionada pelos meses de intensos torós vai aos poucos cedendo espaço ao despertar existencial do caboclo. Tal despertar resulta da estiagem que se estabelecerá até que as próximas chuvas retornem. A concepção do espetáculo, nesse sentido, é sazonal. Na perspectiva metafórica, tem a ver com o momento em que me encontro, momento em que tento retomar o rítmo de vida e criação que sempre tive e que as acontecências do mundo houveram por bem quebrar, ou melhor, brecar. Sem entrar em maiores detalhes, Depois das chuvas tem uma concepção, a um só tempo, sazonal e existencial. É a estação em que espero retomar o trem da vida. Estes sentimentos dão ao espetáculo a natureza poética, visual, musical e, acima de tudo, interacional necessária. É a minha retomada de diálogo com o mundo.
Você costuma convidar outros artistas para fazerem parcerias em seus trabalhos. Pra você arte é soma ou tem de existir também uma marca pessoal, uma individualidade?
Sempre tive essa coisa comigo de dividir os espaços que a arte que produzo consegue com outros artistas que estão brigando por seus espaços. Tenho uma preocupação muito grande com o rumo que a cultura local vem tomando. Rumo que, às vezes , assustadoramente, parece ser nenhum. Nessa perspectiva, acredito que o fato de chamar outros artistas para compor comigo os espetáculos que produzo é a forma que encontrei de resistir, de manter o sonho de uma cultura rondoniense projetado na minha tela mental. Não se trata de regionalismo ou xenofobia, mas da certeza que, em meio a essa dita cultura globalizante e alienante, existe um espaço que precisamos ocupar com a nossa identidade cultural. Para ocupá-lo, precisamos mostrar ao nosso povo o que os seus artistas são capazes de produzir. Assusta um pouco esse papo de que um povo sem cultura é um povo sem identidade. Então, como sei que sozinho não se consegue muito coisa, tento comungar com os meus amigos, artistas das mais diversas áreas, o sonho da construção de uma identidade amazônida. A arte é a soma dos nossos sonhos mais secretos.
Nos seus shows você sempre usa performances de poemas seus e até de outros poetas. Em "Depois das Chuvas" não é diferente, tem até poema do Mario Quintana musicado por você. E de certa formas as letras das canções revelam essa sua visão de mundo. É mesmo uma visão de mundo?
Poesia e música são as duas entidades estéticas que sempre estiveram ao meu lado. Não consigo pensar uma sem a outra. Talvez venha daí este meu modo de olhar o mundo. E a visão que tenho é a de que o mundo está passando por uma crise de sonhos. As pessoas dicilmente embarcam na busca de realizarem seus sonhos e ideais verdadeiros, mesmo porque estão sem os dois. Os sonhos e os ideias se tornaram tão clichês que você pode encontrá-los mumificados e formulados em qualquer livro de auto-ajuda. Parece que, entre os danos causados, a homegenização global apagou em muitos de nós o dom de sonhar e ter idéias. E, por extensão, apagou também o dom de voar. Por isso,acredito que a poesia e a música, apesar de não serem o energético do comercial enganoso, podem nos devolver o par de asas esquecido em algum lugar dentro de nós e nos fazer voar outra vez. Talvez não seja uma visão de mundo, mas uma tentativa de melhorar o visual do mundo. Ave, Mário Quintana!
Você já fez trilhas para vídeos, para espetáculos de teatro, de dança, poemas para exposições de artes plásticas, performances teatrais em bares e praças e ainda ensina e escreve sobre literatura como professor da Unir. O que ainda falta?
Falta muita coisa. Pode ser até que este seja o meu alcance. Mas, pode ter certeza de uma coisa: eu gostaria de ter feito muito mais pela cultura do povo que amo e ao qual sirvo como instrumento da arte e do conhecimento. Eu sei que é muito pouco o que fiz e faço. Mas, vou continuar fazendo porque tenho a consciência que este fazer é parte de um processo histórico e cósmico que repercutirá nas gerações que estão vindo, ou que já estão aí, com a força dos novos tempos. Alguns resultados não acontecem de uma hora para outra. É preciso amadurecê-los. Quando crescer quero ser o porta-voz da consciência social dos rap-repentes do Quilomboclada e da inventividade poética e sonora do Soda Acústica. Quero também ser boto tucuxi e namorar as uiaras que moram na voz da Ceiça Farias e da Elisa Cristina. Acredito nos espíritos evoluidos e criativos que estão surgindo no cenário artístico local. E rezo todas as noites para que os rondonienses e os rondonianos também acreditem.
Na sua tese de mestrado o objeto de estudo e reflexão foi o músico e poeta Arnaldo Antunes, um roqueiro importante na década de 80 e um compositor e poeta mais significativo ainda a partir da saída do grupo Titãs. A identificação com Antunes reflete um pouco a sua trajetória como músico, que começa começa como roqueiro e depois experimenta o caminho da fusão?
O Arnaldo Antunes foi o mote para que eu pudesse falar do tempo em que vivemos. A simultaneidade artística que sempre busquei se realiza, em parte, na sua obra. O que me levou à certeza de que podemos ser múltiplos sem perder a identidade. A diferença é o que nos aproxima e não a semelhança. As divergências são mais instigantes que as convergências. Todo mundo sabe que a minha formação musical está intensamente ligada a cultura e a contracultura do rock. Alguns até estranham o fato de um roqueiro de carteirinha compor músicas tão estranhas ao gênero. Sempre digo que não se pode negar a fonte que nos mata a sede. Continuo escutando rock'n'roll diariamente. O rock mantém acesa em mim a chama da criação. E se você levantar a orelha com atenção verá que por trás de qualquer gênero que eu componha o acorde roqueiro vibra com a intensidade dos "estranhos festivais". Meu regionalismo tem a ver com woodstock. O grande lance é deixar a fusão virar confusão. Tenho pouco controle sobre o que componho. Às vezes sou Leão do Norte, às vezes sou Nitro, às vezes sou Anjos da Madrugada. E mesmo sendo tantos e tonto não deixo de ser o mesmo cara. Como disse antes, o Arnaldo Antunes foi apenas o mote para que pudesse falar da universalidade que nos freqüenta. É como já poetaram o Boca e o Samuel, dois beradeiros pirados: somos "caboclos digitais". É a sabedoria dos novos.
Você desenvolve em sua dissertação de mestrado o conceito de simultaneidade em Arnaldo Antunes. Como essa questão influencia o seu trabalho?
A simultaneidade é o que nos mantêm unos. É a fragmentação que nos dá consistência. A minha arte se reparte e cada parte é tão inteira que sobrevive sem desastres. Na verdade o conceito simultaneísta é tão antigo à arte que poderia ser aplicado a qualquer criação artística em qualquer tempo. Mas, faz de conta que ele (o conceito de simultaneidade) me influencia a cada gesto de criação.
Para finalizar o que o público pode esperar de "Depois das Chuvas"?
Acredito que o público pode esperar de tudo. Eu diria, no entanto, que ele pode esperar um espetáculo simples sem ser simplório, sofisticado sem ser complexo, verdadeiro sem ser arrogante, fragmentário sem ser pedaço. Nós, os artistas que compomos o Depois das chuvas, queremos mesmo é nos divertir juntamente com o público. Brincar de cantar e recitar juntos. E, se der tempo, sermos felizes em comunhão. O Cidade Negra canta que "Deus é a vontade ser feliz". É o que desejamos para o público e para nós: a eterna vontade de ser feliz.