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Yêdda Pinheiro Borzacov

OS ARIGÓS


Os nordestinos, principalmente os cearenses, migraram para a Amazônia no período áureo da borracha, no século XIX, e quando da eclosão da 2a Guerra Mundial, para trabalhar em seringais nativos, como "soldados da borracha". Fugindo do flagelo da seca que destruía tudo o que possuíam, Porto Velho foi uma das cidades amazônidas que recebeu esses sofridos homens, no segundo período de migração, e que chegavam em navios-gaiola do SNAPP, aglomerados no pequeno espaço a eles destinados, dormindo nas redes atadas umas por cima das outras, na 3a classe. Aqui chegavam vestidos com blusa larga de algodão, calça de mescla, alpercata e chapéu de palha virado, em estado de extrema miséria, sem quase condições de sobrevivência. Eram colocados em dois enormes barracões cobertos de palha, localizados no bairro da Arigolândia, e ali passavam dias, e às vezes semanas, até serem encaminhados para os seringais dos Vales do Madeira e do Guaporé.

Esses homens rudes e simples foram apelidados, não se sabe por quem, de arigós e, o bairro formado pelos barracões e casinhas de madeira e de palha, destinadas aos guardas-territoriais, foi balizado pelo povo da cidade de Arigolândia, nome conservado até os dias atuais.

E por que esses homens que contribuíram para povoar as cidades de Porto Velho e Guajará-Mirim e os seringais dos nossos vales foram apelidados de arigós? Certamente é porque o vocábulo significa, segundo o Professor Martins Santana: "Ave de arribação que habita as lagoas do sertão nordestino..." Essa ave vive mudando de lagoa, sem ponto certo, sem jamais se fixar.

Francisco Alencar, conhecido como Chicó, era proprietário, em sociedade com o irmão Joaquim (casado com a popular Santinha Alencar), de um seringal, no rio Abunã, o "Orion", e contava que os seringalistas escolhiam os futuros seringueiros pelas pernas. Eles eram reunidos nos barracões, no local onde é hoje o Quartel do 1° Batalhão da Polícia Militar, e os seringalistas examinavam suas pernas. Se fossem grossas, eram rejeitados. Pernas finas eram o indício peculiar que o nordestino seria bom seringueiro, saberia abrir "estrada" e percorrê-la todos os dias na coleta do látex. Comentava sorrindo que os candidatos à seringueiros, pernambucanos e paraibanos não eram bem aceitos, tinham fama de brigões.

Pouco lembrado, o trabalho dos nordestinos na Amazônia rondoniense foi um elo muito importante no desenvolvimento do futuro Estado de Rondônia. Apenas utilizando braços, terçados e facões, eles abriram estradas, colheram o látex das seringueiras, trabalharam de sol a sol, tendo por recompensa apenas um humilde teto para morar, pois o que ganhavam eram descontados pelo patrão num encontro com gêneros alimentícios e roupas que eram forçados a adquirir por preços proibitivos no armazém do próprio seringalista-patrão. Nunca tinham saldo, e assim eram obrigados a ficar nos seringais para quitar a impagável dívida, cultivando a borracha, sempre explorados e sonhando com dias melhores.

Graças ao trabalho dos nordestinos, nos seringais da Amazônia, o Brasil chegou a figurar com 40% de toda a borracha nas estatísticas do comércio exterior. O declínio do preço da borracha brasileira começou em decorrência da cultura desenvolvida no continente asiático, principalmente na Índia, para onde levaram, às escondidas, mudas e sementes da nossa seringueira. Os ingleses Hooker, C. R. Marklam e Henry A. Wickman, componentes de uma comissão nomeada pelo governo da Índia, estiveram na região do rio Tapajós, e dela conduziram para aquele continente as sementes e mudas de nossas seringueiras, conforme atesta o jornal inglês "The World", em sua edição de 16 de agosto de 1876. As mudas foram remetidas para Londres e a seguir cultivadas em estufas do "Jardim Botânico" da capital inglesa e, em agosto, enviadas para a Índia Inglesa, num total de 2.500 pés. Diante da proximidade da Índia no mercado europeu, a borracha brasileira caiu de cotação em razão do valor monetário do transporte.

Entretanto no auge da 2a Guerra Mundial, os países aliados ficaram desprovidos da borracha, em virtude da ocupação japonesa feita na Malásia. Foi quando ocorreu, em 6 de setembro de 1943, os Acordos de Washington, ocasião em que os Estados Unidos financiaram os seringalistas da Amazônia por meio do Banco da Borracha, recém-criado, visando aumentar a produção da borracha, cabendo ao governo brasileiro, a contratação de homens para o trabalho extrativo. Assim nasceu a expressão "soldado da borracha", dado pelo próprio Exército Brasileiro, e o nordestino arigó, cheio de fé e esperança, veio para a região amazônica onde cumpriu com o seu dever para com a pátria, aumentando a produção da borracha.

Terminada a 2a Guerra Mundial, o "soldado de borracha", o arigó, espremido tal qual um limão, foi jogado fora, totalmente sem préstimo. Não tinha direito à pensão, totalmente esquecido, ele que havia sido recrutado pelo Governo Brasileiro - Decreto Lei n° 5.813 de 13 de setembro de 1943. Os heróis anônimos ficaram ao léu, na pindaíba, como diz o adágio popular, sem eira nem beira, sem direito ao benefício da aposentadoria. Viviam esperando a pensão que não chegava nunca apesar da Constituição de 1988 garantir que os "soldados da borracha" receberiam dois salários mínimos. O tempo passava e os humildes arigós de Rondônia nada recebiam. Surgiu então uma pessoa iluminada, um homem probo e correto, amante das leis e das instituições - o Promotor Público Jayme Ferreira, da 12ª Promotoria de Porto Velho que, durante anos, levantou e pesquisou os documentos do Exército e do Arquivo Nacional do Rio de Janeiro, conseguindo cadastrar doze mil, seiscentos e trinta e dois "soldados da borracha", entre nativos da Amazônia e arigós, trabalho que permitiu cerca de três mil deles, ou os seus familiares, recebessem o benefício justo que o Governo Brasileiro vergonhosamente havia anos lhes negava.

Meu grande amigo Jayme Ferreira foi uma pessoa especial, pródigo em expandir amizades. Não criava limites ou fronteiras na execução dos seus projetos e vibrava com cada vitória conquistada.

O trabalho de Jayme Ferreira marcou a história social de Rondônia. A devoção desse bravo homem das leis que sempre soube, ser acima de tudo, um abnegado e devotado servidor do povo humilde, principalmente do soldado da borracha, vitimado pelas injustiças sociais, serviu, ao menos, para minorar a situação desses verdadeiros heróis, por tanto tempo injustiçados.

Participei, em dezembro de 1999, da emocionante festa promovida por ele, no Ypiranga Esporte Clube, em Porto Velho, em homenagem aos soldados da borracha, ocasião em que houve o lançamento do seu magnífico livro, "Arigós - A Luta Pelo Social", e me lembro que, naquele momento, pensei e falei ao microfone: abre-se a janela da história e o vulto imenso de Jayme Ferreira projeta-se sobre os seringais de Rondônia, pensando, ainda, no que poderia fazer pelos humildes e necessitados, ele que nunca pensa no que os outros podem fazer por ele.

O homem imortal é aquele que nunca é esquecido e Jayme Ferreira é imortal. Recebe, certamente e diariamente, as benções dos familiares dos arigós beneficiados pela pensão mensal graças ao seu árduo, incansável e persistente trabalho, projeto de grande alcance social. Resgatou a ingratidão, o silêncio do governo brasileiro para com esses valentes e bravos seringueiros, que concorreram para a vitória das forças aliadas na 2a Guerra Mundial com as suas armas: espingarda, poranga, faca, bacia, defumador, terçado e tijelinhas para colher a seiva da "árvore chorona" - a seringueira.

* O conteúdo opinativo acima é de inteira responsabilidade do colaborador e titular desta coluna. O Portal Gente de Opinião não tem responsabilidade legal pela "OPINIÃO", que é exclusiva do autor.

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