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Yêdda Pinheiro Borzacov

GUAJARÁ-MIRIM, BERÇO RONDONIENSE DA CULTURA E TRADIÇÃO



Yêdda Pinheiro Borzacov

Nascida em razão de ser porto de estocagem, embarque e desembarque de produtos de exportação, sendo escolhida para ponto terminal da Madeira-Mamoré, em território mato-grossense; crescendo como uma cabocla ribeirinha sapeca, embalada como uma embarcação na oscilação das águas do Mamoré e sentindo o aroma da floresta; presenciando o revoar dos bandos de pássaros exóticos que constroem os seus ninhais, estrategicamente distribuídos pela mãe natureza; ouvindo a melodia do ir e vir das águas dos rios e igarapés e aninhada no regaço da serra dos Pacaás-Novos, Guajará-Mirim, cidade símbolo da tradição de Rondônia, tem um ar de encantamento e mistério.

Cidade símbolo, porque representa o estado e é guardiã dos percalços de sua História.

Cidade tradição, porque desfralda no seu dia-a-dia, a cultura – húmus fértil que alimenta e amalgama o sentimento que, a nós rondonienses, nos marca e nos une: o da rondonidade.

Revisitando a História nas suas fontes, nos registros documentários, encontramos referências básicas que nos ajudam a desenhar o perfil histórico e cultural da bela Guajará-Mirim.

O seu nome Guajará (antigo Quadro e posteriormente Vila de Espiridião Marques), recebeu-a devido a existência da cachoeira Guajará-Mirim, no rio Mamoré, a poucos quilômetros do terminal portuário da cidade, e cujo topônimo, de origem tupi, significa, para alguns, “cachoeira pequena” e, para outros, “campos das yaras ou sereias”.

Em termos de pioneirismo, Guajará-Mirim desponta destemida, guerreira, valente, em um feito inédito ocorrido em 1937, quando um grupo idealista, que fazia conviver dentro de si o realismo e o sonho, encaminhou manifesto ao Presidente Getúlio Vargas, reivindicando o desmembramento da área, visando à criação de um território federal, dando ênfase ao desprezo que os governos de Mato Grosso e do Amazonas tratavam as regiões do Guaporé, Mamoré, do alto e parte do baixo Madeira. Nada faziam para propiciar o desenvolvimento dessa área que atravessava períodos difíceis. A memória dos nomes que assinaram o manifesto não pode ser esquecida... Paulo Cordeiro da Cruz Saldanha... Pedro Struthos, o Grego... Alkindar Brasil de Arouca... Emílio Santiago... D. Francisco Xavier Rey... Manuel Boucinhas de Menezes... os jovens irmãos Paulo e Christina Struthos... Vitor Arantes... Ary Tupinambá Penna Pinheiro... Almerindo Santos... Graciliano Maia... Omilio de Melo Sampaio... Tancredo Lopes Braga, Promotor Público... Eliezer Nunes Arouche... Teófilo Nicolau... Omar Morhy... Sandoval França... Alberto Chama... Fares Mesrala... Antonio Peres... Manoel Magno Arsolino... Moacir Pontes... e os irmãos Toufic, Abdon, José e Tanuz Melhem...

Cidade onde era comum escutar nas ruas, no domingo da Ressurreição, a saudação grega:

— Cristós Anéste... (Cristo ressuscitou).

— Alithós – Anéste... (Sim, Ele ressuscitou).

E nas casas gregas havia distribuição de xerotigzna (símbolo da Páscoa), massa de farinha de trigo fina, com 1 cm, cortada e frita, com canela, mel, nozes ou amêndoas raladas, uvas e vinho. Lembro-me que meu avô, Pedro Struthos, não esquecia a tradição da sua terra.

Mosaico cultural de raças, Guajará-Mirim é uma referência não só para o rondoniense, mas para todos que lá vivem e que por lá passaram, memória e história – representação dos valores que ali são cultivados e repassados de geração a geração.

Cidade que espelha a diversidade de sons e interpretações folclóricas, como atestam os bois-bumbás, a festa da solidariedade do Divino Espírito Santo, a romaria fluvial de São Pedro, no Mamoré; o auto de resistência da raça negra – o batuque; a diablada (dança boliviana introduzida na cidade); o pitoresco das rezas da pajelança; as parodias do “Sarará”; as histórias dos pescadores e seringueiros; os mitos e as lendas do boto, caapora, matinta-perera, curupira, mãe d’água, boiúna, mapinguari, tamba-tajá...

Cidade de terras férteis para a castanheira... seringueira... caucho... balata... sorva... massaranduba... açaizeiro... piquiazeiro... sapucaieira... uxiseiro... andirobeira... tucumanzeiro... copaibeira... bacabeira... pupunheira...

Cidade dos quintais onde proliferam plantas e raízes medicinais ao alcance das mãos... o pião roxo... a erva cidreira... a vassourinha... a jurubeba... o mastruço... a arruda... o amor crescido... a mamona... a alfavaca... a chicória... o agrião... a babosa... o sabugueiro... o capim santo... a cabacinha... o quebra-pedra... a erva doce... a salsa... a mucuracaá... o jurubeba... o hortelã... o manjericão... o caruru... a lombrigueira... e sei lá quantas outras que formam a imensa e variada farmácia cabocla amazônida.

Cidade dos povos indígenas... Pacaás-Novo... Jabotis... Canoés... Arauás... Araras... Agurus... Macurapes... Massacás... Tuparys...

Cidade onde acontece o encontro das águas, acidente geográfico em que as águas barrentas do Mamoré se encontram com as águas escuras e límpidas do Pacaás-Novo, provocando paisagem prazerosa e pitoresca...

Cidade de rios onde os botos fazem a sua festa e de matas em que o uirapuru canta soberano, encantando todos os pássaros e animais da floresta...

Cidade fortalecida pela fé depositada em Nossa Senhora do Seringueiro, sua padroeira e protetora...

Cidade de gente boa, generosa e trabalhadeira... descendente de gregos... libaneses... bolivianos... espanhóis... barbadianos... granadenses... trabalhadores da construção da Estrada de Ferro Madeira-Mamoré, monumento que conta a História do Estado...

Cidade que aceitou a divisão do município, entendendo que o espírito de Guajará-Mirim permanecerá latente, vivo, em Nova Mamoré... Costa Marques...

Cidade provinciana e romântica, iluminada no início do século XX por lampiões a querosene...

Cidade de fraternal convivência com Guayaramerín, cidade boliviana, ouvindo-se no dia-a-dia, tanto no comércio, como nas festas de salão, um falar pitoresco de português e espanhol, compreendido por todo mundo... Nosotros somos hermanos...

Cidade dos igarapés de águas cristalinas e perfumadas com o cheiro de mato amassado... Palheta... Soterio... da Anta... Tapado... Dois Irmãos... Santo André... Azul... da Caça... Cearense... Loreto... Taboca... Água Branca... Quatro Galhos... São Francisco... Traçadal... Saldanha Gruta... Acaia...

Cidade que, por volta das 22 horas, fica com as ruas e avenidas vazias... dorme cedo e em silêncio...

Cidade onde se encontram no mercado, ponto prazeroso de encontros, quitutes que traduzem o sabor da cidade: o mingau de banana comprida madura com tapioca... a canjica... o mungunzá... a pamonha... a “salteña”... as tapioquinhas de coco e castanha-do-Pará... os sucos de tamarindo, de cajá e de cupuaçu... os bolos de milho, de macaxeira e de tapioca... o caldo de mocotó que levanta até defunto... e a preciosa relíquia culinária – o vinho de açaí...

Cidade das baias... das Onças... Redonda... da Coca... das Índias... Grande...

Cidade dos bispos franceses-brasileiros, humanitários e cultos que conviveram e convivem harmoniosamente com as lideranças políticas quando essas trabalham pelo bem comum, e as enfrentaram e enfrentam corajosamente quando cometem injustiças com o seu povo...

Cidade que se engalana faceira para o Festival Folclórico “Pérola do Mamoré”, em agosto, disputa acirrada entre os bois-bumbás “Flor do Campo” e “Malhadinho”, grupos folclóricos que empolgam e dividem as torcidas.

Cidade que soube enfrentar, com uma nostalgia telúrica, sua perda de condição de ser sede do segundo município do estado, passando a cultivar, com altivez, a rondonidade – herança maior e guardiã dos valores do chão amado...

Cidade dos lagos de águas leves... das Garças... Deolinda... Calafate... Mercedes... dos Pássaros... do Bom Futuro... das Traíras... Saldanha... Soares... Boca Brava... Manelito... Sete Ilhas... Grande... Santa Rosa...

Cidade registrada nos terrenos literários poético e da prosa, musa inspiradora de tantos vates rondonienses... Matias Mendes... Hélio Struthos Arouca... Lucas Vilar... Edson Jorge Badra... Átila Ibanez... Júlia Almeida... Nilva Ocampo Fernandes... Jesus de Oliveira Brasil... Sonia Conche... Nélio Frazão de Almeida... e bardos nascidos em outras plagas, mas assumidos rondonienses por opção, uma vez que impregnados pela beleza de suas terras, matas, águas e populações tradicionais, cantam esplendorosamente Guajará-Mirim, fiéis ao seu chão e a tudo que nela floresce... Bolívar Marcelino... Miguel Ortiz Ortuste... Paulo Saldanha Sobrinho... Almembergue Miguel da Silva... Juan Carlos Crespo Avaroma... Tereza Chama...

Cidade cujo Hino do Cinquentenário, letra de Edson Jorge Badra e música de Almerindo Santos, é a “cara de Guajará”, e a canção é emocionalmente tão forte que faz muitas vezes o papel de hino oficial...

Cidade que possui um manancial de águas doces com a mesma e ininterrupta voz, desde os tempos da criação e somente durante o verão, são mais silenciosas porque são menos volumosas, ocasião em que se tornam verdes...

Cidade construída de frente para o Mamoré, que abre caminho para formar o Madeira...

Cidade onde podemos apreciar, em junho, cruzando e colorindo o céu, os papagaios de papel, empinados por meninos descalços, suados e barulhentos...

Cidade que adota e promulga os testemunhos das diferentes tradições e realizações intelectuais do passado, os princípios da História e sua importância em nossas vidas...

Cidade de famílias pioneiras tradicionais que prezam pertencer a uma estirpe de homens ligados ao nascimento de Guajará-Mirim: são os Vassilakis... são os Suriadakis... são os Manussakis... as os Hatzinakis... são os Casara... são os Struthos... são os Bennesby... são os Saldanha... são os Arouca... são os Badra... são os Bento... são os Volrath... são os Azzi... são os Nicolau... são os Alípio da Silva... são os Morhy... são os Climaco... são os Frazão de Almeida... são os Arantes... são os Rocha Leal... são os Elage... são os Koehler... são os Barcaneas... são os Boucinhas de Menezes... são os Bouez... são os Chamma... são os Pontes... são os Simon... são os Perez... são os Rivoredo... são os Arsolino... são os Bader... são os Vilar... e outros sólidos troncos que continuam dando descendentes para amar a terra e se enraizar nela...

Cidade que oferece um conteúdo privilegiado de peculiaridades culturais diversificadas, entendendo que o homem é o princípio e o fim do desenvolvimento...

Cidade que lutou décadas para ser beneficiada com a Área de Livre Comércio e, quando houve a implantação, provocando pequeno e curto desenvolvimento econômico, festejou alegremente a conquista, acreditando que daí por diante não haveria mais privações, nem sofrimentos... tempos depois assistia atônita e entristecida o desinteresse dos políticos pelo seu destino... angústia... decepção... frustração... surpreendentemente provocando a admiração, a firmeza inabalável de sua gente estoica que, sem se abater, com galhardia e esperança, aguarda um aceno de longe para libertar a cidade da terrível crise econômica, do marasmo com que se depara...

Cidade de gente ilustre... poetas... escritores... educadores... distinguindo-se pela têmpera arrojada de seus filhos, dos quais muitos se destacam na vida pública nacional... Lauro Morhy, Professor DSc e Ex-Reitor da UNB, no período de 1998-2005, pesquisador científico, doutor em biologia molecular, autor de vários trabalhos (full papers) na área de proteínas e autor de cerca de cem comunicações científicas em periódicos especializados nacionais e internacionais, além de monografias e livros... José Aníbal Pontes, deputado estadual por São Paulo, exilado político à época da ditadura militar de 1964... Hamilton Casara, atuante parlamentar de Rondônia, 2002-2006... Hegel Roberto Morhy, engenheiro bem sucedido da construtora Antares e autor de belos projetos arquitetônicos que adquiriram valores eternos, porque simbolizam a alma coletiva... Raymisson Monteiro, cardiologista, residente em Manaus, com grande prestígio nacional... Miguel Carrate, durante uma época deputado estadual pelo PMN, do estado do Amazonas...

Cidade integrada à paisagem amazônida como parte de sua unidade espiritual...

Cidade que presenciou episódio singular: a música belíssima da letra “Céus do Guaporé”, escolhida em 1981 para hino oficial do novo estado, recebendo o nome de “Céus de Rondônia”, foi idealizada e escrita tendo como palco a “Pérola do Mamoré”...

Afinal, Guajará-Mirim é o sabor da natureza que deu certo.

* O conteúdo opinativo acima é de inteira responsabilidade do colaborador e titular desta coluna. O Portal Gente de Opinião não tem responsabilidade legal pela "OPINIÃO", que é exclusiva do autor.

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