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Gente de Opinião

Yêdda Pinheiro Borzacov

Dona Preta, A Rezadeira do Madeira


Dona Preta, cabocla velha do Madeira, possui vasto conhecimento popular de ervas e plantas medicinais, provocando nas pessoas que a procuram um profundo respeito e admiração.

Antiga moradora do beradão, além de rezadeira, é conselheira, resolvendo, muitas vezes, conflitos familiares. Conhece histórias de bichos da mata e do fundo do rio e é ouvida com interesse e até mesm com veneração pelas pessoas do beradão. Conheço gente de Porto Velho, que só faz algum negócio após consultá-la.

Sua casa é humilde, em sua volta e sobre o parapeito da janela, há muitos jarros com plantas e ervas medicinais, enfeitando o ambiente e caracterizando a residência da benzedeira. Encontramos em profusão: alfavaca, mastruz, salsa, erva cidreira, chicória, vassourinha, sacaca, arruda, quebra-pedra, boldo, hortelã, erva-doce, cravo-de-defunto, jambu, jucá, capim-santo, murta, salsaparrilha, palma-de-Santa Bárbara, mulungu, mururé, amor-crescido, pinhão, pega-pinto etc. No interior, na parede da pequena sala, encontram-se pendurados retratos de santos: São Sebastião, Sagrado Coração de Jesus, Nossa Senhora da Conceição, São Jorge e Nossa Senhora de Nazaré.

Muito solicitada, Dona Preta conhece reza para cada tipo de doença ou uruca, reza para devolução de objetos roubados e para as coisas do amor. Conhece o segredo do preparo dos banhos com trevos, ervas de cipó pisados, raízes e paus ralados dentro de uma bacia com água, é tiro e queda para restituir a felicidade aos que a perderam e lavar o caiporismo dos sofredores. Em defumação, é mestra. Está sempre pronta para atender e servir a todos que a procuram, com carinho e atenção.

Nas minhas andanças pelo Madeira, coletei a seguinte história ocorrida com Dona Preta, a rezadeira:

Certa vez, o caboclo Florêncio, jovem forte e valente, foi à caça e, como acontecia desde o dia em que ele foi "cuspido" pelo anu coroca, voltou com as mãos e sacolas vazias.

Excelente caçador, hábil pescador, conhecedor dos segredos da mata e do rio, Florêncio não sabia o porquê das frustradas caçadas e pescarias. Será que era feitiço? Era estimado por todos, estava sempre
disposto ajudar os vizinhos, os amigos. Quem teria feito tal malvadeza?

Joca, vizinho que morava nas proximidades do seu tapiri, ao vê-lo passar tristonho, cabisbaixo,
exclamou:

- Cumpadre Florêncio, vançussê tá com feitiço. E com feitiço dos brabos. Cuidado! Vá se tratar purque sinão vancê nunca mais caça ou pesca nada.

Florêncio não disse nada, continuando a caminhada. Chegando em casa, não almoçou e não conversou com ninguém, nem com Eleutéria, sua mulher. Ao anoitecer, deitou em sua rede, pensativo, sorumbático, não dormiu quase nada e ao amanhecer partiu em sua canoa, dando fortes remadas, rumo à residência de Dona Preta.

A famosa curandeira se encontrava sentada em frente a casa, fumando um "taquari" e olhando as águas barrentas do Madeira e, ao ver Florêncio, exclamou:

- Antão é vancê que tá "flexado"? esperava p'ro vancê. Meu santo avisô que vancê não pega mais caça e peixe. Foi feitiço da mãe daquela "zinha" du outro lado do rio. Aquela que vancê tinha um "xodó". Lembrase?

Mas vancê vai fica curado p'ra toda vida.

Florêncio levou um susto. Como havia ela adivinhado que vinha lhe consultar? Como soubera ela que ele havia tido um "xodó" roxo, ficando mesmo "embeiçado" pela Mundica, cabocla espevitada, uma lindeza, e que morava muito acima do rio?

Dona Preta entrou na casa e, passado algum tempo, chamou Florêncio que, ao entrar na sala, percebeu de imediato uma grande panela de barro cheia de ervas e resinas. Um cheiro forte e adocicado invadia o ambiente.

A rezadeira disse-lhe:

- Sente aí nesse banco. E, em seguida, com uma cuia-pitinga foi derramando o caldo pelos braços e pernas do moço. Depois falou:

- Agora vancê vai sê defumado com ninho de cauré (pequeno gavião que faz seu ninho na flor da samaúma).

Defumado, Florêncio, sentindo-se leve e liberto do feitiço, saiu da casa de Dona Preta, alegre, risonho e totalmente curado, prometendo-lhe que em paga (ela não recebe dinheiro pelos seus serviços), traria o primeiro peixe que pescasse e meio alqueire de farinha.

Florêncio cumpriu a promessa, levando à Dona Preta, dias depois, belo pirarucu pescado no lago de Assunção e a farinha amarelinha, torrada e gostosa como só a Eleutéria sabe fazer.

Yêdda Pinheiro Borzacov

* O conteúdo opinativo acima é de inteira responsabilidade do colaborador e titular desta coluna. O Portal Gente de Opinião não tem responsabilidade legal pela "OPINIÃO", que é exclusiva do autor.

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