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Gente de Opinião

Vinício Carrilho

Para uma Teoria do Estado Moderno - 8


Nota-se, em parte pelo que já vimos, neste subitem que se inicia, um esforço para que tenham melhor esclarecidos alguns apontamentos da luta de classes, entendendo-se esta situação como uma relação antagônica, contraditória e oposta entre as classes fundamentais; mas especificamente no capitalismo essas classes são burguesia e proletariado. Mas há outras classes, como o lumpemproletariado e a pequena burguesia e até frações de classe, também em luta, como: burguesia industrial X agropecuária ou financistas versus industriais. Uma relação de oposição pode implicar apenas em uma situação de conflito controlado, a exemplo do que se vê entre oposição e situação, relação mediada pelo Princípio do Contraditório: comum ao debate parlamentar (trabalhistas X conservadores) ou à relação jurídica. Será uma relação antagônica quando a conflituosidade e animosidade ganharem um nível muito superior de beligerância, antecipando-se à negação, porque os discursos ou ideologias estão em franco e aberto conflito: as visões de mundo se tornaram insuportavelmente diversas. Por fim, será uma relação contraditória porque, aquela negação anunciada estará em ação, o que implica que — apesar da mútua necessidade de existência entre os pólos em disputa (“não há diálogo de mudos ou de surdos”) — a vida de um acarreta obrigatoriamente a exclusão/eliminação do Outro. Diferentemente da dialética oriental (positivo versus negativo), a dialética ocidental marxista impõe a ocorrência da negação. Assim, a um processo dialético por contradição é obrigatória à ocorrência de uma tese (situação), antítese (oposição) e de suas respectivas superações em uma síntese (que não é nem a tese, nem a antítese, mas que contém parte das duas, transformadas, revigoradas em um dado novo, novo contexto). A síntese, portanto, como substrato das duas ocorrências anteriores, será a nova tese — o que implicará em outra antítese e assim por diante. Nesta fase, então, pode-se dizer que houve superação da própria luta de classes, pois sem que uma das classes fundamentais tivesse sobrevivido, necessariamente, a outra teria de se transformar em algo diverso daquilo que fora até então: as revoluções, portanto, transformam a própria luta de classes que as alimentou até aquele momento. Na seguinte síntese apresentada por Engels temos uma (re) visão histórico e crítica feita por Marx:

“O materialismo é filho nato da Grã-Bretanha” [...] O verdadeiro pai do materialismo inglês é Bacon. Para ele, a ciência da natureza é a verdadeira ciência, e a física experimental a parte mais importante da ciência da natureza [...] Toda ciência se baseia na experiência e consiste em aplicar um método racional de investigação ao que é dado pelos sentidos. A indução, a análise, a comparação, a observação, a experimentação são as condições fundamentais desse método racional [...] Hobbes sistematiza o materialismo de Bacon. A sensoriedade perde o seu brilho e converte-se na sensoriedade abstrata do geômetra [...] Se os sentidos fornecem ao homem todos os conhecimentos – argumenta Hobbes partindo de Bacon -, os conceitos, as ideias, as representações mentais, etc., não são senão fantasmas do mundo físico, mais ou menos despojado da sua forma sensorial. A ciência não pode fazer mais do que dar nomes a estes fantasmas [...] Locke, na sua obra [...] Ensaio sobre o Entendimento Humano fundamenta o princípio de Bacon e Hobbes [...] Assim se expressa Karl Marx referindo-se às origens britânicas do materialismo moderno (Engels, s/d, pp. 10-12).

 

            Em seguida, Marx formula, no dizer de Engels, uma crítica mais rotunda acerca do conatusou endeavor de Hobbes (1983). No fundo, uma crítica de base à ideia da reta razão (Angoulvent, 1996), porque a razão nunca seria reta se mais adiante sempre se colocassem obstáculos, diatribes[1], estranhamentos do mundo material — atuando como sufocação das subjetividades:

Corpo, ser, substância, vêm a ser uma e a mesma ideia real. Não se pode separar o pensamento da matéria que pensa. Ela é o sujeito de todas as mudanças [...] Toda a paixão humana é movimento mecânico que termina ou começa. Os objetos do impulso são o bem [...] O poder e a liberdade são coisas idênticas [...] Hobbes sistematizou Bacon, mas sem oferecer novas provas a favor do seu princípio fundamental: o de que os conhecimentos e as ideias têm a sua origem no mundo dos sentidos (Engels, s/d, p. 11).

 

Em parte, este é o esforço analítico principiando pelo materialismo histórico, tendo-se a acumulação primitiva e a colonização (ultramar) como suportes extratores de riquezas que originaram ou “suportaram” o Estado Moderno — em seguida, ainda socorre-se especialmente do “papel político-institucional” exercido pelo Estado-Nação. Portanto, cabe bem uma distinção/complemento quanto à dialética, especificamente para que possamos destacar o papel do Estado na condição/condução das suas superestruturas: direito, educação, “função pública”. Então, vejamos um relato sobre o Renascimento, a partir da perspectiva do Materialismo Histórico:

As fortunas da Espanha, da Holanda, da Inglaterra, da França foram obtidas, não somente com o trabalho excedente de seu proletariado, não somente destroçando sua pequena burguesia, mas também com a pilhagem sistemática de suas possessões de ultramar. A exploração de classes foi complementada e sua potencialidade aumentada com a exploração das nações. A burguesia das metrópoles se viu em situação de assegurar uma posição privilegiada para seu próprio proletariado, especialmente para as camadas superiores, mediante o pagamento com lucros excedentes obtidos nas colônias [...] Espoliando a riqueza natural dos países atrasados e restringindo deliberadamente seu desenvolvimento industrial independente, os magnatas monopolistas e seus governos concedem simultaneamente seu apoio financeiro, político e militar aos grupos semifeudais mais reacionários e parasitas de exploradores nativos [...] A luta dos povos coloniais por sua libertação, passando por cima das etapas intermediárias, transforma-se na necessidade da luta contra o imperialismo e, desse modo, está em consonância com a luta do proletariado nas metrópoles [...] O capitalismo tem o duplo mérito histórico de ter elevado a técnica a um alto nível e de ter ligado todas as partes do mundo com os laços econômicos [...] No entanto, o capitalismo não tem condição de cumprir essa tarefa urgente. O núcleo de sua expansão continua sendo os estados nacionais circunscritos com suas aduanas e seus exércitos. Não obstante, as forças produtivas superaram faz tempo os limites do Estado nacional, transformando consequentemente o que era antes um fator histórico progressista numa restrição insuportável. As guerras imperialistas não são mais que explosões das forças produtoras contra os limites estatais, que se tornaram limitados demais para elas (Trotsky, 1990, p. 71-73-75).

 

Este texto de Trotsky sobre a colonização, o imperialismo e o papel do Estado-Nação europeu na exploração das colônias, foi escrito em 1939. Mas, historicamente, o movimento social e político que mais se aproximou disso foi à intentona perpetrada pela Comuna de Paris, em 1871, mas desde a Revolução Francesa, os partidários de Rousseau já saiam às ruas. Classes Fundamentais: no capitalismo, burguesia e proletariado:

Foi nas profundezas do submundo intelectual que esses homens se tornaram revolucionários: ali nasceu a determinação jacobina de exterminar a aristocracia do pensamento [...] O mundo dos subliteratos não tinha princípios; tampouco alguma instituição de tipo formal. Era um universo de gente à deriva — nada de cavalheirescos discípulos de Locke resignados às regras de algum jogo implícito, mas brutos partidários de Hobbes colhidos em meio à briga pela sobrevivência. Isso não ficava a menor distância de le monde que o café do salon (Darnton, 1987, pp. 31-33).

 

As revoluções foram intensas não só no aspecto material (acumulação primitiva, inversão de capitais), mas igualmente nas “mentalidades”: “Onde quer que tenha chegado ao poder, a burguesia destruiu todas as relações feudais, patriarcais, idílicas” (Marx & Engels, 1993, p. 68). Para Marx, o papel do Estado Moderno nunca foi de relevância muito superior ao que vimos em alguns de seus interlocutores e comentadores: “O poder político do Estado moderno nada mais é do que um comitê (Ausschuss) para administrar os negócios comuns de toda a classe burguesa” (Marx & Engels, 1993, p. 68 – grifos nossos). Em momento de reflexão semelhante, Marx ainda dirá que, entrelinhas, que o juiz crê que para chegar à verdade, é preciso aplicar a subsunção e, como se aplica a isto reiteradamente, acaba por atribuir à subsunção a própria força da verdade objetiva dos fatos sublimados, colimados pela ocorrência histórica e não pela retórica:

As relações, na jurisprudência, política etc. — convertem-se em conceitos na consciência; e por eles não se situarem acima dessas relações, os conceitos das mesmas, em suas cabeças, são conceitos fixos; o juiz, por exemplo, aplica o código e por isso, para ele, a legislação é tida como verdadeiro motor ativo. Respeito pela sua mercadoria; pois sua ocupação tem a ver com o geral (Marx, 1984, p. 134).

 

Por isso, pela ausência de realidade substancial que funcione como anteparo ao achaque à consciência do aplicador do Judiciário (e agindo quase que por inércia, osmose , sob o efeito direto da subsunção), a partir do Estado Moderno, não poderia ter havido um típico Renascimento do Direito. De modo complementar também se destaca o Estado Moderno como fixador material/ideológico do “sistema capitalista” já a partir do Renascimento. Em suma, trata-se de uma leitura complementar, crítica/realista acerca do Renascimento e da Renascença, pois, nem todas as ideias, vocações ou habilidades puderam (re) nascer livremente.

 

Poder Social e Legitimidade

O Poder Social é definido como a capacidade de organizar relações sociais, a fim de agir em relativa harmonia. Ainda diz-se que se constitui na capacidade de acessar recursos humanos e/ou materiais para obter e controlar os resultados almejados. Enfim, pode-se dizer que o Poder é social porque pertence a um grupo. Contudo, deve-se indagar se o Poder Social sempre será uma atividade racional. De modo simples, o Poder Social reflete a capacidade humana para se propor formas de organização social. Sendo assim é a capacidade humana:

  • Constitutiva ou própria à fabricação de resultados que afetem outros;
  • Sistêmica de realizar objetivos coletivamente vinculatórios;
  • Organizacional de disciplinar e modelar desejos, ações, discursos e a própria subjetividade;
  • Racional e voltada à dominação, em busca de determinados resultados.

 

Para Arendt: “A forma extrema de poder é o Todos contra Um, a forma extrema da violência é o Um contra Todos” (Arendt, 1994, pp. 35-6 – grifos nossos). Lembrando-se que este Um tanto pode ser um príncipe, um déspota quanto o próprio Estado quando assume a forma totalitária. Se há um revés nesta lógica da “luta por sobrevivência, mas com reconhecimento da intersubjetividade” (Honneth, 2003) ou simples práxis social, então, é porque já estão em vigor a impotência, a violência e a corrupção (o exato contrário, o oposto da política, para Arendt). Destacada que o “acordo genuíno” que constituiu o poder social não poderia se converter em coerção pelo sistema, uma vez que esta mutação simplesmente converteria poder em violência. Afinal, o poder do consenso/legítimo repousa na persuasão: “imposição singularmente não impositiva[2]”. Porque é um “poder proposto”, não imposto. Ainda é preciso lembrar que Habermas considera que o significado de poder em Arendt origina-se na vita activa, na sua práxis social — em outros termos, na “capacidade de se alcançar um acordo visando à ação conjunta”.

Ainda é preciso retomar algumas diferenciações, neste caso entre Arendt e Weber, pois o “poder como consenso” não se avalia pelo êxito dos atores, mas sim pela “aspiração comum à validade razoável”. Para Habermas, o poder em Arendt é fonte da legitimidade validada pela práxis social e figura, portanto, como fruto de um consenso almejado/alcançado na própria comunicação ou comunidade política (Habermas, 1980, 103). Ou, então, como quer definir a própria Hannah Arendt, de modo preciso, que vita activa é sinônimo de ação política e que esta estreita relação constitui o “cerne humano”. O homem é um animal social, de múltiplas relações de convivialidade, conectividade, civilidade, isonomia[3], isegoria: sem liberdade de expressão, não há manifestação pública e todos seriam aneu logou: sem direito e sem voz ativa (Arendt, 1998). Mas, indubitavelmente, o homem é um animal político, aprioristicamente, com a vita activa que requer movimento e ação (Arendt, 1991, p. 15).

Em suma, para Arendt, o poder seria efeito da ação comunicativa, mas também se revelaria em três níveis ou modalidades: a) regulamento que sobrevém à práxis; b) resistência à opressão; c) atos revolucionários inaugurais (Habermas, 1980, p. 103). O poder é práxis, mas a práxis de Arendt vem da polis (Habermas, 1980, 104). Mesmo que limitado, esse conceito de práxis procura exasperadamente pelo reconhecimento de uma “intersubjetividade não mutilada”, mas multifacetada. O efeito direto dessa práxis no poder seria preservar a luta pelo reconhecimento da própria intersubjetividade no interior do mundo da vida. Mais especialmente, na modernidade, práxis e vita activa se aproximam do que chamamos de espaço público ou “esfera pública” — quando se encontram, na modernidade e diferentemente da polis grega, o sistema político-institucional com o mundo da vida: aí estaria, sobretudo, a ideia da representação política, parlamentar ou legislativa (como “transferência da capacidade de ação, da práxis, mas não postulativa da soberania popular”).

De todo modo, se o direito obedece à política (enquanto poder social ou instrumental do Estado), não é menos verdade que o direito precisa ser mais concreto do que a moral para, assim, não se diluir na própria arena política originária. Isto, evidentemente, evitaria um ciclo vicioso, opondo-se perigosamente o teleológico ao social. Aliás, este “mecanismo institucional de monopólio da produção legislativa” somente pode funcionar se o direito for aceito e reconhecido pela maioria como legítimo, isto é, se o direito se tornar verdadeiramente social. Portanto, uma das maiores dificuldades enfrentadas diante da realidade pragmática do direito (inclusive do “direito ao reconhecimento”) é, justamente, entender/encarar o direito como parte do poder social e não só como recurso instrumental do poder extroverso/funcional do Estado (Sundfeld, 2004, p. 94). Quanto mais for concreto o caráter socialmente impositivo[4]do direito, tanto maior a legitimidade e a aceitabilidade das normas fundamentais de sociabilidade e tanto mais auto-reguláveis os projetos teleológicos de poder: os fins seriam mais comedidos pelos meios: Justamente porque as vontades ou os valores estariam “controlados” pelo direito positivado — este que é aberto à interpretação, mas já se partindo de um sentido firmado e não “figurado”. Enfim, como se vê, todo o “problema do direito” (mas também seria da arte, da política, da educação) é primeiro, quanto à legitimidade e, depois, quanto à validação. É sabido desde os romanos que “o direito não socorre a quem dorme”.

 

 IX Mapa Histórico: A Modernidade Tardia

A Modernidade Tardia é um conceito/realidade amplo e complexo — complexus: “algo que se tece em conjunto” (Morin, 2000) — de utopias/entropias; contradições e distopias; afirmações ou “promessas descumpridas da democracia e da modernidade” (Bobbio, 1986). Tanto é uma fase de retomada quanto de negação, de afirmação e de interrogações, mas, é do domínio do real ou, melhor dizendo, pertence ao mundo real/virtual. É o ultramoderno posto em evidência:

A modernidade econômica implica a livre mobilidade dos fatores de produção, o trabalho assalariado, a adoção de técnicas racionais de contabilidade e de gestão, a incorporação incessante da ciência e da técnica ao processo produtivo. A modernidade política implica a substituição da autoridade descentralizada, típica do feudalismo, pelo Estado central, dotado de um sistema tributário eficaz, de um exército permanente, do monopólio da violência, de uma administração burocrática racional. A modernidade cultural implica a secularização das visões do mundo tradicionais [...] e sua diferenciação em esferas de valor [...] até então embutidas na religião: a ciência, a moral, o direito e a arte (Rouanet, 2002, pp. 237-8).

 

Além disso, os bens culturais agora também poderão se movimentar com mais independência em razão da laicização e da secularização do espaço público. Isto é o que vemos com os indícios trazidos pelo tema insurgente da modernidade já no século XVII. Também por isso prefere as expressões Ultramodernidade e Modernidade Radical (Giddens, 1991) à ideia de pós-modernidade (Sevcenko, 1987) ou mesmo modernidade tardia. A Modernidade Tardia, em uma ampla hermenêutica, ainda corresponde à mudança da luta por conservação em luta pelo reconhecimento (Honneth, 2003). Assim, é um mix entre negação e vir-a-ser; é a negação ou a véspera da utopia; é a entre-safra entre o esperar, calcular (estratégia) e a ação (da tática à prática); é uma espera, mas como um que fazer: “Não te esperarei na pura espera / Porque o meu tempo de espera é um / Tempo de que fazer” (Freire, 2000 - frontispício). É um ir e vir pela história, a exemplo da entropia, que atua como eixo da Teoria do Caos (e da pós-modernidade: indeterminação, instabilidade, dúvida metódica), mas que tem suas bases na termodinâmica de Newton:

Por que existe a entropia? Antes, muitas vezes se admitia que a entropia não era senão a expressão de uma fenomenologia, de aproximações suplementares que introduzimos nas leis da dinâmica. Hoje sabemos que a lei de desenvolvimento da entropia e a física do não-equilíbrio nos ensinam algo de fundamental acerca da estrutura do universo: a irreversibilidade torna-se um elemento essencial para a nossa descrição do universo, portanto devemos encontrar a sua expressão nas leis fundamentais da dinâmica [...] De qualquer forma [...] é do caos que surgem ao mesmo tempo ordem e desordem (Prigogine, 2002, pp. 79-80 – grifos nossos).

 

Marx conhecia e teria aliançado à dialética que transforma quantidade em qualidade. Entropia e luta de classes podem estar associadas em analogia, mas como metáforas do ciclo vicioso/virtuoso entre passado-presente e presente-futuro. Portanto, não se trata nem da teleologia, nem do fim da história; sequer de uma filosofia da história ou mesmo da modernidade, uma vez que, todo o século XX e o breve século XXI indicam e fazem sobressair o realismo cotidiano das variadas formas de luta e de conflituosidades que cercam o poder no âmbito do Estado Moderno (tanto lá, no pós-Renascimento, quanto cá, diante dos dilemas da Modernidade Tardia). Se observarmos através de um largo lapso histórico, podemos dizer que a Modernidade Tardia remonta à Rota da Seda, visto que sem esta não teríamos o Renascimento, o Iluminismo, o Estado-Nação e o Mercantilismo como forças do capitalismo e da sociedade moderna. Talvez, tendo-se algumas mudanças ou inversões mais bruscas na rota da luta pelo reconhecimento (agora perdendo terreno para a mera conservação do poder) — especialmente com a criação (legislação) de formas e meios de agir de exceção, no Iluminismo que já se via convertido em Jacobinismo — possamos dizer que lá onde havia um estado da Razão, veio a vigorar ainda mais fortemente uma Razão de Estado. Mais especificamente, datam 1793 as primeiras bases do Estado de Exceção, e que tanto nos assombra desde então (Agamben, 2004). Todavia, a chave teórica para o entendimento de seu alcance e dimensão iremos encontrar em meados do século XX, no esforço retórico-constitucional de Carl Schmitt (2006). Desse modo, ainda podemos analisar o trabalho em seu argumento central e, muito genericamente, quanto à metodologia empregada.

 

VIII Outras Formas de Validação e de Reconhecimento

Inicialmente, em vias, em prol da luta pelo reconhecimento do Outro, é possível afirmar-se a necessidade de um “compromisso ético regulador da democracia, de um dever-ser, também re-configurado pela ação individual e social (mas, sempre política), vê-se modificado na plenitude da própria ação ética do agora-ser-sendo. Assim, da tensão entre autoridade e liberdade, pode surgir uma ética em si (mas, sobretudo, para verter-se na ética-para-si) como meio de condução democrática da ação educativa (do direito à educação como luta, se for o caso) e da vida social. A ética, enfim, seria o resultado da ação pedagógica democrática, a síntese da assunção da autoridade civil e não de sua imposição. O reconhecimento, a seguridade e a internalização da autoridade e da autonomia individual. Como exemplo concreto desta assertiva, vejamos uma ação trabalhista que conjuga da 1ª à 5ª gerações de direitos fundamentais. No caso, trata-se de Direito de Imagem de professor/pesquisador e da exploração do chamadotrabalho imaterial (Negri, 2001) ou vivo, não-remunerado e que constitui estelionato intelectual (na alçada criminal). Vejamos em Marx:

Trabalho não-objetivado, um não-valor – se o considerarmos positivamente, ou negativamente em relação a si mesma, eis o que é a existência não-objetivada, isto é, não objetiva, - em outras palavras, subjetiva – do próprio trabalho. É o trabalho não como objeto, mas como atividade (Tätigkeit); não como auto-valor, mas como a fonte viva do valor (lenbendige Quelle dês Werts). (... O trabalho vivo é) a riqueza universal – comparada com o capital, dentro do qual existe objetividade, - como possibilidade universal, possibilidade que se realiza na atividade enquanto tal (Dussel, 1995, p. 39).

 

Juridicamente, ainda é chamado de teletrabalho ou de sobreaviso no teletrabalho, mas para uma interpretação sobre novos direitos autorais:

Una vez refinadas las licencias, Ito y Creative Commons proponen ahora convertirlas en parte de La infraestructura de la Red. De hecho, bajo la dirección de Ito, la idea es que Creative Commons se convierta en una especie de organización de estándares del copyright, creando los formatos tecnológicos por los que los creadores, el público, los buscadores, los gestores de derechos, los programadores de navegadores y todos los demás agentes de Internet se comuniquen entre sí qué derechos están disponibles sobre las obras, e incluso qué derechos están reservados.

 

Mensagem enviada por e-mail, de Erick Iriarte Ahron, mas também disponível em: http://www.consumer.es/web/es/tecnologia/internet/2008/10/02/180170.php. Os meios de prova, neste exemplo, também se baseiam no mundo real/virtual (no passado, no presente e no futuro-presente: novos direitos). Há afirmativa de documento obtido em cartório atestando a veracidade das informações virtuais e quanto à exploração indevida da imagem do professor. O documento ratifica o compromisso do Estado, em determinados momentos e circunstâncias, na luta pelo reconhecimento e seguridade de direitos — como se fosse uma virtualização (Lévy, 1996) constante da Luta pelo Direito (Ihering, 2002). A Fé Pública pertence ao âmbito da 3ª geração de direitos (Wolkmer, 2003), à formação do Estado de Direito, no século XIX (Canotilho, 1999) e à célebre disposição política ou salvaguarda jurídica da intitulada regra da bilateralidade da norma jurídica, também vista pelo provérbio latino do “suportas a lei que criastes” (Malberg, 2001). O referido processo e seus meios de prova foram gestados por aproximadamente um ano, incluindo ainda e-mails, documentos oficiais da instituição reclamada, declarações de boa-fé de terceiros, testemunhas e outros.

A Fé Pública, no exemplo tomado, reflete-se no documento denominado de Ata Notarial (em anexo). Isto também se chama, doutrinariamente, sair da abstrata/ainda-que-legítima expectativa do direito (Dallari, 1999) e propugnar pela construção de outro saber jurídico. Outro recurso adotado foi elaborar um parecer técnico-jurídico, detalhando-se o alcance da referida imagem profissional ou pública do autor prejudicado, naquele momento. Então, na Modernidade Tardia temos a passagem/conversão da luta por conservação (a sobrevivência advinda do trabalho intelectual ou, genericamente, “o trabalho como o primeiro ato histórico” — Marx, 2002) à luta pelo reconhecimento de novos e outros direitos, sujeitos, demandas individuais e sociais, no aqui chamado mundo real/virtual. No próprio exemplo indicado, temos direitos de 1ª geração: a imagem associada à identidade, intimidade, integridade e (re) produção essencial da personalidade. O “trabalho real” e/ou imaterial (vivo), reclamado como hora-extra, refere-se à 2ª geração de direitos: à época áurea das lutas sociais e populares pelo reconhecimento de direitos: da Revolução Russa, de 1917, à Constituição de Weimar, de 1919, ou ainda a Revolução Mexicana, a partir de 1910. Nesta fase da luta pelo reconhecimento do direito a ter direitos (Bobbio, 1992), a 3ª geração deve ser atualizada, pois nem o Estado, nem o movimento sindical mostram-se preparados para os novos desafios: o Judiciário sofrerá variadas provocações. No caso, são espécies de direitos individuais e sociais que rebatem/repicam no Estado e provocam a insurgência de direitos políticos mais legítimos. São exemplos disso, desde as décadas de 1970-80, no movimento sindical e como fonte social e jurídica do pluralismo, a coletivização dos conflitos, a politização das lides (Faria, 1989), e, mais genérica e recentemente, a judicialização da política. Quanto à quarta geração, notabiliza-se, ainda pelo exemplo da RT, a luta pelo reconhecimento e seguridade dos direitos sociais (Verdú, 2007), mas, mais amplamente, os direitos coletivos, difusos e os interesses individuais homogêneos. Já a quinta geração, inerente ao cotidiano do mundo real/virtual, entrelaça as várias gerações quanto ao direito personalíssimo — na luta pelo direito do trabalho e no reconhecimento do ser, de sua imagem e persona. Os gregos antigos já sabiam disso, desde que utilizaram a famosaPersona:o nome da máscara usada pelos atores do teatro grego clássico. Sua função era dupla: aproximar o ator à aparência exigida pelo papel e amplificar sua voz, permitindo que fosse bem ouvida pelos espectadores. A palavra deriva do verbo personare, ou “soar através de”. Nesta época de crise e descobertas, a Modernidade Tardia e o mundo real/virtual também metamorfoseiam e mascaram formas simbólicas de obtenção e de exploração de direitos de outrem, sem a devida compensação. Empresas utilizam-se indevidamente do nome de muitos professores titulados — já demitidos, nunca contratados ou contratados só de fachada — para (a) trair alunos e obter grandes vantagens materiais. Portanto, neste curso do debate, o direito na Modernidade Tardia é tanto processo/produto ideológico (Filho, 2002) quanto é um medium propício à requisição de legitimação social (Schumacher, 2000). Por isso, contrariando a objetividade extremada, não há um método claro-escuro:

Eu sou um homem espanhol que ama as coisasem sua pureza natural, que gosta de recebê-las tal e como são, com claridade, recortadas pelo meio-dia, sem que se confundam umas com outras, sem que eu ponha nada sobre elas: sou um homem que quer, antes de tudo, ver e tocar as coisas e que não se contenta imaginando-as: sou um homem sem imaginação (Ortega y Gasset, 1991, p. 9 – grifos nossos).

 

É óbvio que sempre há objetividade, a partir de um projeto, mas isto não implica em total controle do objeto. É em relação a este controle que nos referimos, quando falamos em objetividade extremada. Não há um método do meio-dia, quando pensamos em tratar desta fase da Modernidade Tardia. Assim, a luta pelo reconhecimento acaba intrinsecamente vinculada à luta pelo conhecimento do Outro e de si. Portanto, trata-se de uma luta por (re) conhecimento, mas, infelizmente, talvez o exemplo que melhor caracterize esta Modernidade Tardia seja mesmo a reincidência do Estado de Exceção, pelo menos, nos últimos três séculos.

Direito à Educação e Esclarecimento

A principal referência é Kant e o melhor produto teórico é o seu texto O que é Esclarecimento. Em suma, o Aufklärung instiga a que se “ouse pensar” e assim “ouse fazer”: “Sapere aude!”.“Tenha coragem de fazer uso do teupróprio entendimento”. Desse modo, o esclarecimento instiga à saída do homem de sua menoridade. E o que é menoridade? “A menoridade é a incapacidade de fazer uso de seu entendimento sem a direção (tutela) de outrem”. O homem da menoridade precisa de um condottiere, seja na vida privada, seja para assuntos de relevância pública. Depois de libertos do primitivo estado de natureza (naturaliter maiorennes), as causas internas à permanência do indivíduo na menoridade (intelectual, moral, política, cultural) são a preguiça ou comodidade e a covardia. É cômodo não ter de fazer por si mesmo – no senso comum, diz-se que “pensar dói”. Também não se tem necessidade de pensar ou fazer, se é possível apanhar tudo pronto[i]. Alguns ainda consideram difícil esta passagem, mas o perigo não é grande, porque só se aprende a andar após algumas quedas (está aí o método da “tentativa e erro”). Então, a maioridade corresponde a abandonar primeiramente o embrutecido estado de gado doméstico. Para a menoridade ainda concorrem à adesão e a aceitação de verdades prontas, dogmas e preceitos inquestionáveis: preceitos e fórmulas, esses instrumentos mecânicos de uso racionalou dons naturais, são os grilhões da consciência à menoridade. Esta razão domesticada é, portanto, uma das causas centrais da menoridade. Também pode incorrer em grave erro quem considera ser viável saltar o fosso da liberdade sozinho, pois a liberdade é uma construção social.

 Todavia, alguns podem iniciar essa cruzada, sozinhos e mesmo que seja longa e penosa. Alguns que tenham pensamento próprio, libertando-se do jugo de tutores e da comodidade, espalharão ao redor de si o espírito da avaliação racional do próprio valor e da vocação inata ao homem de pensar (e agir) por si mesmo. Instigada por um líder consciente, a massa oprimida e subjugada pode gritar e lutar por sua liberdade (mas, desde que seja um líder e não outro tutor). Por isso, o preconceito, a indiferença, o ranço da menoridade[ii]podem voltar-se contra seus agentes e ainda alimentar, em alguns sobreviventes, o direito de rebeliãoou sedição. Neste movimento social e temporal, de que tratam os libertários, o povo seria levado a pensar — até porque é rara a germinação natural. Mas, a instigação a se rebelar contra o status quo viria de uma vanguarda, uma vez que, raramente, pensa-se em ser livre, sendo-se criado como escravo. Por esta dialética negativa, o próprio Senhor de Escravos não é um liberto, nem se encontra na maioridade, simplesmente porque necessita (para tudo) de seus escravos, ou seja, de alguém que faça por ele. Neste caso, ainda é interessante pensar a aliança que se pode tecer entre cultura e política: Uma revolução talvez realize a queda do despotismo pessoal, da opressão pelo lucro incessante ou da dominação descabida, porém nunca produzirá verdadeira reforma (libertária) no modo de pensar. Este seria o real limite da própria vanguarda que conduz à liberdade, uma vez que ninguém é conduzido à liberdade, como estado de ser, sem saber do que se trata, isto é, sem ter a consciência dessa mesma liberdade. Portanto, só a iniciativa leva à liberdade e esta conduz ao esclarecimento — sendo que a base da liberdade (para os antigos) estava na isegoria e na isonomia. Então, o que é liberdade? Simplesmente, fazer uso público de sua razão em todas as questões.

Por sua vez, o uso público da razão traz um interstício entre esclarecimento e conhecimento: quando o homem SÁBIO se expressa, livremente, diante do grande público do mundo letrado. Já o uso privado da razão é de pertencimento do SÁBIO que pode fazer uso de sua razão em função de certo cargo/função pública a ele atribuídas. Assim, para Kant, há certos casos inevitáveis ou necessários em que se constroem mecanismos de comportamento passivo ou de unanimidade artificial: em tais casos, não é permitido raciocinar, porque se espera a obediência. A educação dos antigos falava no temor reverencial. Pergunta-se: sob esta análise, o educador (professor) está mais para o SÁBIO (como especialista ou intelectual que faz um uso público da razão) ou se aparenta ao sacerdote (restrito ao uso privado da razão)?

Em todo caso, para ficarmos nos casos sugeridos por Kant, pensemos na democracia representativa e no princípio da legalidade. Para o administrador público, a liberdade de agir está cercada, cerceada pela legalidade, impondo-se a este uma condição de agente público da obediência. O administrador público só pode fazer (agir), estritamente, diante do que a lei (anterior a seus atos) assim prescrever e autorizar[iii]. Outro caso considerado por Kant se refere à obrigatoriedade do pagamento de impostos que recai sobre todo cidadão. Obrigação da qual ninguém se desobriga, dado o caráter social da arrecadação dos impostos: originário e necessário à conservação do Contrato Social. A recusa ao pagamento de impostos pode gerar ou fortalecer o sentimento de descompromisso social ou de anomia (Durkheim, 1988) e daí derivar-se no movimento social da Desobediência Civil (Thoreau, 1966).

Do que não se depreende, obviamente, o imobilismo: Nada existe aqui que possa constituir um peso na consciência. Isto é, constitui-se em dever cívico (ou da consciência daquele que não é senhoreado) questionar e se impor contra a opressão e a injustiça: um “Ouse questionar!”. Mesmo o religioso tem o dever de se impor contra o erro, a exemplo das alegações da Reforma e de Lutero, insurgindo-se contra a venda de indulgências. Ao se deparar com tal nível de estranhamento ou de contradição, o indivíduo que ousa pensar (e agir) é compungido a renunciar à adesão ou promover uma ampla reforma dos pressupostos: Pois se acreditasse encontrar esta contradição, não poderia em sã consciência desempenhar sua função, teria de lha renunciar. A este tempo de Kant, um século antes, do liberalismo clássico de Locke (1632-1704) já havia anunciado a urgência da tolerância, principalmente religiosa. Portanto, nem sob o impacto do Contrato Social (ou da deliberação religiosa, invocando-se dogmas e preceitos sagrados), nem sob o codinome o livre-arbítrio, há legitimidade (para ser coerente com o uso pessoal da razão) para se abrir mão da liberdade ou, o que dá no mesmo, colocar-se livremente sob o jugo da escravidão (há contradição interna aos termos). Pela lógica (ou sob o império da lei) não são válidas ou legítimas tais cláusulas leoninas ou ainda as assim chamadas Leis de Plenos Poderes (porque se não se admite a divergência, não há liberdade e nem esclarecimento ou maioridade). De tal modo, condenar o povo à ignorância (negando-lhe o acesso à informação, a educação) é um crime de lesa pátria, pois o progresso é natural ao esclarecimento.

Mas o povo como coletivo, pode impor a si próprio leis de restrições, a começar da “liberdade de pensamento[iv]”? Pensemos no chamado Estado de Emergência[v]: Seria certamente possível, como se esperasse por lei melhor, mas por determinado e curto prazo, e para (re) introduzir certa ordem. Ao que ainda se poderia acrescentar sob rígida vigilância e estrita ou crítica e urgente circunstância (ou em condições determinadas, espaço delimitado e um curto prazo pré-estabelecido). Historicamente, mesmo sob condições gravíssimas, seria difícil de se legitimar a opressão desmedida e sem fim. Este era o caso da nomeação de um Imperador[vi]romano, a fim de se normalizar graves instabilidades institucionais, suspendo-se a vigência das garantias da República (mas não se subtraindo ao Senado, que continuava como seu juiz). Durante a República, o título de imperator sinaliza apenas um “comandante das forças militares” e não Imperador. É óbvio, mas Imperador não combina com a ideia de República. Já a figura do Cônsul implicava que este comandante teria o mais importante cargo executivo da República. Por outro lado, renunciar ao esclarecimento não seria um direito individual, sagrado e consagrado pelo liberalismo e pelo Iluminismo?

Um homem sem dúvida pode, individualmente, e mesmo assim por tempo limitado, no que lhe diz respeito, adiar o seu esclarecimento. Contudo, renunciar ao esclarecimento, para si ou para seus descendentes, é ferir os direitos mais sagrados da Humanidade. Portanto, se não é lícito ao povo tomar tal decisão, menos ainda será lícito a um governante decidir sobre esse fim. Renunciar ao esclarecimento é ir contra o “caminho normal, natural” da vida em sociedade, da Humanidade como um todo. É como se dissesse: a ninguém é dado o direito de se escusar da tarefa de ser humano. Seguindo Max Weber (1979), ainda se diria: “o desencantamento do mundo é inevitável, inexorável”.

O BOM governo, ao contrário, deve evitar que um súdito impeça a outros de trabalharem, de acordo com sua capacidade (e mais ainda se de forma violenta), para a determinação e a promoção de si mesmos. Também aquele se expõe à censura, sem reagir, ou o censurador padecem do mesmo mal: Ceaser non est supra grammaticos (“erra muito quem censura”). De tal modo, a obrigatoriedade do ensino — como parte do direito à educação — teria reflexos diretos na tarefa da construção social do conhecimento e da consciência e da responsabilidade social. Assim, se é verdade que “erra muito quem censura”, então, deve-se concluir pela afirmação tanto do “direito de livre pensamento” quanto pela “livre expressão”, e se esta última condição for tomada, igualmente, como parte do direito à educação, logo, concluiremos pela necessidade da constância da “liberdade de cátedra”. Neste contexto, o laicisismo (o Estado Laico como empuxo ao Estado Moderno) mostrou-se muito eficaz à luta pela liberdade e pelo reconhecimento de direitos, incluindo-se aí a educação. Isto se deu, em parte pela via armada da guerra civil, a exemplo da Inglaterra do século XVII, em parte como movimento social e cultural pela tolerância e pela liberdade. Serve de exemplo o fato de que num regime de liberdade, a tranqüilidade pública e a unidade social apaziguam fontes de inquietação.

Nesse estado de liberdade pública, os indivíduos se desprendem progressivamente do estado de selvageria inicial e, talvez, sobrevivente à vida social contingente. Portanto, se fizermos uso de um raciocínio equivalente, podemos concluir que a não-liberdade ou o autoritarismo não podem nos conduzir à liberdade: não há como forçar à liberdade. Há sedução pela liberdade (como ação política ou religiosa, no caso dos movimentos pela tolerância religiosa) ou por seu ideal e isto, por si, já esclarece e elimina o que não é liberdade. Esse estado de liberdade pública, entretanto, encontrará uma ressalva quanto ao alargamento da liberdade ou, em sentido inverso, quanto a suas restrições: a Razão de Estado. Somente aquele, embora sendo esclarecido[vii], não tendo medo de sombras e com um exército numeroso à disposição, bem treinado, pode dizer aquilo que não é lícito[viii]a um Estado livre supor: raciocinais tanto quanto quiserdes e sobre qualquer coisa, contanto que obedecei! Parece clara a minuta da Razão de Estado que se constituiria sob o Estado Moderno.

Em síntese, para o Iluminismo, a dignidade está em pensar livremente, para que o indivíduo deixe de ser máquina, a fim de se ver livre do jugo da cangalha do tutor ou do moinho da fortuna — e que geralmente falha em termos políticos. Por fim, vale indagar, hoje, será que experimentamos um mundo em tempos de esclarecimento? Ousemosum pouco e logo saberemos — como queria aquele Kant de há muito tempo:

“Ouse saber!”

“Ouse querer!”

“Ouse questionar!”

“Ouse fazer!”

“Ouse lutar!” “Ouse vencer!”



[1]
Leia-se mais, em: http://www.ricardocosta.com/pub/advogados.htm.

[2]Aqui o cuidado exigido seria o de não confundir “persuasão” com massificação e é isto o que Honneth (2003) chama claramente de “reconhecimento intersubjetivo”, sem imposição heterônoma e sem manipulação coletiva das vontades individuais. Persuasão como “validação legítima”.

[3]O reconhecimento da igualdade formal é essencial ao “reconhecimento do discrímen”.

[4]Como consenso obtido pelo reconhecimento e validado pela livre comunicação dos sujeitos envolvidos e requerentes, e não como heteronomia política, jurídica ou moral. Mas aí o problema seria quanto aos costumes, tanto comus quanto ethos, porque são entes culturais relativamente fechados em torno de regras sociais anteriormente definidas e não predispostas a modificações substanciais subrepticiamente.



[i]
No sentido moderno, corresponde a “copiar, colar”.

[ii]O ditado popular também diz: “V

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