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Gente de Opinião

Vinício Carrilho

Oscar Niemeyer


A grande genialidade de Oscar Niemeyer, o maior arquiteto brasileiro de todos os tempos, esteve em se manter fiel à convicção ideológica do comunismo. Foi um homem do seu tempo, do século XX, especialmente dos anos 50-60. Niemeyer não se meteu a ser pós-moderno, não ultrapassou a barreira ideológica e lógica dos anos 60. Sua força vinha da fidelidade conceitual, desde antes de se envolver na construção de Brasília. Esta concepção programática o levou a edificar na capital brasileira um pórtico da modernidade clássica. Brasília é programática, um programa de poder, de ocupação e de ressignificação de uma ampla área do território nacional. Niemeyer, como comunista, não foi consumista. É fácil perceber que Brasília não é pragmática, afinal de contas, as casas estão longe dos centros de compras.

Em todo caso, o arquiteto procurava expressar em suas obras a própria projeção de um homem comunista daquele tempo; sonhava com um Brasil livre do arcaísmo, dos coronelismos, dos atrasos mentais, da dominação da cultura brejeira e da exclusão do próprio mundo moderno. Suas obras colocaram esteticamente o Brasil nesta modernidade clássica, assim como a “Geração de 1930” (Gilberto Freyre; Sérgio Buarque de Holanda; Caio Prado Jr.), inspirada da Semana de Arte Moderna (1922), colocaria o Brasil no rumo intelectual dessa mesma modernidade. O gênio de Niemeyer esteve em dialogar com os clássicos e estes são livres, vivos e se atualizam sempre que visualizamos a essência que retratam. Desse prisma, a Modernidade é sempretardia, porque sempre fala à nossa cultura contemporânea.

O arquiteto da sociedade brasileira soube interpretar como poucos; sua arquitetura era uma denúncia contra o passado que prendia o Brasil às injustiças. Portanto, sua arquitetura nos auxilia a ver que a Modernidade Tardia não é sinônimo de pós-modernidade (talvez, em muitos aspectos, seja o seu contrário), no sentido de que a própria modernidade vem desconstruindo algumas de suas principais conquistas e garantias — exemplos claros nos remetem direto à luta por reconhecimento no interior de todo Estado de Direito: daquele previsto pela Constituição Francesa de 1791 (e depois, em 1793), passando pela Constituição “democrática” de Weimar (1919), até à Constituição Espanhola de 1972, quando se deu início aos “pressupostos” do Estado Democrático de Direito Social.

A arquitetura moderna sempre foi uma luta contra o passado e suas ameaças – desde a famosa reforma de Paris, no século XIX, quando o povo foi expulso do centro político, nervoso, da capital francesa. Como diz a filósofa brasileira Marilena Chauí, a modernidade francesa colocaria fim à era revolucionária, instaurando o Estado de Direito sob a batuta da sociedade capitalista. Como consequência, houve uma privatização da liberdade, portanto, da vida das pessoas e, especialmente, do que até então também se entendia como via pública, quando a arquitetura presente no projeto da modernidade procurou inibir o público:

No século XIX, em Paris[...] Urbanizar significava construir grandes e largas avenidas, largos espaços abertos por onde os carros militares podiam trafegar rapidamente e sobretudo tornavam impossível construir barricadas[1][...] Uma das características da sociedade contemporânea [...] é a privatização de nossas vidas, isto é, o isolamento dos indivíduos, a separação entre o local de trabalho e a moradia, formas de lazer solitárias (como a televisão ou o rádio[2]), a impessoalidade dos lugares onde fazemos nossas compras (em lugar dos mercados e feiras ao ar livre, onde as pessoas se encontram, artistas populares executam suas artes, vendedores ambulantes anunciam seus produtos milagrosos, pregadores religiosos convidam as pessoas a se converterem à sua religião etc, hoje, vamos a grandes supermercados onde não há vendedores, onde só há vigilantes e caixas, onde as pessoas não se falam, onde nada acontece senão o consumo). Toda uma arquitetura se colocou a serviço dessa privatização e desse isolamento entre as pessoas (Chauí, 1984, pp. 12-13 – grifos nossos).

 

Na figura de linguagem, pela reforma arquitetônica da modernidade, a via pública excluiu a via pública. Ironicamente, a modernidade que inibiu o espaço público passou a massificar a informação, mas uma liberdade de não-fazer. Um tipo para se ver, mas não para interagir. A Esplanada dos Ministérios, em Brasília, guarda certa semelhança com esta Reforma de Paris: estatizando-se o poder; excluindo-se o transeunte.

Oscar Niemeyer - Gente de Opinião

[não há arborização, o sol escaldante não permite a marcha dos descontentes]

 

Esta é a parte da modernidade que nunca aprovei e, no fundo, Niemeyer também não, ainda que tivesse que se render naquela altura do campeonato (1957) a esta corporificação, cristalização do poder público no Brasil. Era o preço da modernidade. O poder que deveria ser público, popular, por medo das revoltas, acabou estatizado, estandardizado. No lugar da política, nasceu a cidade planejada, padronizada. Ao invés da polis, surgiu a regularização das relações sociais. O moderno controle social que não permitiria ao povo passear ou mobilizar-se em massa na Esplanada dos Ministérios, ironicamente, serviria às marchas e aos desfiles militares do golpe pós-64. Primeiro, a arquitetura de Brasília afastou o povo, depois, afastou-se seu idealizador, quando Niemeyer cumpriu o desterro na Europa. Todavia, mesmo em contato com o novo mundo que se abriria na década de 1970, sobretudo em Paris (seguindo-se ao Maio de 68[3]), Niemeyer não foi pós-moderno. Aliás, sua arquitetura é o exemplo clássico de que o mundo moderno recusa o método explosivo, radiante, metálico da pós-modernidade. A modernidade é táctil, sensitiva e em nada se assemelha à razão imagética que se inicia com a arquitetura que coloca as entranhas dos prédios para fora.

O pós-moderno

O projeto arquitetônico da pós-modernidade, ao expor a estrutura, o interior, as amarrações, o liame do “eixo central” de sustentação, revelando aos observadores as armações em aço e o conteúdo mais simples e operacional[4], como é o caso do elevador panorâmico, na verdade, promoveu uma revolução em termos de leitura do real — não era, portanto, um mero efeito de embelezamento. Ao revelar a estrutura de suporte das construções, o projeto pós-moderno dizia ao leitor do real que a essência (assim como a estrutura) pode e deve ser vista, revista, revirada.

Oscar Niemeyer - Gente de Opinião

[O modelo pós-moderno, presente neste suntuoso prédio, não está presente nas criações de Oscar Niemeyer]

 

É interessante notar como forma e conteúdo deveriam vir associados a partir de então, bem como outrora, na modernidade clássica, apareciam em destaque os primos gêmeos da essência e da aparência. O pós-moderno expunha as entranhas, a partir da experiência da arquitetura e fazia brilhar uma realidade ainda escondida. O envidraçamento e/ou reflexos provocariam “reflexividades” em todos que por ali transitassem. Contudo, perde-se a relação espaço-temporal, não mais se toca a superfície. A velocidade de deslocamento pelas vias públicas não permite que se veja em detalhes, não se toca, nem com a retina, as ranhuras, o rococó. Como tudo que é sólido desmancha no ar, só há tempo para ver de relance. Estranhamente, a arquitetura pós-moderna exige – para melhor definição – que seja observada à distância. O arquiteto não era de meias-verdades, lusco-fusco ou ambiguidades. A modernidade lhe gravou a certeza de que a sociedade precisava ser modificada, com rapidez, mas com a solidez que a cultura brasileira não permitira alcançar. Por isso, nunca foi pós-moderno:

O pós-moderno sem dúvida traz ambiguidades — aliás é feito delas e deve ser criticado e superado. É isso que ele propõe: a prudência como método, a ironia como crítica, o fragmento como base e o descontínuo como limite [...] O anseio de uma justiça que possa ser sensível ao pequeno, ao incompleto, ao múltiplo, à condição de irredutível diferença que marca a materialidade de cada elemento da natureza, de cada ser humano, de cada comunidade, de cada circunstância, ao contrário dos que nos ensinam a metafísica e o positivismo oficiais [...] Creio que já seria uma vantagem e um alívio que o pós-moderno se apresente como um castelo de areia e não mais como uma nova Bastilha, um novo Reichstag, um novo Kremlin, um novo Capitólio. Apenas um castelo de areia, frágil, inconsistente, provisório, tal como todo ser humano. Um enigma que não merece a violência de ser decifrado (Sevcenko, 1987, pp. 54-55 – grifos nossos).

 

Na configuração atual da sociedade moderna, entretanto, a sociedade de controle impõe ao cidadão cada vez mais o toque de recolher[5]que o obriga a ver-se cada vez mais longe de sua liberdade. O que ainda nos permite concluir que as características centrais da pós-modernidade — “a prudência como método, a ironia como crítica, o fragmento como base e o descontínuo como limite” — têm sido cada vez mais compelidas para fora da realidade observável. Portanto, o entorno desta Modernidade Tardia (não pós-modernidade) está muito recrudescido, empedernido, emparedado, embrutecido: é incrível, mas talvez a Modernidade Tardia (dos que sonham a humanidade) esteja mais ameaçada do que a própria “segurança e regularidade” (ordem e progresso) do mundo moderno e de suas entropias. As utopias e não as entropias ocuparam os sonhos e os projetos do arquiteto da modernidade brasileira. Por isso o arquiteto do Brasil moderno também escapou das ambiguidades da pós-modernidade; de quebra, fortaleceu os pilares de sua crença do mundo melhor.

Neste sentido global, Oscar Niemeyer foi e é genial porque sua arquitetura é sociológica, atualiza o conhecimento social revelador da cultura brasileira que devemos ter e fazer fluir sobre o Brasil. Sua grandeza e seus limites estão juntos, reféns da modernidade clássica, tradicional que ainda nem chegou ao território, à consciência e ao poder que controla inumeráveis rincões do país. Sua mentalidade, de que a arquitetura deveria servir à criação, ultrapassou os limites estéticos ou, antes, permitiu a essa forma especial da estética revelar-se como sociológica, real, inspirada na vida social. Por isso, sua arquitetura era uma obra de arte, como uma arte engajada com a verdade real que transpira do choque entre o alternativo e a mesmice, os fortes e os fracos, ou entre incluídos e excluídos da modernidade. Com este afã de denunciar o retrógrado e o conservadorismo arcaico, a breguice que nos aprisiona no passado bairrista, o arquiteto foi tão visionário que sua Brasília só se realizou politicamente em 1986, com a Assembleia Nacional Constituinte e, administrativamente, uma década depois. Pode-se ver muitas mudanças sociais nos governos seguintes, porém, não chegou nem perto de transpor a distância social que suas marquises aproximavam. Moralmente, estamos a anos-luz do projeto modernista de Niemeyer.

 

Bibliografia

CHAUÍ, Marilena (et.al.). Política cultural. Porto Alegre : Mercado Aberto, 1984.

SEVCENKO, Nicolau. O enigma pós-moderno. IN : Oliveira, Roberto Cardoso de (org.). Pós-modernidade. Campinas-SP : Editora da UNICAMP, 1987.

 

Vinício Carrilho Martinez
Professor Adjunto II da Universidade Federal de Rondônia
Departamento de Ciências Jurídicas
Doutor pela Universidade de São Paulo

 



[1]Refere-se à derrota da Comuna de Paris: as grandes avenidas serviram ao propósito de facilitar o tráfego das forças militares e da repressão dos movimentos populares.

[2]Alguns diriam Internet, mas aí é mais complicado, diante da característica da interatividade.

[3]Uma série de movimentos sociais, estudantis e grevistas toma conta de Paris, depois, da França e se espraia pela Europa como hino à liberdade, na base do “é proibido, proibir”.

[4]Os nós marcados pela cola do aço e do concreto.

[5]Da alma ou do corpo.

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