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Gente de Opinião

Vinício Carrilho

O direito é um fato social


Além de todas as implicações epistemológicas, doutrinárias, que emergem de uma visão de mundo articulada, em que se espera ter no direito o caminho mais certo para a Justiça, e não necessariamente o mais curto (pragmatismo), há algumas afirmações iniciais com ênfase à função social do direito:1) o direito é uma ciência social, durante muito tempo esteve intrinsecamente associado às ciências sociais; 2) os fatos sociais são fontes legítimas do direito, assim como os costumes. A Lei de Introdução às normas do Direito Brasileiro/2010 em seu art. 4o estipula que: “Quando a lei for omissa, o juiz decidirá o caso de acordo com a analogia, os costumes e os princípios gerais de direito”; 3) nem todo fato social é juridicamente retratado.

 

            Por que nem todo direito é fato social?

Muita gente, inclusive juristas, dizem que todo fato social é regulado por lei ou, em paralelo, que o direito é um fato social. Contudo, nem todo fato social tem reflexos jurídicos, assim como há direito que não se enquadra na condição de fato social. Então, quando o direito será um fato social? De que modo os fatos sociais teriam efeitos jurídicos?

Por exemplo, um direito criado na calada da noite, sem nenhuma legitimidade, representação ou expressão social, não tem a menor relação com os fatos sociais significativos de uma determinada sociedade. Quando se cria um privilégio para agradar um indivíduo ou beneficiar um grupo social em primeiro lugar, mesmo que se tenha suprido todo o ritual e a formalidade legal, não se pode considerar esta peça supostamente jurídica como um direito que se inspira em fatos sociais. De outro modo, regras estabelecidas por grupos familiares ou agrupamentos sociais não terão implicação sobre os demais membros da sociedade.

Os fatos sociais que nos interessam do ponto de vista jurídico, são aqueles que, de algum modo, interferem, refletem, condicionam tanto a sociedade quanto o Estado. Por isso, para visualizarmos plenamente o que são fatos sociais, devemos reter três elementos em sua composição: exterioridade, generalidade, coercitividade. Agora, o que significam esses elementos?

Coercitividade

Pode-se dizer inicialmente que a coerção está contida no âmago da norma social e jurídica, é o que lhe dá sentido, uma vez que foi criada evidentemente para ser obedecida e cumprida, fosse por bem (conscientemente) ou fosse por mal (por meio da força física ou pela imposição de penas). Também pode-se dizer neste momento que a coerção é tanto uma autorização quanto um instrumento para o exercício do poder. Veja-se a descrição legal dada ao Poder de Polícia que se encontra no art. 78 do Código Tributário Nacional:

A atividade da administração pública que limitando ou disciplinando direito, interesse ou liberdade, regula a prática de ato ou a abstenção de fato, em razão de interesse público concernente à segurança, à higiene, à ordem, aos costumes, à disciplina da produção e do mercados, ao exercício de atividades econômicas dependentes de concessão ou autorização do Poder Público, à tranquilidade, pública ou ao respeito à propriedade e aos direitos individuais ou coletivos[1]que limitando ou disciplinando direito, ndividuais, em benefprescrita. aç.

 

A coerção pode ser o reto agir para limitar ou disciplinar direito,interesse ou liberdadee, em absoluto, não quer dizer agir com força física, com coerção desmoralizadora, como castigo ou punição. Quem fiscaliza motivado pelo Poder de Polícia pode sim ter o amparo e a segurança das forças públicas de segurança, como o oficial de justiça que requer o apoio da polícia para entregar uma intimação em região conhecidamente violenta.

Então, como ato manifesto da coerção, por coercitividade se entende a ocorrência de níveis diferentes de “força institucional” não apenas na sua elaboração, mas, sobretudo, na sua aceitação e no cumprimento das regras. Quando não se cumprem as regras sociais ou jurídicas, como no caso das infrações, pode ser que se imponha a “força física institucional”, buscando-se frear o ato infracional e em decorrência haver uma possível reparação do dano. De tal modo, pode-se dizer que os indivíduos cumprem as normativas sociais e jurídicas porque são movidos pela coerção e, aqueles que descumprirem o regramento estabelecido, por pressão moral ou imposição da força física, serão condicionados, obrigados por força da coerção (pena) a se retratarem. Isto é, os infratores serão penalizados (imposição da pena como manifestação da coerção) e levados a cumprir coercitivamente, obrigatoriamente, com o preceito estabelecido – sob a ação determinante de um poder heterônomo, exterior, anterior e global que se abate sobre a sua vontade. A impunidade, se e onde ocorrer, revelará que a coerção não se manifestou como lastro de consciência, e nem se aplicou nos casos específicos em que houve transgressão. Alguns não cumprem as regras estabelecidas por serem infratores contumazes, como delinquentes, e outros porque nutrem ideologias de resistência ao que julgam ser um conjunto de regras jurídicas destinadas à opressão e ao controle social, movidas pelos aparelhos e aparatos repressivos e ideológicos do Estado[2].

Os indivíduos que cumprem os preceitos, que seguem as regras, que “adotam” o direito como guia e meio de ação, também são mobilizados pela coerção, mas agora a coerção tem um efeito de condicionamento moral. Neste caso, é evidente, mas é bom esclarecer, que não se aplica a força física, o constrangimento, a pena, uma vez que o cumprimento se dá espontaneamente e ainda que as justificativas sejam variadas. De modo geral, os que cumprem e seguem as regras sociais e jurídicas o fazem por muitas razões e aqui identificamos as principais: 1) simplesmente porque temem as represálias (a aplicação de penas); 2) porque veem muitos agindo desse modo e seguem como bons cordeiros[3]; 3) porque analisam, refletem sobre o direito e concluem que o melhor meio de organizar a vida social é seguir o caminho “certo, reto, correto”[4]; 4) porque, apesar de discordar frontalmente do direito posto, não veem outra alternativa naquele momento[5].

Portanto, mesmo não sendo jurista é possível pensar, refletir, criticar a lei, as regras, o direito e ainda assim manter-se “regrado”. Neste caso, não se conhece juridicamente, conceitualmente, mas se reconhece a legitimidade do direito. Há uma livre adesão e aceitação por parte da maioria dos “cumpridores do direito”. Os que cumprem as regras, por adesão, agem assim impulsionados pela mesma coerção, mas que atua como “força moral” e não são recobertos pelo medo ou propriamente pelo uso da ameaça ou do emprego da força física.

A exterioridade implica em que a regra é anterior a todos nós, que foi feita pelos antepassados; sendo presente e ativa a anterioridade da norma social ou jurídica em relação à aparição do indivíduo no grupo social, na vida coletiva. Quer dizer que, quando nascemos, a maior parte das regras ou seu amplo significado já estavam datados pelas gerações que nos antecederam. Implica em dizer que, o grupo social ao qual adentramos (muito raramente aderimos) não nos pergunta se estamos de acordo ou se queremos ou não aquelas regras pré-estabelecidas. Mesmo no caso de livre-escolha, a exemplo da naturalização, o indivíduo terá de aceitar todas as regras impostas pela outra sociedade – não há livre-escolha das regras, como se pudesse “escolher” não cumprir determinadas regras, pois aqui ou ali as regras serão impostas e seu desapego será apenado (a impunidade é outro assunto). Pelo fenômeno da generalidade quer-se dizer que as regras devem ser aplicadas indistintamente, que seus efeitos são sentidos em nível macrossocial, sendo indiferente à origem social, idade, condição econômica, cultura, etnia, sexo. A generalidade está para o fato social, assim como o Princípio da Legalidade está para a lei (e o efeito erga omnes, “contra todos”).

Como vimos, o objetivo maior que se tem na presença da coerção aplicada à norma jurídica é o de evitar que a discrepância social passe de um limite aceitável, ou seja, a fim de que o controle social mantenha a criminalidade, a insegurança social, dentro de um ponto normal, aceitável. O crime deve ser contido dentro de parâmetros de normalidade. Esta normalidade, apesar de não anular a ocorrência de crimes, mantém-se dentro do possível, uma espécie de “máximo de criminalidade aceitável”, evitando-se assim o esgarçamento social, as possíveis rupturas, ou como definido por Durkheim, evita-se a anomia, a situação social em que há suspensão, ausência de normas em virtude de seu não-cumprimento continuado e crescente. As sociedades e os grupos sociais podem conviver com o ato infracional, mas desde que sejam a exceção (e muito controlada em seus níveis de manifestação) e nunca a regra. Do contrário, a anomia, como afronta às regras, ao direito, ao senso de justiça, de correição, à própria ideia de regularidade, torna-se o habitual, a regra a ser seguida. E a anomia não pode ser a regra a ser seguida se falamos de uma sociedade gregária, balizada por contrato social.

A seguir veremos a ideia de que a anomia (a = não; nomos[6]) é uma forma avançada de desagregação social, fomentadora da violência social e, em contrapartida do Estado, resulta da falta de prudência institucional, como prevenção dos conflitos. No século XX, o direito público passou a envolver e a redimensionar o próprio poder, numa aliança entre democracia representativa e Estado de Direito. Este caminho sugerido deveria, em tese, tecer normas mais justas, equilibradas e com isso refrear a desconfiança do direito, a anomia.

A Anomia em Durkheim (1858-1917)

Durkheim nos afirmava que, na Alemanha, burguês e citadino eram sinônimos, e que o direito urbano era o direito do lucro. Os termos forenses ou mercatores designavam sem distinção os habitantes das cidades: o jus civile ou direito urbano (“evolutivamente” contratual) era sinônimo de jus foriou direito do mercado. Então, este “funcionalismo” requer certa “harmonia social” que também emerge da “solidariedade orgânica”: o tipo essencial das modernas sociedades capitalistas – alicerçadas mais no “contrato” e no direito civil ou direito contratual, do que no âmbito penal. Basicamente, porque o direito contratual se aplica ao comércio, à indústria, à ciência e tecnologia (direitos autorais, por exemplo) e subsequentemente ao Estado, instigando a evolução do espírito humano, a razão, a livre-escolha, a autonomia necessária à legitimidade contratual, enquanto que o direito penal é restritivo, limitador da condição humana, a começar pela liberdade.

Desse modo, o direito contratual nasceria fortificado das relações sociais, quanto mais se estimulassem as trocas, o comércio, os intercâmbios, a livre-manifestação das vontades, mais este direito socialmente integrador se desenvolveria. Portanto, o contrário do direito penal, altamente repressivo, castrador, limitador. Nas sociedades capitalistas desenvolvidas, o direito penal deveria refluir, resumir-se a um papel secundário e destinar-se somente à anomia recalcitrante (e que, por sua vez, seria a excrecência) ou, então, destinar-se apenas à exceção presente em uma sociedade integrada. Do mesmo modo que, para a Razão de Estado não é admissível o direito à sedição, discordância e separação do poder central, para as sociedades integradas (como a capitalista) não cabe falar em dissensão jurídica, como livre-escolha para não cumprir as regras sociais e jurídicas. Assim como não existe o direito à sedição, também não existe o direito à anomia (aliás, seria a própria contradição nos termos).

Como complemento, o direito constituído (Jus constitutum) é o direito da autoridade do governo (pode ser o pai ou o professor), de quem tem o poder (Jus empirii), e funciona como reflexo da arte do bom e do justo (Jus est ars boni et aequi). Por esta vertente funcional-sistêmica, equilíbrio e harmonia estão na não-dissensão, coibindo-se a anomia (= sem normas), como atentado contra o direito posto. É evidente como se fundem direito e capital. O que certamente lembra e ação exercida pela “exterioridade” e “coerção” dos fatos sociais. A diferença é que, ao invés de uma simples acomodação com as normas e as regras estabelecidas, o choque, a entropia do novo, com o já determinado é iminente – “este desarranjo do jovem com o já posto levaria a mudanças” (ou à sua requisição). A questão está em saber regular a entropia para que não se converta em anomia, para a requisição legítima da mudança não gere o descontrole total – é como se as mudanças pudessem ser controladas, esperadas, “pacificadas” ou esvaziadas de sua força inicial, para serem absorvidas e o todo se modificar lentamente, gradualmente, de modo muito controlado.

Neste curso, a síntese ideológica se verifica em um pensamento simples: “É preciso conhecer bem a máquina, para azeitar o seu funcionamento”. Este “azeite social” fará do positivismo de Comte e de Durkheim, o meio de seu desembarque na racionalidade industrial. A crença estaria depositada na equação de que industrialismo e racionalismo seriam capazes ou suficientes para inibir as possíveis mudanças provocadoras de anomias sociais — veja-se que se fala de anomia e não de antinomia. No entanto, é desse modo que Durkheim irá se integrar ao Estado Moderno, especialmente porque a racionalidade se aplica tanto à cotidianidade quanto à política institucional.

Por isso, a educação pública (cívica e moral) se tornou obrigatória, exatamente para difundir a razão da/na modernidade. No fundo, seria o conhecimento científico (racional) que seria difundido, pois a ciência é muito mais complexa do que esse conhecimento superficial (senso comum) e exige especialização, notoriamente para ser um conhecimento mais profundo. A divisão do trabalho social, portanto, deve buscar o complemento e o crescimento mútuo, e não a oposição e a contrariedade (Durkheim, 1999, pp. 18-21): “Por mais ricamente dotados que sejamos, sempre nos falta alguma coisa, e os melhores dentre nós têm o sentimento de sua insuficiência [...] É essa partilha de funções, ou, para empregarmos a expressão consagrada, essa divisão do trabalho que determina essas relações de amizade” (Durkheim, 1999, p. 21).

Como se vê, a amizade e o maior ou menor liame social são determinados pela divisão do trabalho social. O casamento é outra instituição fundamental da sociedade moderna e será marcado pela própria divisão sexual (e que será social) do trabalho. Porém, no plano geral, a divisão do trabalho é a fonte de toda solidariedade, quando os opostos se atraem e se complementam. O que equivale a dizer, novamente, que a divisão do trabalho social está associada à vida moral. Daí que deveria originar um direito que organizasse a vida social — o mesmo direito que deveria, decerto, regular a própria divisão do trabalho: o contrato de trabalho estabelece claramente quem compra e quem vende força de trabalho. Em suma, a solidariedade (gerada pela divisão do trabalho) é um fato social e Durkheim fará uso do direito para melhor compreendê-la (Durkheim, 1999, pp, 30-32).

O Direito e a solidariedade contratual

Neste sentido, o crime será visto como anomia que desafia a solidariedade e assim deve ser punido. (O crime é uma anomalia em virtude da razão evoluída do Homem que nos levou à vida coletiva, harmônica, como a maior construção que pudemos ter efetivado até o momento). O crime desafia a solidariedade, mas alguns crimes desafiam sua essência. Os crimes econômicos, por exemplo, desafiam muito mais a estabilidade social e nem sempre tem penas correspondentes:

Embora o ato criminoso seja certamente prejudicial à sociedade, nem por isso o grau de nocividade que ele apresenta é regularmente proporcional à intensidade da repressão que recebe. No direito penal dos povos mais civilizados, o assassinato é universalmente considerado o maior dos crimes. No entanto, uma crise econômica, uma jogada na Bolsa, até mesmo uma falência podem desorganizar o corpo social de maneira muito mais grave do que um homicídio isolado. Sem dúvida, o assassinato é sempre um mal, mas nada prova que seja o mal maior. O que é um homem a menos na sociedade? (Durkheim, 1999, pp. 41-42).

 

No Brasil, o crime mais fortemente apenado é o latrocínio: homicídio que encobre o objeto do roubo. É também interessante notar como a aplicação da pena segue o curso da divisão do trabalho social: mandantes, partícipes (co-autores) e executores: o soldado do crime numa das pontas e o cabeça, normalmente de colarinho branco, na outra. Entre os próprios presos, o crime de estelionato é bastante agraciado, porque envolve planejamento, inteligência, método, racionalidade — é o típico crime da modernidade capitalista. Ironicamente, as penas contra a “ordem econômica popular” são brandas (contrariando até mesmo Durkheim).

De modo geral, no entanto, as penas na sociedade moderna são menos aparentes: “Em primeiro lugar, a pena consiste numa reação passional. Essa característica é tanto mais aparente quanto menos cultas são as sociedades” (Durkheim, 1999, pp. 56-57). Exemplo disso é a transformação da pena de prisão em prestação de serviços à comunidade, quando o delito não é tão grave. Por isso, a sociedade moderna deveria manter organizadamente a consciência coletiva: “Todo estado forte da consciência é uma fonte de vida, é um fator essencial de nossa vitalidade geral. Por conseguinte, tudo o que tende a enfraquecê-lo nos diminui e nos deprime; resulta daí uma impressão de confusão e de mal-estar análoga à que sentimos quando uma função importante é suspensa ou retardada” (Durkheim, 1999, p. 68).

Para muitos, a consciência ainda inibe a ação, pois a função da pena para Durkheim não é punitiva, nem reparadora — sua função é manter a coesão social, a consciência coletiva. Seguindo a distinção do direito contratual e penal, Durkheim alinhavou as regras gerais do contrato moderno. Ainda é interessante notar que a aptidão profissional ou, de maneira geral, “aptidão para o trabalho”, também obedece à predisposição genética. Seria uma forma de medir as capacidades: “O indivíduo recebe, ao nascer, gostos e aptidões que o predispõem mais a certas funções que a outras, e essas predisposições têm certamente influência sobre a maneira como as tarefas se repartem” (Durkheim, 1999, p. 309). É o que também poderíamos chamar de “fator raça”: alguns nasceram para o trabalho manual e outros para mandar, como reflexo do trabalho intelectual. No fundo, é um elemento de dificuldade na evolução: “Assim, quanto maior o papel da hereditariedade na distribuição das tarefas, mais essa distribuição é invariável e, por conseguinte, mais o progresso da divisão do trabalho é difícil, mesmo quando tal progresso seria útil” (Durkheim, 1999, p. 310).

Mais um exemplo dessa divisão de funções decorre do fato de que há uma espécie de organização do trabalho fisiológico: “Mas também as mudanças que se produzem na organização do trabalho fisiológico são muito raras, restritas e lentas” (Durkheim, 1999, p. 311). Mas um dos melhores exemplos da hereditariedade na distribuição do trabalho vem do regime social de castas: “No entanto, assim que aparece de uma maneira caracterizada, a divisão do trabalho se fixa sob uma forma que se transmite hereditariamente: é assim que nascem as castas” (Durkheim, 1999, p. 311). Durkheim dará como exemplo o caso de Hipócrates, o 17º médico de sua família. Assim, a hereditariedade só empresta-nos conservação e estabilidade. Além disso, mesmo que Durkheim não o diga, ainda podemos pensar na primeira divisão fisiológica do trabalho social: os mais fortes fisicamente seriam guerreiros e os mais inteligentes, os líderes.

Durkheim irá equiparar as castas às classes sociais para afirmar que é necessário a sua superação — pois a classe social leva à individualização. Portanto, a modernidade tenderia, justamente, a diminuir a incidência da hereditariedade (ou anulá-la), na definição profissional. Por isso, o casuísmo e o diletantismo tendem a recuar, como arranjos artificiais. Na modernidade, a tendência é de que as dinastias profissionais se desfaçam — é fácil perceber que não se transmite a genialidade criadora, nem o dom artístico, bem como não se transmite a forma de se usar a inteligência (se para o bem ou para o mal). O que herdamos, por influência direta, são condições objetivas, favoráveis e estimuladoras ou não.

A divisão do trabalho social, então, reafirma-se e deixa a hereditariedade para trás, no curso da história que nos trouxe até à modernidade do século XXI: “O indivíduo fica, pois, menos fortemente preso a seu passado — é-lhe mis fácil adaptar-se às novas circunstâncias que se produzem, e os progressos da divisão do trabalho se tornam, assim, mais cômodos e mais rápidos” (Durkheim, 1999, p. 337). Uma especialização rígida, ao contrário, pode ser sinal de incapacidade de mudança, por isso não determina hierarquia: a mobilidade profissional hoje em dia é indicação clara dessa regra.

A sociedade capitalista moderna se desenvolve com a divisão do trabalho social e assim gera uma maior capacidade de gerir seu próprio progresso material e social: a interdependência leva a uma solidariedade natural e mais evoluída. Portanto, de lá de trás da história, para os dias atuais, é a sociedade moderna que constitui a própria consciência capitalista. Mas essas forças sociais, morais, jurídicas e materiais de afirmação da modernidade também produzem anomias, como ocorre com as falências (além do exemplo do suicídio):

Um primeiro caso desse gênero nos é fornecido pelas crises industriais ou comerciais, pelas falências que são verdadeiras rupturas parciais da solidariedade orgânica [...] O antagonismo entre o trabalho e o capital é outro exemplo, mais contundente, do mesmo fenômeno. À medida que as funções industriais vão se especializando, a luta se torna mais viva, em vez de a solidariedade aumentar. Na Idade Média, o operário vive em toda parte ao lado do patrão, partilhando seus trabalhos “na mesma loja, na mesma bancada” (Durkheim, 1999, pp. 368-369).

 

Vimos como Durkheim reconheceu o lugar da luta de classes na construção da modernidade (ao que Marx responderia com as crises cíclicas e existenciais do sistema capitalista — portanto, não como situação secundária, mas vital do sistema). De qualquer modo, como Marx, Durkheim perceberá de que modo a aglomeração dos trabalhadores acirrará a luta de classes: “A partir do século XV, as coisas começaram a mudar. A corporação de ofício já não é um asilo comum; é de posse exclusiva dos patrões, que decidem sozinhos todos os assuntos [...] A força da associação dava aos operários o meio de lutar com armas iguais contra seus patrões” (Durkheim, 1999, p. 369).

No século XVII há um acirramento da luta de classes, mas o que explica mesmo o fenômeno é a grande indústria: “Ao mesmo tempo que a especialização se torna maior, as revoltas se tornam mais frequentes [...] É bem sabido que, desde então, a guerra tornou-se mais violenta [...] Ora, a pequena indústria, em que o trabalho é menos dividido, proporciona o espetáculo de uma harmonia relativa entre o patrão e o operário; é somente na grande indústria que essas discórdias se encontram em estado agudo” (Durkheim, 1999, pp. 370-371).

Desse modo, Durkheim retoma Comte para afirmar o papel do Estado como mecanismo regulador dos conflitos e para impedir que a dispersão das funções tenha um papel desagregador e dissolvente da sociedade. Seguindo Durkheim: de modo nenhum a divisão do trabalho capitalista poderia resultar em anomia, pois a trajetória lógica, sistêmica, é a produção da solidariedade orgânica. No entanto, para se assegurar deste curso natural do desenvolvimento capitalista, o Estado pode regular (mas não conter) a divisão do trabalho social, oriunda das condições estabelecidas pelo mercado — seria como barrar a força motriz da civilização. Ou seja, a par disso, o Estado deve instigar a divisão do trabalho social como a única forma de se produzir, cada vez mais especializada e interdependente. O Estado deve regular, disciplinar a divisão do trabalho social e o Direito do Trabalho é o exemplo típico. O Estado deve apenas criar um organismo a partir da dependência gerada pelas especializações; a coerção da norma servirá para estreitar a solidariedade orgânica e para conter os pulsos de anomia. A crença maior aqui presente (e que o distancia completamente de Marx) é que Durkheim acreditava na capacidade do Estado de evitar a própria luta de classes, pois a divisão do trabalho movimenta uma força centrífuga, provocando a luta de classes, e deveria ser contida. O caminho lógico, além da ação governamental, estaria em reforçar a ação da solidariedade orgânica ou contratual:

Para que a solidariedade orgânica exista, não basta haver um sistema de órgãos necessários uns aos outros e que sintam, de um modo geral, sua solidariedade, mas é necessário, além disso, que a maneira como devem concorrer, se não em toda espécie de encontros, pelo menos nas circunstancias mais frequentes, seja predeterminada (Durkheim, 1999, p. 381).

 

A solidariedade orgânica, portanto, deve regular a concorrência, admitindo-se que seja forte esta força entre contrários — a solidariedade, de quebra, ainda deveria combater os estados de anomia. Se todos estão concordes e satisfeitos com sua posição social, estabelecida racionalmente a partir da divisão do trabalho social, por que descumprir o contrato social? Com a força agregadora da solidariedade orgânica, a própria luta de classes seria reduzida a uma mera indisposição pessoal. Com o que também se conclui que a solidariedade decorre dessa harmonia e só poderia ser espontânea. A solidariedade contratual, nas relações econômicas modernas, deveria resultar em algum tipo de contrato consensual, moral, de valor elevado da “consciência coletiva”: “O contrato consensual só aparece numa época relativamente recente. É um primeiro progresso no sentido da justiça [...] Enfim, a moral comum condena mais severamente ainda qualquer espécie de contrato leonino, em que uma das partes é explorada pela outra, por ser a mais fraca e não receber o justo preço por seu esforço[7]” (Durkheim, 1999, pp. 404-405).

Para Durkheim, industrialismo e racionalismo devem inibir as anomias sociais — e com essa fórmula o sociólogo francês irá integralizar o Estado Moderno. Neste aspecto, a moderna racionalidade tanto se aplica ao cotidiano quanto à mais alta política de Estado.

Bibliografia

DURKHEIM, Émile. A educação como processo socializador: função homogeneizadora e função diferenciadora. IN : Foracchi, Marialice M. (org). Educação e Sociedade. São Paulo : Companhia Editora Nacional, 1979.

______Lições de sociologia: a Moral, o Direito e o Estado. São Paulo : T. A. Queiroz : Ed. da Universidade de São Paulo, 1983.

______ Sociologia, Educação e Moral. Porto-Portugal : Rés, 1984.

______ Sociologia. 4ª ed. São Paulo : Ática, 1988.

______ Socialismo. Rio de Janeiro : Relume-Dumará, 1993.

______ Da divisão do trabalho social. 2ª ed. São Paulo : Martins Fontes, 1999.

______ As regras do método sociológico. 2ª ed. São Paulo : Martins Fontes, 1999b.

______ Ética e sociologia da moral. São Paulo : Landy, 2003.

 

 

Vinício Carrilho Martinez

Professor Adjunto II da Universidade Federal de Rondônia

Departamento de Ciências Jurídicas

Doutor pela Universidade de São Paulo

 



[1]Sinteticamente, podemos dizer que o Poder de Polícia corresponde ao dever público de zelar pelo interesse público, especialmente quando acaba por agir impondo limitações aos interesses de particulares. Assim, trata-se de um poder (público) de restrição de direitos particulares. De modo complementar, podemos dizer que se trata de uma manifestação muito especial do Poder Extroverso – mais exatamente do poder de coibir ações motivadas por interesses e direitos individuais, em benefício da maior e melhor preservação da totalidade dos Bens de Domínio Público. Neste sentido, o Domínio Público ainda pode ser definido como o regime jurídico que trata da composição e utilização dos bens públicos, cria regras reguladoras do uso adequado e/ou de normas protetivas contra abusos, atos ilegais ou ilegítimos e danosos ao patrimônio público, quer sejam atos particulares quer sejam do próprio Estado. Então, o Domínio Público determina a natureza jurídica, o alcance e os fundamentos sócias e políticos que recobrem os bens públicos: todas as coisas, exceto as que se resguardam sob o manto da propriedade privada (art. 65, in fine, do Código Civil). De modo amplo, podemos dizer que o controle público sobre seus bens é observado por meio do Poder de Polícia: a necessária limitação da liberdade ou contração de direitos e de interesses do cidadão, pelo Poder Público, em razão da preservação da integridade do interesse maior e que é a preservação do patrimônio nacional. Em outras palavras, trata-se de uma atuação da Administração Pública limitando o agir dos particulares, exatamente para que não extrapolem os limites legais e nem se contraponham ao interesse coletivo. Desse modo, ainda podemos dizer que o Poder de Polícia decorre diretamente do Princípio da Prevalência do Interesse Público sobre o privado, por expressar os anseios e as aspirações coletivas. Por fim, ainda podemos dizer que se trata do conjunto de bens das pessoas jurídicas de direito público, alémdevermos aqui o Poder Extroverso subsumido à responsabilidade social. Portanto, mais extensivamente, trata-se da manifestação do Poder Público a fim de assegurar a preservação completa dos bens públicos, pertencentes à Administração Pública direta e indireta.

[2]Os casos típicos são os movimentos de Desobediência Civil e o anarquismo e comunismo.

[3]O que traduziria o cumprimento da regra jurídica como uma “ação passiva”.

[4]O fato de analisar-se racionalmente, moralmente, conduz o sujeito a aderir ao direito por intermédio de uma “ação propositiva”.

[5]Em alguns casos, são ideologias que apregoam a antinomia, como mobilização social contra toda norma oriunda do Estado. 

[6]Indica expressamente ausência, falta, privação, inexistência de observação e cumprimento de normas, regras, leis.

[7]Não deixa de expressar a legitimidade alegada por muitos, inclusive por Rousseau.

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