Sábado, 27 de abril de 2024 | Porto Velho (RO)

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Gente de Opinião

Vinício Carrilho

Luta de classes: direito penal do inimigo de classe


 

Si no eres lluvia, mi amor,

sé arbol

cubierto de frutos... Sé árbol,

y si no eres árbol, mi amor, sé piedra

cubierta de humedad... Sé piedra,

y si no eres piedra, mi amor,

sé luna

en el sueño de la amada... Sé luna

(O Estado de Sítio – Mahmud Darwix)

 

A violência social é insuportável nos dias atuais, mas a resposta dada pelo Estado e seu ordenamento jurídico se encaminha para a associação direta entre direito penal e Estado de Exceção. Nesta sombria confusão, associa-se a democracia (um congresso livre que legisla sobre o fim da democracia) e os mecanismos propriamente nazifascistas. Da mesma forma, é certo que se aniquila todo Direito e toda forma de divergência em favor de certa unidade política sem uma clara identificação da finalidade pública. Para Umberto Eco (1998), muitas são as variáveis entre Direito e política no Estado Fascista, mas aqui ajustamos apenas algumas características e de acordo com nossa principal linha de análise. Neste sentido, o que vale para o Estado fascista também vale para o Estado de (não)Direito[1]:

1. Aprimeira característica de um Ur-Fascismo é o culto da tradição. Todas as mensagens originais contêm um germe de sabedoria e verdade primitiva. Como conseqüência, não pode existir avanço do saber. 2. O tradicionalismo implica a recusa da modernidade. O iluminismo, a Idade da Razão eram vistos como o início da depravação moderna. Nesse sentido, o Ur-Fascismo pode ser definido como irracionalismo. 3. O irracionalismo depende também do culto da ação pela ação. A ação é bela em si e, portanto, deve ser realizada sem nenhuma reflexão. 4. Nenhuma forma de sincretismo pode aceitar críticas. Para o Ur-Fascismo, a crítica e o desacordo são traições. 5. O desacordo é, além disso, um sinal de diversidade cultural. O Ur-Fascismo é, portanto, racista por definição. 6. Uma das características típicas dos fascismos históricos tem sido o apelo às classes médias frustradas. 7. Na raiz da psicologia Ur-Fascista está a obsessão do complô. Os seguidores têm que se sentir sitiados e o modo mais fácil de fazer emergir um complô é fazer apelo à xenofobia. 8. Os adeptos devem sentir-se humilhados pela riqueza ostensiva e pela força do inimigo. Os adeptos devem, contudo, estar convencidos de que podem derrotar o inimigo – com isso, porém, revelam-se incapazes de avaliar a força do inimigo. 9. Não há luta pela vida, mas antes vida para a luta. Logo, o pacifismo é conluio com o inimigo; o pacifismo é mau porque a vida é uma guerra permanente. 10. Há um elitismo popular, populista, que faz as massas sonharem com o poder. 11. Nessa perspectiva, cada um é educado para tornar-se um herói. Esse culto do heroísmo está estreitamente ligado ao culto da morte, não é por acaso que o mote dos falangistas era: “Viva la muerte”. (Eco, 1998, p 43 e ss.) [2].

 

Nesse Estado Fascista ou de não-direito, educa-se para a morte. Como vimos, apenas o desafio teórico colocado pelo conceito de Estado de Direito e, por oposição, a ausência do Direito dentro do Estado, já é grande o suficiente. Mas, a par disso, some-se o rescaldo de toda nossa história de direitos negados à maioria da população e teremos um quadro dramático que até hoje mantém a questão operária (e da pobreza) como questão de polícia, e não de política.

É desse modo que, por meio do direito penal do inimigo, que se confunde propositalmente a tirania da maioria com a defesa do contrato social. Essa tirania da maioria é absolutamente nefasta porque não se permite a formação de um espírito diferenciador entre todos que sofrem da coerção. Também é óbvio que não pode haver emancipação se há essa tirania da maioria e não raramente a resistência degenera em mera delinquência. Bobbio chama de tirania da maioria a mudança de regras para ameaçar determinados grupos sociais: “A maioria se torna tirânica quando se aproveita da própria maioria para mudar as regras do jogo, entre as quais, precisamente, é fundamental a da maioria, fazendo passar a maioria para a unanimidade, que, como tal, não reconhece mais a minoria” (Bobbio, 1994, p. 54 – grifos nossos). Entre a tirania da maioria e o Estado Democrático, em defesa do contrato social, há uma grande distância: “Aquele designa a liberdade do status negativus, ou seja, o espaço de liberdade de atuação individual face ao Estado. Este se refere à liberdade do status activus, ou seja, à liberdade de participação na formação da vontade comum” (Zippelius, 1997, p. 375). É importante ressaltar este aspecto porque a estrita observância da vontade da maioria, sem respeito ou garantia às liberdades e aos direitos individuais, pode facilmente degenerar em tirania da maioria – quando a maioria decide pela supressão dos direitos das minorias. Historicamente, a utilização dos meios de exceção em favor do capital, no EUA, é uma constante. O dado interessante é que, em nome exatamente da maioria, impõem-se a tirania da excepcionalidade:

No verão de 1786, o Tribunal Geral de Massachusetts começou a executar propriedades de fazendeiros endividados do condado de Hampshire, confiscando seu gado e suas terras [...] uma milícia de mil e quinhentos fazendeiros armados [...] impediu que os tribunais se reunissem e tomassem suas propriedades [...] A assembleia de Massachusetts suspendeu o direito de habeas corpus e permitiu indefinidamente que fossem feitas prisões sem julgamento para facilitar o sufocamento da rebelião. Ao longo do ano seguinte, os fazendeiros rebeldes foram perseguidos, muitos deles foram detidos e cerca de uma dúzia chegou a ser executada [...] A rebelião, afinal de contas, foi motivada por dívidas – dívidas que os fazendeiros jamais poderiam pagar. Apesar de toda a retórica da igualdade, os Estados Unidos eram uma sociedade dividida em termos de classes, e sob muitos aspectos sua Constituição destinava-se a manter a riqueza dos ricos (Negri, 2005, pp. 313-314 – grifos nossos).

 

Em nome da moralidade social, agimos imoralmente, com um poder incontrolável.

No livro O Contrato Social, de Rousseau, há uma boa pista do que se entende por este cidadão não-limitado pelas negatividades do liberalismo, pois, cidadão é o portador pleno dos direitos público-subjetivos (em busca de sua fruição) e como associado, da sociedade e do Estado, recebe a designação de povo, coletividade (livro I, cap. VI). Mas, a negação de qualquer legitimidade frente ao poder que abastece o capital desmente o papel do direito como regulador social, reservando-se à função de repressão. E no mesmo Rousseau, mas no Discurso sobre a Origem e os Fundamentos da Desigualdade, “O verdadeiro fundador da sociedade civil foi o primeiro que, tendo cercado um terreno, lembrou-se de dizer isto é meu e encontrou pessoas suficientemente simples para acreditá-lo”. Neste sentido, formava-se a segurança nacional da propriedade, ou seja, a Razão de Estado nada mais seria do que a razão dos ricos e de suas propriedades.

MATRIX: o direito é uma ficção

Rousseau sabia perfeitamente que o contrato seria uma ficção e que, na realidade, a legitimidade jurídica sempre sofre as enormes pressões da propriedade e do capital. A vida social, o contrato social, a ideia de solidariedade, a afirmação de que o homem é um animal político que se realiza na sociedade, a noção de que o direito nos integra a uma vida em comum, a construção epistemológica do Outro, para além de nós mesmos, a sociabilidade em que formulamos o “pensamento abstrato” e por meio deste damos concretude à própria coletividade necessária à vida social, tudo isso, é fantasia, virtualidade, um universo paralelo criado pela mente humana a fim de abrigar interesses tão distintos e vontades absolutamente conflitantes entre os homens. Inventamos tudo isso, como uma Matrix, uma rede social de acolhimento simplesmente porque é mais fácil sobreviver às adversidades trazidas pelas diversidades sociais e naturais. Viver como Robson Crusoé é esperar pela condenação à morte, mas não de solidão e sim por incapacidade de defesa individual. Sozinhos, somos alvos fáceis, de pouca força para resistir aos demais animais. Animais sociais, como formigas, cachorro selvagem africano, lobos, cupim, abelha, castores são mais inteligentes porque diagnosticaram sua fragilidade e trataram de se agrupar em torno de alguns interesses em comum.

De certo modo, quando se diz que o direito é uma ficção, refere-se à artificialidade criada pelo homem em sociedade para conduzir aos demais em torno de um consenso que (nem sempre, quase nunca) deriva do interesse global. No fundo, se há necessidade de acreditarmos no direito é porque precisamos ter a esperança de que alguém ou algo (o direito) estará ao nosso lado, atuando em nossa defesa, protegendo-nos e resguardando nossos interesses legítimos. Realmente, é uma ficção, porque para a imensa maioria não há provas suficientes, nem razoáveis, de que o contrato social estabelecido com base jurídica será melhor, mais justo, equilibrado do que, por exemplo, se o poder estivesse baseado unicamente no uso da força. Basta pensar na vida de milhares, milhões de pessoas comuns, anônimas, e que o mais perto que chegaram das instituições (defensoras da moralidade civil) foi no contato com a polícia. Ora, o aparelho repressor do Estado – e por sua vez também o sistema prisional – não exemplificam, sistematizam, legitimam o uso da força física nas sociedades modernas? Então, é de se concluir que, mesmo sabendo-se que em tese a policia deveria ser “legalista”, na vida prática dessas pessoas nem sempre as abordagens são acompanhadas de um “por favor”, “obrigado”. Portanto, há muito sentido quando se diz que o direito é uma ficção.

Por falar da realidade em paralelo criada pelas crenças sociais, após a exibição do filme Matrix, em 1999, muito se teorizou sobre a possível simulação da realidade em que vivemos, sendo que esta realidade paralela teria sido criada por computadores evoluídos. No futuro, supostamente, teríamos condições de saber se vivemos realmente ou se nossa vida é mera representação, sendo totalmente manipulada por cientistas sem escrúpulos. Curiosamente, ainda se trata disso com investimentos públicos. O que nos interessa é indagar se a democracia, a República, a Federação, novamente o direito como ficção, as demais instituições sociais, se tudo isso também não formaria a base social das criações de cientistas sociais, juristas, gestores mal intencionados, interessados apenas em nossa dominação. Como na Matrix, nosso conhecimento restrito nos impede de verificar a extensão da realidade política e social e, assim, seguimos acreditando que as instituições da sociedade moderna são boas, sérias, ajustadas aos nossos interesses e direitos. Não conheço quem poderia dizer em santa consciência que o Estado brasileiro (assim como a imensa maioria dos Estados nacionais) defende o interesse público. O Estado busca o bem comum? Mas como, se o direito editado por esse Estado separa socialmente os proprietários dos não-proprietários, os ricos dos pobres, os “melhores” de todos os que não tiveram sorte? Por que há presos que cometeram crimes famélicos e a corrupção do dinheiro público nunca implica no confisco dos recursos roubados? Como dizem os pesquisadores de Matrix: “A verdade será finalmente revelada quando os físicos unificarem o micro e o macro, e encontrarem nossas limitações percepto-sensoriais que nos impedem de enxergar a realidade” (Em: http://olhardigital.uol.com.br/negocios/digital_news/noticias/para-pesquisadores,-realidade-em-que-vivemos-pode-ser-simulacao).

Para Rousseau, o homem (na sua perfectibilidade) precisa da “ajuda das circunstâncias”, para que o estranhamento (obstáculo e adversidades) obriguem os demais homens (se querem sobreviver) a lançar mão de todas as suas forças e faculdades. Esta superação das necessidades, para Rousseau, é a própria fonte da evolução humana em seu processo humanizatório, civilizatório. Em suas palavras: “O primeiro sentimento do homem foi o de sua existência, sua primeira preocupação a de sua conservação. As produções da terra forneciam-lhe todos os socorros necessários, o instinto levou-o a utilizar-se deles” (Rousseau, 1988, p. 64). Já a sociedade civil, contrariamente, lhe aparecia como resultado do modo de produção, mais especificamente com o surgimento da propriedade privada: “O verdadeiro fundador da sociedade civil foi o primeiro que, tendo cercado um terreno, lembrou-se de dizer isto é meu e encontrou pessoas suficientemente simples para acreditá-lo” (Rousseau, 1988, p. 62 – grifos nossos). Rousseau ainda cita o filósofo inglês John Locke para dizer que “sem propriedade não haveria afronta”. Em seguida à formação da propriedade, houve a formação da família como célula da sociedade e depois as nações, e com esse aglomerado veio a vaidade e a inveja: com a civilidade também veio a crueldade. Ou seja, a sociedade civil e o Estado Policial foram criados para defender a propriedade privada e não a vida do indivíduo comum, sem posses. Além disso, a ganância soube prosperar na divisão social do trabalho e na apropriação individual:

“...desde o instante em que um homem sentiu necessidade do socorro de outro, desde que se percebeu ser útil a um só contar com provisões para dois, desapareceu a igualdade, introduziu-se a propriedade, o trabalho tornou-se necessário e as vastas florestas transformaram-se em campos aprazíveis que se impôs regar com o suor dos homens e nos quais logo se viu a escravidão e a miséria geminarem e crescerem com as colheitas” (Rousseau, 1988, p. 69).

 

            Com isto, Rousseau antecipou uma refutação ao sociólogo francês Émile Durkheim, para quem a divisão social do trabalho é a força-mestra do crescimento humano e social. Para Rousseau, ao contrário, a desigualdade social também tem origem na produção — esta foi a origem da metalurgia e da agricultura:

Desde que se tornaram necessários homens para fundir e forjar o ferro, precisou-se de outros para alimentar a estes [...] Somente o trabalho, dando ao cultivador um direito sobre o produto da terra que ele trabalhou, dá-lhe consequentemente direito sobre a gleba pelo menos até a colheita, assim sendo cada ano; por determinar tal fato uma posse contínua, transforma-se facilmente em propriedade (Rousseau, 1988, p. 70).

 

Portanto, o conhecimento técnico aplicado à produção (razão instrumental) trouxe a propriedade privada. A própria distinção entre essência e aparência (na vida social) veio da astúcia, desse “fausto da razão instrumental” e da decorrente relação de propriedade. Como podemos deduzir, o contrato social sempre foi mais vantajoso ao rico do que ao pobre, uma vez que só o rico tinha algo a perder: a conservação de si mesmo e da propriedade. Da retórica (“linguagem instrumental”) veio a ideologia em favor da propriedade. Então, dessa razão instrumental, a serviço da propriedade, ainda se viu instituir o Estado Policial (forma de Estado que melhor se ajusta à defesa dos interesses sociais predominantes), e foi assim que a propriedade transformou uma “usurpação sagaz”[3]em direito inalienável. Isso teria nos impedido de fugir desse “destino da modernidade”, pois não se “escapou ao jugo” e nem “subtraiu-se ao gládio”. Em seguida, advieram as guerras nacionais e a ideia da segurança nacional apoiada no edifício político-institucional da Razão de Estado[4]: “Daí nasceram as guerras nacionais, as batalhas, os assassinatos [...] viu-se, por fim, os homens se massacrarem aos milhares sem saber por que e cometerem-se mais assassinatos num só dia de combate e mais horrores na tomada de uma única cidade do que se cometera, no estado de natureza, em toda a face da terra, durante séculos” (Rousseau, 1988, p. 74).

Neste sentido, formava-se a segurança nacional da propriedade, ou seja, a Razão de Estado nada mais seria do que a razão dos ricos e de suas propriedades. Mas tudo ao contrário do que Rousseau gostaria de ver, pois, o governante foi feito para que pudéssemos evitar a tirania: “Incontestável, pois, e máxima fundamental de todo o direito político, é que os povos se deram chefes para defender sua liberdade e não para serem dominados. ‘Se temos um príncipe’ dizia Plínio a Trajano, é ‘para que nos preserve de ter um senhor” (Rousseau, 1988, p. 76). Esperava-se assim desde o começo alcançar a ética na política – mesmo o homem sendo um animal anti-social. Contraditoriamente ao “estado de natureza”, a alteridade é o deslocamento da própria personalidade individualista.

É por isso que toda ficção ou simbologia necessita de uma dose muito grande de crença coletiva e com o Estado e o direito não seria diferente. Quando, sem ingenuidade ou abduzidos pela ideologia oficial, diremos que o Estado não está mais à deriva? Teoricamente, é possível sustentar que nunca teremos um Estado que não seja em paralelo, como na realidade de Matrix; na prática, ao menos podemos esperar que o Estado e a sociedade não estejam afundando.

No auge conhecido atualmente direito penal do inimigo as confusões principiológicas deliberadas tem o afã de abominar a prevalência dos direitos fundamentais, abolindo-se então as regras protetoras das cláusulas pétreas. O chamado “crime de pessoa” reservado ao estereótipo, condição social, origem étnica, cor ou aparência geral externa, é bastante conhecido da história policial brasileira, com a punição, prisão dos vadios e incrédulos do capital. No pós-11/09, entretanto, a origem no Oriente Próximo, a escolha pelo islamismo colocam o indivíduo no rol de suspeito, por reunir indícios materiais, e sustentam sua prisão e interrogatório sem provas ou direito de defesa. Certificando-se a confusão entre os tipos de Estado contemporâneos, entre o Estado de Exceção e o Estado Penal. Assim é que para Negri (2005) a guerra em rede, provocada pela crise de civilização, impõe um estágio penal absoluto. Na lógica da guerra assimétrica, alguns devem ser extirpados do convício. Esses indivíduos alvejados como “outros-inimigos” têm status, classe, cor, etnias definidas. À falta da individualização da pena, pois padecemos todos sem as garantias dos direitos fundamentais, cede-se à individualização do sofrimento, generalizando-se o uso da exceção na tortura que corresponde a um Estado de Necessidade, como uma técnica essencial, inevitável, justificável. Opera-se uma mudança de política de defesa para política de segurança e de reação para ação.

O Império da guerra (outrora o império da lei) não mais contra-ataca, porque promove guerras preventivas. E assim, novamente, guerra e ação policial encontram-se uma vez que só o meio social acondicionado é seguro. Esta é a moderna doutrina de segurança pública: a guerra total. Policial e guerrilheiro (soldado, mercenário) não mais se distinguem. Em nome da Razão de Estado, promove-se a guerra justa. Portanto, a autoridade baseada tanto na defesa externa quanto na segurança interna define o poder do monopólio da violência. O direito de exceção serve ao Estado, assim como o poder constituinte está em favor dos insurretos. A exceção, como se sabe, afasta o Princípio da Moralidade, porque institui duas perspectivas diferentes e excludentes: uma lógica para o poder, outra para a regra dos cidadãos. E como é a regra do poder que prevalece, sobretudo porque o Estado se autorregula no que lhe interessa, a exceção acaba por vigorar como regra global.

Se o objetivo é estabelecer ou manter a ordem (e não a paz), a violência será legitimada (ou não) a partir dos resultados obtidos. Se a ordem está posta, a legitimidade é conferida pelo poder. Portanto, é necessário haver inimigos em abundância que autorizem o poder extremo da exceção. Sob as escusas da segurança pública, o Estado Penal precisa demonizar grupos sociais e criar os inimigos a serem debelados. Por isso, a tipificação genérica e as normas sem preenchimento, a conveniência política é sempre acionada para decorar o direito penal. É necessário fabricar o inimigo social porque sua presença reforça a necessidade de segurança. Esse estado de guerra reforça a simetria entre criminalidade e terrorismo. A chamada Pax romana ressurge no Estado Penal para travar um grande embate com a guerra civil mundial – a resposta vem com o posicionamento de uma polícia mundial. Por isso, o Estado Penal é um novo tipo de Estado Ético, em que se privatiza a guerra e a segurança – nesse sentido, nem mesmo Maquiavel seria um consiglieri ou conselheiro republicano. Os mercenários impõem-se como novo fator estratégico do Estado Ético: a terceirização alcança a fase da extinção da vida.

Porém, como a resistência está em rede (guerra civil), há uma espécie de rebelião ou revolta dos “muitos”. Isto reforça o dilema de que o soberano necessita da plena obediência – certamente, um fato que revela fragilidade, pois o soberano não depende apenas de si mesmo. O policiamento e a contra insurgência não tem fim: combater as guerras assimétricas das ruas é como atacar um enxame de abelhas africanas. A luta de classes ainda é a referência para que se justifique a ação do Terrorismo de Estado – não é mais um vocábulo da classe oprimida. O direito penal do inimigo trará a legitimidade jurídica ao Estado Policial Mundial, antes discutida pela ação libertária dos sitiados socialmente.

O Direito no Estado de Sítio Social

No exemplo brasileiro mais recente, a onda de violência na maior cidade brasileira, São Paulo, tem levado a medidas extremas, dentro e fora do alcance da lei – diga-se de passagem que está mais fora do que dentro da lei. Esquadrões da morte formados por policiais, como não se via desde o regime militar, matam muito e friamente, como os “marginais” a quem dizem combater. Por isso, é comum ouvir-se dizer que há “caçada humana” – não há nenhum exagero nisso. Porém, ao lado do Estado de Exceção que se formou, também agem as “forças institucionais da lei”. Nessas ações, as comunidades marginalizadas economicamente são cercadas e invadidas pela polícia[5]. São cercos que se fazem nas ruas e nas casas, pois os policiais entram nas casas sem mandado judicial. O mesmo ocorreria em bairros ricos? A polícia entraria em uma mansão, sem mandado ou sem solicitação de seus moradores? Promoveria cercos e invadiria conjuntos residenciais abastados? Nunca houve caso semelhante.

As comunidades marginalizadas enfrentam blitz de mais de 500 policiais. Ocorre um verdadeiro cerco militar, como se fosse decretado – na prática – um Estado de Sítio Social. Chamadas de “operações de saturação”, as forças públicas atuam em nome da lei, mas só para prender pequenos traficantes. O grande traficante, de acordo com a própria polícia, vive nesses conjuntos residenciais aos quais a polícia nem se aproxima. Como resposta ao Estado de Sítio, o crime organizado decreta o toque de recolher[6]. Os condomínios, assim como os shoppings centers, são ilhas de poder que fogem da lei; somam tanto mais prestígio quanto mais servem de refúgio ao poder de exceção que acompanha o poder econômico. São pontos de fuga da regra jurídica, porque o direito é indefeso diante do poder que compra a cidadania. As comunidades pobres, ao revés, são pontos cegos; nas comunidades o direito não se apresenta e nem se manifesta, porque o direito segue a economia. Os condomínios são pontos de refúgio sem o alcance da lei, as comunidades são pontos de refugo, ao arrepio da lei. Em ambos, a lei não chega, mas nos condomínios a lei não chega para preservar a intimidade do poder e da economia; nas comunidades, a justiça passa longe porque o direito não protege a quem não tem dinheiro.

Neste sentido, com o Estado de Sítio Social, dia e noite, os trabalhadores, suas mulheres e crianças são desnudados, desvestidos da cidadania e da dignidade humana. Antigamente, a mesma polícia exigia a apresentação da carteira de trabalho, para provar que o indivíduo era um cidadão. (Seria preso todo dia, porque só ando com identidade). Pedia-se a carteira de trabalho porque o capital não perdoa aqueles que não produzem, não perdoa os que não se submetem à exploração econômica, os que não se enquadram na lei da compra e venda da força de trabalho. Quem não gera mais-valia, lucro, renda, para os empregadores, é vadio, deve ser preso. Antigamente, havia crime de vadiagem e os presos eram os avós desses que são cercados pela polícia. Aliás, a mãe de um dos jovens mortos por um dos esquadrões, levou exatamente a carteira de trabalho do filho à delegacia, buscando comprovar o emprego regular e fixo do filho – talvez, na ânsia de que a memória do jovem não fosse achincalhada, mesmo depois que sua vida foi brutalizada. Não há nada de novo neste país e, para se certificar, basta consultar a história do direito.

 

Direito penal do inimigo

            O Estado Penal objetiva o direito penal do inimigo por meio de “setores sociais de regulação e a serem regulados”; como se pudesse haver um direito repressivo que desejamos doar a nossos amigos. O direito penal do inimigo estaria na “terceira velocidade”, em que haveria a imposição das penas privativas de liberdade e a flexibilização dos princípios político-criminais. De todo modo, para suas regras penais já não vigoram princípio e/ou garantias, uma vez que atuam as normas penais em branco (com grande possibilidade interpretativa, subjetiva[7]). Assim, o cerne do debate proposto está em inserir o fenômeno social da criminalidade social às regras de exceção criadas para o inimigo. O resultado é que passam a ser equivalentes, em termos jurídicos, o combate ao tráfico e ao terrorismo. As medidas de emergência promulgam a “guerra ao terror”, combatendo grupos humanos e não propriamente fatos reais. Não há história, a não ser a própria história da Razão de Estado e por isso haveria certa ilusão na máxima ubi societas, ibi jus, uma vez que não se separam os fatos jurídicos dos não-jurídicos (ou políticos, por exemplo). A infração, sobretudo penal, deve ser tratada seriamente porque o infrator é um inimigo de Estado, um traidor que merece punição compulsória, intempestiva (o crime é imprescritível, prolonga-se além de sua ação). Assim como se deu com a pena imposta a Caim, prolongando-se a punição às gerações futuras, sem solução de continuidade. A própria ideia de se separar um direito penal do inimigo e outro do cidadão (se o cidadão não é infrator, por que o direito penal?) corresponde a uma tentativa de se criar uma metodologia criminal baseada nas “medidas em estado de exceção”. Por influência dos EUA, a guerra impõe outra aparência jurídica; por exemplo, a guerra que impõe a excepcionalidade afasta a proporcionalidade.

            O direito penal do inimigo, ao equivaler infrator e combatente, alveja duplo sentido: simbologia do direito penal; punitivismo expansionista. Este suporte revela que a exceção cria irracionalidades jurídicas quando separa epistemologicamente o “cidadão normal” do anormal; como se vê na prisão de Guantânamo (Cuba) em que os terroristas são tratados como fontes do perigo e núcleo do Mal. Por isso, argumenta-se que para os tratados criminalmente no Estado de Emergência Penal, não se aplica o direito e sim a pena. Também se diz que, seguindo o pensamento contratualista (de que a sociedade se origina de um contrato social), especificamente de Rousseau, o infrator volta-se contra a sociedade, viola o contrato social e, portanto, deixa de ser membro do Estado: ao violar o direito social colide com o Estado em sua soberania. Também para a filosofia de Fichte, o infrator coloca-se em “ausência completa de direitos”, como se lhe fosse decretada a “morte civil”. Do mesmo modo, para o pensar do filósofo Hobbes, como o infrator não tem capacidade jurídica de anular seu status de nacional, permanece sempre ao alcance do Estado e de seu direito de guerra, ainda mais quando o Estado se prepara para combater a guerra civil. Nessa mesma linha de argumentação, destaca-se no Kant da Paz Perpétua a razão para que o infrator tenha o status de inimigo. Pois, para o inimigo, a razão estatal vai da coação (coerção) à guerra.

Não é por acaso, portanto, que as medidas de segurança e suas “múltiplas formas intermediárias” podem facilmente chegar aos extremos da exceção. Portanto, não se trata de reparar o dano, mas sim de eliminar o perigo: tal qual na guerra não se atira para ferir ou avisar do perigo. A diferença entre obstáculos ou ofendículos à liberdade e a coerção praticada pelo Poder Público (ética como salus publica), ou seja, como limitação à mesma liberdade, decorre da lógica de que, segundo Kant, a coerção corresponde à ética social já regulada e positivada pelo Direito (como Lei Universal). De tal sorte, a indicação da liberdade (fazer ou deixar de fazer) é dosada pela coerção que estabelece os limites e os parâmetros éticos (costumeiros) da convivência social em determinado momento histórico e em cada sociedade.

A pena se dirige à segurança do futuro e não aos fatos já perpetrados, assim como a despersonalização do infrator (Guantânamo) decorre simplesmente do fato de que, para o Estado e para o direito, já não se trata de pessoas. Isto se justifica porque o inimigo de Estado rechaça a legitimidade do ordenamento jurídico, não apenas agindo contra a norma jurídica, mas contra o contrato originário; agindo contra todos os laços de sangue, ameaça a integridade, a sobrevivência do grupo. O que legitimaria a usar todos os meios, em favor do fim único: o uso da exceção está em que suas regras foram incluídas no direito penal, legitimando-se como “guerra contida”, em que cabe “uma custódia por segurança antecipada”. O perigo do futuro sinaliza uma “custódia de prevenção”: o saneamento da vida social. Em nome do Estado de Direito, retiram-se direitos. O receio do fato futuro (o crime a ser cometido) implica na eliminação do direito no presente. Ao que intervém – como base no 11/09/2001 – a legalidade do procedimento de guerra. Assevera-se que falta “segurança cognitiva suficiente” (desejo do direito) a quem se volta contra o ordenamento jurídico e, por isso, se o Estado o tratar como pessoa, sujeito de direitos, estará negando a necessária segurança cognitiva (desejar viver sob a Constituição Cidadã) aos demais membros do grupo.

A pessoa, como sujeito de direitos, é quem deve ter consciência (elo cognitivo) da norma jurídica – mesmo que a desautorizando. Já o inimigo, ao procurar exterminar a norma jurídica, afugenta-se deliberadamente do vínculo social e da cognição jurídica – é como se agisse para se colocar fora do alcance do Estado, negando-o. Enfim, o direito penal do cidadão se caracteriza pela contradição social (conflito normativo de interesses) e o direito penal do inimigo se congratula pela “eliminação do suposto perigo” (conflito beligerante de interesses). A exceção permitida pela lei leva à exclusão, eliminação do inimigo. Do que decorre, obviamente, uma relação desproporcional entre o tipo penal e o bem jurídico tutelado, impondo-se uma série de práticas sociais excludentes conhecidas do Estado Penal – uma “criminalização no estado prévio”. Portanto, ressurge o punitivismo, como vingança pública.

            Mas, tem-se a impressão de que o legislador está atento, pronto a resolver os problemas da violência social por meio da criminalização das próprias relações sociais: um tipo de direito penal simbólico, em que predomina a função latente sobre a manifesta (um “empiriocriticismo” em que o idealismo jurídico se desfaz diante do crime que nem existiu). Isto, por certo, fortalece o clima punitivista em que a política criminal despreza os antecedentes. De todo modo, assinala-se uma crescente demanda de criminalização do mundo da vida. Atualmente, há uma forte demanda pela criminalização da política e das relações sociais aflitivas e decorrentes da luta de classes, tanto na América Latina quanto nos discursos da socialdemocracia europeia. O resultado é a exclusão do Outro, tanto nos discursos e práticas punitivas da esquerda quanto na direita política. Com isso, o Estado ainda dissocia o direito e o sujeito, despersonaliza a ação social delituosa e não mais se aplica ao controle social - e sim ao combate social. A este “outro sujeito de não-direitos” (no lugar do Outro) não se aplica a reprovação, mas sim a neutralização. Nesta Nova Cruzada (basta ver o crescimento dos exércitos mercenários), somam-se, misturam-se o sentido religioso e militar. A atribuição da perversidade ao “outro-inimigo” implica na sua demonização, como já ocorrera com os pobres, os trabalhadores, os “vadios”, as oposições políticas e as “classes sociais inimigas”. (Lúcifer, o anjo caído, também recebeu o nome de inimigo).

Estando em debate aberto a ultima ratio, a última barreira do capital em defesa contra os não-proprietários, o fato jurídico notório é o emprego de meios de exceção para a exclusão social (hoje não-étnica) e, é claro, não pode haver excepcionalidade da lei sem que ocorra a própria fuga da normalidade, legalidade do sistema. Com o excepcionalismo, a Razão de Estado praticamente reconheceu a competência normativa do autor (a capacidade de questionar o sistema de normas e de poder). Porém, por meio da tipificação do “inimigo social de Estado” acaba por se reconhecer seu status de opositor e que se tornou inimigo. Neste sentido, já se tipificou o “terrorista individual”, a partir de um direito penal do autor e não como cobertura cognitiva do fato consumado (Jahobs, 2005). Pune-se não pela ação agressiva, mas pela própria existência. Afinal, à Razão de Estado interessa muito mais identificar e neutralizar o suposto “outro-inimigo” do que restringir a pena ao fato. Nossa crise de civilização, além de moral e material, é também uma crise princípios e de lógica: a tirania da maioria adquiriu a legitimidade assentada na Razão de Estado. Se há caminho alternativo a esta formação/adequação ao sistema emasculado da liberdade, a saída está na educação radical para não-sucumbir, para não se contentar com a servidão voluntária.

Para o libertário La Boétie (1986), trata-se de denunciar a tirania que se encontra aposta ao Estado Teológico, em pleno curso do Renascimento. Em seu Discurso, La Boétie (1530-1563) produziu um hino à liberdade. Neste momento, seu maior amigo e interlocutor era Montaigne (1533-1592) e este nos diz que seu espírito e sua obra não pertenciam ao século XVI. Para La Boétie, a tirania, governo de um só homem, é ilegítima. Também recusa os fundamentos religiosos e assim denuncia o Estado Teológico de opressão e de obscurantismo. Trata-se de uma educação contra a tirania, hegemonia, unanimidade e qualquer tipo de opressão, especialmente quando em nome da liberdade. Trata-se de educar contra o desejo de ser sitiado!

Voltar à Paidéia: educação e cultura política

O sitiado é alguém que luta para restabelecer a política como atividade formadora de urbanidade e de cunho intersubjetivo, como se procurasse restabelecer os dizeres de que na polis em que mora pode/deve haver um espaço público em que se pratique a isonomia (o real imperfeito é mais suportável quando é erga omnes) e a isegoria (liberdade de opinião para criticar as imperfeições). O sitiado estará querendo dizer que em sua casa foi restaurada a vivência de uma cultura política (Paidéia). Esta “virtude política”, quando restaurado o espaço público (banindo-se o cerco), é viável com uma convergência mínima, com a solidariedade que se revele possível. O sitiado quer sua cidade de volta porque só assim pode reviver a polis, a cidade política que torna a vida moderna possível. Esta retomada da malha política é tão essencial que sem ela, pode-se dizer, não há condição humana. Esta urbanidade e civilidade trazidas pela vida política (sitiada) é a própria inscrição do homem na maioridade — diz-se que saímos da pré-história com a invenção da escrita, mas na verdade só conhecemos a plenitude com a história política ou com a escrita política. Por isso, o sitiado luta pela moderna Paidéia — essa mescla entre cultura política e educação para ter direitos.

            Pensar a educação em direitos (como educação republicana), é óbvio, remete a pensar o direito à educação – mas é mais ou menos visível (historicamente) como não haveria direito à educação sem que houvesse muita luta e é aí que a educação em direitos a precede, na forma da luta política pelo reconhecimento de direitos — inclusive a luta pelo reconhecimento da educação como um direito social fundamental. A experiência da educação republicana nos EUA nos trouxe algo importante: reconhecer que o efeito essencial da educação é a “crença na perfectibilidade”. Esta crença pode mover o povo em direção ao Estado-Nação, principalmente se nesse curso está claro o sinal de que a educação será uma luta contra as desigualdades, partindo-se do direito à isonomia republicana: “Nas palavras pronunciadas por John Adams em 1765 – isto é, antes da Declaração da Independência – “Sempre considerei a colonização da América como a abertura de um grandioso desígnio da providência para a iluminação e emancipação da parte escravizada do gênero humano sobre toda a terra” (Arendt, 1992, p. 224).

Neste sentido, a educação republicana que interessa a todos, à democracia, ao sitiado, é formada por um conjunto complexo que retoma a tradição grega e a combina com alguns traços do Iluminismo[8], num rol de características formado por: 1) intersubjetividade; 2) interatividade;3) convivialidade; 4) urbanidade; 5) civilidade; 6) coletividade; 7) sociabilidade; 8) “isonomia”; 9) “isegoria”; 10) publicidade. Descritivamente, essas condições se desenrolam assim: 1) precisa-se “reconhecer” que, do outro lado da relação política, há outros sujeitos (individuais e/ou coletivos) com direitos, interesses e demandas igualmente legítimos aos nossos, 2) é necessário um mínimo de aceitação mútua para a convivência na vida social; 3) é preciso enfrentar os conflitos sem impor a exclusão do Outro; 4) com os laços urbanos reatados o cidadão volta a se interessar pelo seu entorno, pelos problemas sociais comuns à cidade, pelos demais cidadãos; 5) com a civilidade, vê-se que o diálogo e a inteligência só preponderam em tempos de paz, pois na guerra o convencimento se dá mediante o uso da força, da simples eliminação do adversário; 6) a política hoje atende à “democracia de massas” e não mais pode se restringir a uma elite de “cidadãos ativos”, como na Grécia clássica; 7) o “lado perdedor” tem o direito assegurado de sobreviver politicamente, porque a idéia de “coletivo” evita a adesão a uma “tirania da maioria” e ainda reconhece os “direitos das minorias”; 8) o reconhecimento da igualdade formal elimina desigualdades de ordem jurídica e assegura o sufrágio universal (cada cidadão, um voto); 9) sem liberdade de expressão não há manifestação política livre; 10) tanto os atos de governo devem ser revelados claramente, “publicizados”, quanto o interesse público sobrepõem-se aos interesses particulares. Por isso, tanto a guerra quanto a luta de classes, como conflitos insolúveis, salvo quando há exclusão de uma (ou mais) partes envolvidas, ocorrem exatamente porque não há mais proposição, negociação, articulação e discussão política. Nesses dois casos, há uma transformação do adversário em inimigo e, assim, o adversário acaba abatido, aniquilado — e é claro que sem adversário não há política, há apenas exclusão da própria política. No embate político, o perdedor de hoje pode recorrer amanhã; no embate da guerra civil não há retorno, só extermínio.

A voz do sitiado ecoa em prosa e em verso, tem dramaticidade na vida real e no romance, na resistência armada e no poema. A voz do sitiado em todos que rejeitaram a obediencia à exceção, sob que razão fosse, e assim se lançaram em prol da “luta pelo reconhecimento do direito à sedição”. Estão aqui, passado e presente, realidade e ficção, verso e prosa, em perfeita harmonia que dissocia a razão do bom senso, o direito da justiça, e mistura freneticamente utopia com alucinação, o poder com a barbárie.

 

Bibliografia

ARENDT, H. Entre o passado e o futuro. (3ª ed.). São Paulo : Editora Perspectiva, 1992.

­­______ Sobre a violência. Rio de Janeiro : Relume-Dumará, 1994.

______ O que é política. Rio de Janeiro : Bertrand Brasil, 1998.

BOBBIO, Noberto. As ideologias e o poder em crise: pluralismo, democracia, socialismo, comunismo, terceira via e terceira força. Brasília-DF : Editora da Universidade de Brasília, 3ª edição, 1994.

CANOTILHO, J. J. G. Estado de Direito. Lisboa: Gradiva, 1999.

DARWIX, Mahmud. Estado de Sítio. Espanha - Madri : Ediciones Cátedra, 2002.

ECO, Umberto. Cinco escritos morais. 3. ed. Rio de Janeiro: Record, 1998.

JAHOBS, Günther & MELIÁ, Manuel Cancio. Direito Penal do Inimigo: noções e críticas. Porto Alegre : Livraria do Advogado, 2005.

LA BOETIE, E. Discurso sobre a servidão voluntária. Lisboa-Portugal : Edições Antígona, 1986.

NEGRI, Amtonio. Multidão: guerra e democracia na era do império. Rio de Janeiro : Record, 2005.

ROUSSEAU, Jean-Jacques. Discurso sobre a origem e os fundamentos da desigualdade entre os homens. 4ª ed. Col. Os Pensadores. Vol. II. São Paulo : Nova Cultural, 1988.

ZIPPELIUS, Reinhold. Teoria Geral do Estado. 3ª ed. Lisboa : Fundação Calouste Gulbenkian, 1997.


[1]“Estado de direito é um Estado ou uma forma de organização político-estatal cuja atividade é determinada e limitada pelo direito. ‘Estado de não direito’ será, pelo contrário, aquele em que o poder político se proclama desvinculado de limites jurídicos e não reconhece aos indivíduos uma esfera de liberdade ante o poder protegida pelo direito” (Canotilho, 1999, p. 11 – grifos nossos).

[2]A citação das análises de Umberto Eco (1998) não é literal, mas o leitor encontra sua posição descrita completamente às páginas 43 e seguintes do referido livro.

[3]Fazer crer aos demais que uma certa demarcação de terreno era legítima e poderia ser apropriada pelo autor.

[4]Entendendo-se agora a Razão de Estado como princípio de conquista e de anexação de territórios, a fim de aumentar o poderio do Estado conquistador. Na história da formação dos Estados, cada autor é um fautor.

[5]http://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/agencia-estado/2012/10/29/pm-de-sp-prende-membro-do-pcc-em-paraisopolis.htm.

[6]http://noticias.uol.com.br/ultimas-noticias/agencia-estado/2012/10/27/boatos-de-toque-de-recolher-fecham-comercio-em-sp.htm.

[7]Lembrando-se que a subjetividade decorre de modo direto, inflexivo da presença do sujeito, isto é, quem promove a subjetividade é o sujeito – o que ainda permite concluir que, para cada sujeito, equivale uma interpretação.

[8]Sem dúvi

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