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Gente de Opinião

Vinício Carrilho

Estado de Emergência Policial


O caos que se verifica no país todo – em razão da total insegurançasocial, da incapacidade do Estado em enfrentar o crime organizado – temanimado a criatividadede algunsespecialistas em respostas prontas e rápidas. O oportunismo ainda é um marco: em São Paulo, por exemplo, prefere-se acordos espúriosà açãopropriamente legal, como vistono fato de que a tropa de choque não faz varreduras no interior dos presídios. Do mesmo modo que se investe na fábrica do encarceramento, como se fosse segurança, o sucateamento e o desinteresse público obrigam policiais a realizarem rodízio com seus coletes balísticos.Estado de Emergência Policial - Gente de Opinião

Uma dessas saídas imediatas, talvez a mais legalista, propõe a adoçãode leismaisduras, “pesadas”. Nao importa muito a qualidade reparadora da lei ou a impunidade, como incapacidade de se aplicar a lei existente, apenas a imposiçãode leis mais hostis seria suficiente para os mais crédulos. A lei mais hostil perde, obviamente, a referência à construção de uma sociedade mais humanizada, equilibrada socialmente – até porque seu objetivo é a repressão, punição de tipo exemplar. Na atualidade do Estado Penal, a vingança pública substitui a humanização do sistema penal: “Foi um dia fatal aquele em que o público descobriu que a pena é mais poderosa que as pedras da rua, e que seu uso pode tornar-se tão agressivo quanto o apedrejamento” (Wilde, 2003).

Nao é à toa que hostil vem de hostis, como “inimigo” em estado de guerra – o criminoso não é apenas criminoso ou hostil, no sentido tradicional, é um hostis, um inimigo a ser abatido e não ressocializado. Contra esse inimigo da sociedade e do Estado, aplica-se o direitode guerra, com julgamento e execuçãoprimárias.

No Brasil, ao invés de avançarmos institucionalmente em direção a uma racionalidade moderna (leia-se inteligente, objetiva, eficiente), parece que preferimos sempre a contramão da história. Quando o mundo trabalha com as dimensões da prevenção e da precaução, aqui ainda ruminamos o direito dos hostis, as tais leis “pesadas” e cruéis. (Qualquer criança de cinco anos sabe que a crueldade não educa; qualquer criança sabe que deve prevalecer o princípio da reciprocidade, porque, se bem tratada, será uma criança feliz).

De todo modo, para impor o terror como governo, a força como meio de convencimento, o Estado separa o direito do cidadão, do “direito dos hostis”:

A passagem do Estado autocrático para o Estado democrático aconteceu, tecnicamente falando, mediante o processo de constitucionalização do direito de resistência, que transformou o direito puramente natural de resistência à opressão, cuja legitimação é sempre póstuma, dependendo do resultado, num direito positivo à oposição, cuja legitimidade é preconstituída e portanto lícita, qualquer que seja o resultado. Ao longo do mesmo caminho e no mesmo período histórico em que o direito público externo transformou pouco a pouco o rebelde (rebellis) em inimigo (hostis), através do direito de guerra (ius belli), o direito público interno foi transformando o rebellis em civis (cidadão), através das regras do jogo democrático que permitem às diversas partes a contenda pacífica entre si, para alcançar metas que fora dessas regras não seria possível alcançar a não ser através da violência (Bobbio, 1994, p. 55 – grifos nossos).

 

O que se quer, nessa vazão de contramão civilizatória, é retomar um passado de opressão, de negação das liberdades (como o USA patriot act[1]), revertendo-se a construção moderna da cidadania, reconvertendo-se o civis em rebellis. O cidadão perdeu todo o espaço jurídico ganho na construção da Modernidade Tardia e agora a luta pelo direito passa a ser, novamente, ato de rebelião, insurreição. Estamos condenando quantos anos, séculos de história nessa contramão da luta pelo direito, ao afirmar o direito dos hostis ou dos inimigos?

Nesta contramão da luta pelo direito, outramedida proposta, talveza maismirabolante, traza ação golpista contra o Estado Democrático – em defesa do suposto Estado de Direito, aniquila-se a democracia. Quando as autoridades fecham os olhos para a ação de grupos de exterminio, dirigidos por policiais, nada maisfaz do que compactuarcoma negaçãoda Justiça– esta que sópode prosperar nademocracia.

Na literatura, romances como 1984, Revolução dos Bichos ou o lendário Nós, do escritor russo Yevgeny Zamyatin (2004), sempre nos alertaram sobre os perigos da distopia que ronda a sociedade capitalista sob o Estado Moderno, sobretudo quando é atuante a luta pela conservação da Razão de Estado, do capital ou dos privilégios de classee do status quo.

Com o romancista português José Saramago, ganhador do Prêmio Nobel de Literatura, percebemos uma ilação direta entre realidade e ficção – no fundo, a realidade jurídica copiando a ficção política. Saramagodiagnosticoua insurgênciado Estado de Emergência Sanitária, no romance Ensaiosobre a Cegueira, comoresposta a um tipo de gripe suína:

Um motorista parado no sinal subitamente se descobre cego [...] Nessa noite o cego sonhou que estava cego [...] É o primeiro caso de uma treva branca que logo se espalha incontrolavelmente [...] Enquanto não se apurassem as causas, ou, para empregar uma linguagem adequada, a etiologia do mal-branco [...] todas as pessoas que cegaram, e também as que com elas tivessem estado em contato físico ou em proximidade direta, seriam recolhidas e isoladas, de modo a evitarem-se ulteriores contágios, os quais, a verificarem-se, se multiplicariam mais ou menos segundo o que matematicamente é costume denominar-se progressão por quociente [...] Quod erat demonstrandum, concluiu o ministro [...] do que se tratava era de por de quarentena todas aquelas pessoas, segundo a antiga prática, herdada dos tempos da cólera e da febre-amarela [...] Queria dizer que tanto poderão ser quarenta dias como quarenta semanas, ou quarenta meses, ou quarenta anos [...] De que possibilidades imediatas dispomos, quis saber o ministro, temos uma manicômio vazio, devoluto, à espera de que se lhe dê destino, umas instalações militares que deixaram de ser utilizadas em conseqüência de recente reestruturação do exército, uma feira industrial em fase adiantada de acabamento, e há ainda, não conseguiram explicar-me porquê, um hipermercado em processo de falência [...] O quartel é o que oferece melhores condições de segurança, naturalmente tem porém um inconveniente, ser demasiado grande, tornara difícil e dispendiosa a vigilância dos internados [...] Havia soldados de guarda. O portão foi aberto à justa para eles passarem, e logo fechado [...] Por toda a parte se via lixo... (Saramago, 2008, pp. 10-24-45-46 – grifos nossos).

 

Um Estado de EmergênciaSanitáriacom guardas prontos para matar?

Hoje, no estágio atual da insegurança pública, seria acionado muito mais apropriadamente como Estado de EmergênciaPolicial. Por isso, o mais correto seria falar do emprego dos instrumentos de controle e de repressão social em que a segurança é um lema, o startque deve acionar a aplicação do máximo de poder coercitivo reunido para salvaguardar as instituições que oficializam o próprio poder repressivo do Estado. É preciso lembrar que neste Estado de Emergência Policial age o amplo arco do antidireito (Lyra Filho, 2002), o direito que nega a liberdade, e este fenômenorevela o alcance práticoe ideológico do Estado de não-Direito (Canotilho, 1999): o Estado de Direito movido por leis injustas (Vieira, 1984).

A força desperta pela violência física não pode nos aproximar do verdadeiro Estado de Direito, uma vez que a lei que se baseia na força física não é uma lei eficaz, não se efetiva por si, pela força do convencimento, e sim pelo medo, pela coerção que é sinónimo de repressão. Como dizia o sociólogo paulista Florestan Fernandes, debe vigorar “a força das ideias, contra a ideia da força”. Por este ângulo da ação policial, vê-se que o Estado de Direito é refém da violência que deveria combater, e hoje atua mais como Estado de Polícia que quer fazer justiça a qualquer custo. A violência institucionalizada nos revela que a força ocupou o lugar da inteligencia social, a segurança se converteu na razão de ser do Estado que se confirma por meio da coerção moral e física.

Como se sabe, esta é uma das muitas manifestações do direito nazi-fascista, tal qual nos revela o Mito da raça ariana. O grande escritor alemão Thomas Mann destacou ensinou que só o amor, o destemor, os sentimentos, os pressentimentos dos povos humilhados pelo nazismo seriam capazes de derrotar o exércitoda razão:

Ouvintes alemães [...] adverti-los é o único serviço que um alemão como eu pode prestar a vocês hoje [...] Adverti-los quer dizer: confirmar seus próprios maus pressentimentos; ou seja, assegurar-lhes que esses pressentimentos funestos são verdadeiros, justificados [...] Os seres humanos ruins, no sentido último e mais profundo da palavra [...] sabem bem que vocês estão pouco à vontade [...] que tem horror desse papel impossível e inexeqüível de mercadores de escravos que lhes atribuem [...] lend-leasse bill, a lei de plenos poderes [...] foi aprovada agora no Senado dos Estados Unidos [...] todo o espírito vingativo do mundo será desencadeado contra vocês [...] A máquina de guerra alemã, um monstro técnico, trabalha com precisão e velocidade avassaladoras [...] em um triunfo mecânico, passa por cima da fé, da confiança na justiça, da liberdade (Mann, 2009, pp. 26, 33-37 – grifos nossos).

 

Portanto, vê-se claramente que sob o manto da legalidade agem forças que podem muito bem atingir toda a sociedade, promovendo injustiças, afirmando-se um direito sectário, repressivo, regressivo. O monstro técnico que passa por cima da fé, da confiança na justiça e da liberdade mudou de vestes, mas não se retraiu – aliás, sofisticou-se em novas formas e fórmulas jurídicas vazias de legitimidade, mas cheias da força que movem o principio da exceçãono interior do Estado Moderno (Agamben, 2004).

Todo exércitoapregoa agir em nome da lei, da ordem, da paz, da segurança, ou seja, da razão. Alguns são mais explícitos, dizendo-se defendores da Razão de Estado. Muitos, ou a quase totalidade, pelo menos no mundo moderno, confundem propositalmenteos intereses sociais com esta Razão de Estado. Em seu cinismo político-institucional dizem que o Estado deve defender a sociedade e se a sociedade está sob ataque, logo, correm em defesa do Estado.

Com a guerra civil nacional, com enfoque especial no Estado de São Paulo, até porque se revelou como o epicentro da questão, não se dá o contrário. Isto é, em nome da defesa social, o Estado se socorre de um tipo de Estado de SítioSocial, aprisionando as populaçõesde trabalhadores e de cidadãos que nada tem que ver como crimeorganizado, a nãoser o fato de seremconfinadas pela misériaa viver na periferia, nas favelas.

 

Bibliografia

AGAMBEN, Giorgio. Estado de Exceção. São Paulo : Boitempo, 2004.

BOBBIO, N. As ideologias e o poder em crise: pluralismo, democracia, socialismo, comunismo, terceira via e terceira força. 3. ed. Brasília-DF: Universidade de Brasília, 1994.

CANOTILHO, J. J. G. Estado de Direito. Lisboa: Gradiva, 1999.

LYRA FILHO, R. O que é direito. 17. ed. São Paulo: Brasiliense, 2002.

MANN, Thomas. Ouvintes Alemães: discursos contra Hitler (1940-1945). Rio de Janeiro : Jorge Zahar, 2009.

SARAMAGO, José. Ensaio sobre a cegueira. São Paulo : Companhia das Letras, 2008.

SILVA, José. Afonso da. Curso de Direito Constitucional Positivo. 22. ed. São Paulo: Malheiros, 2003.

VIEIRA, E. O que é desobediência civil. 2. ed. São Paulo: Brasiliense, 1984.

ZAMYATIN, Yevgeny. Nós. São Paulo: Alfa-Omega, 2004.

WILDE, Oscar. A alma do homem sob o socialismo. Porto Alegre : L&PM, 2003.

 

 

Vinício Carrilho Martinez
Professor Adjunto II da Universidade Federal de Rondônia
Departamento de Ciências Jurídicas
Doutor pela Universidade de São Paulo

 



[1]Editado pelo Congresso Americano, sob o governo Bush, em 26/10/2001, tem como principais medidas extrajudiciais a invasão de lares, a espionagem, os interrogatórios e a tortura de suspeitos de terrorismo, mas sem o amplo direito de defesa, como o exercício do contraditório. É a antesala do lei marcial, o momento em que a autoridade militar arrola para si o controle da administração do Poder Judiciário e ordena a supressão de direitos civis, como o direito de se reunir, de manifestar sua opinião e de não ser preso sem fundamento judicial. Por isso, também se diz que o Estado Penal é uma forma atualizada da exibição do Estado de Sítio.

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