Quarta-feira, 8 de maio de 2024 | Porto Velho (RO)

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Gente de Opinião

Vinício Carrilho

Direito e Desobediência Civil


            A Desobediência Civil, ao contrário do que pode sugerir o senso comum, é uma ação política de fortes intenções de justiça. De forma alguma reflete uma ação meramente negativa na aceitação do direito; trata-se, mais do que isso, em profunda análise conceitual e prática de determinadas regras sociais e jurídicas, e disso resulta o julgamento moral, político, jurídico, de que se trata de regras de direito injustas, propositadamente formuladas para instigar a desigualdade e promover a manutenção do poder e do status quo. Nas fileiras dos defensores da Desobediência Civil encontramos nomes e práticas sociais e políticas tão distintas quanto às de Henry D. Thoreau (em defesa do abolicionismo de John Brow, nos EUA) e Ghandi, maior detrator das injustiças perpetradas pelo Império Inglês na Índia.

            De modo geral, a Desobediência Civil se opõe às leis injustas. Segundo esta orientação, o Direito não pode contrariar o bom-senso, isto é, constitui parte da missão/obrigação dos agentes interessados na transformação do Direito, do Estado e da sociedade, obstruírem toda formulação/aplicação de leis injustas. Pois, se o núcleo do Direito é também seu guia (como núcleo de verdade ou reserva de bondade), então, o Direito não pode fugir a esta constituição em prol da justiça:

Por exemplo: a lei é injusta quando discrimina um grupo minoritário, embora possa até ter sido votada pela maioria [...] A lei é injusta quando se impõe a pessoas sem direito a voto [...] A lei é injusta quando uma minoria a torna obrigatória para a maioria, que não foi consultada, nem lhe deu pelo voto autorização para existir [...] A lei é injusta quando votada por falsa maioria, que só aparenta representar a maior parte dos indivíduos, devido a jogadas feitas durante as eleições. A lei é injusta quando submete uma infinidade de pessoas a viverem miseravelmente. A lei é injusta quando permite que um país pressione de qualquer modo ou ataque militarmente, ou apenas ocupe outro país, outra região, sem consentimento de seus próprios habitantes (Vieira, 1984, p. 21-22).

 

Então, o Direito pode ser uma luta, uma espécie de luta política para que não mais ocorram distorções como as chamadas leis injustas ou o próprio antidireito, luta pelo direito. A versão humanista da Desobediência Civil, entretanto, tem longa data e pode ser percebida no Oriente antigo, na filosofia do não-agir do Budismo e do Taoísmo. Entretanto, inicialmente, é interessante diagnosticar que parte da filosofia chinesa tramou a contemplação do poder, ensinando a prudência e a cautela, como forma de resistência silenciosa e isso muito antes das raízes de nossa civilização ocidental terem sido pensadas.

A arte da guerra

O livro clássico da política antiga, não só da cultura do Oriente, continua sendo A arte da Guerra, de Sun Tzu. Porém, ele próprio e sua concepção decorrem de uma longa tradição intelectual e filosófica, mas também logística, estratégica e instrumental chinesa. A Escola Taoísta, juntamente com o confucionismo, foi das mais importantes na definição da “cultura política” chinesa. Um de seus predecessores e mestres mais notáveis, Laozi (Lao Dan), contemporâneo de Confúcio (551-479 a.C.), defendia a noção de que há um ritmo natural no universo. A expressão Tao ou Caminho traz um sentido cíclico da própria natureza em transformação[1]. A Escola Confuciana, após Confúcio, teve como guia Mencio (Meng Ke e Meng Ziyu). Seguidor de Confúcio, Mencio defendia uma política benévola do governo, da piedade filial e do respeito aos mais velhos. A tirania só trazia prejuízos ao Estado (e ao povo):

Atuando dessa forma, ninguém deixaria a terra natal e o país se tornaria mais poderoso. Aquele que conquistasse a confiança do povo tornar-se-ia rei; se um rei perdesse a confiança do povo, seria um tirano, podendo ser castigado e deposto para não causar danos ao Estado. Somente uma política conciliadora e totalmente contrária ao uso da violência era capaz de unificar o país (Handa, 2004, p. 19).

 

Xunzi, outro seguidor de Confúcio, foi mais agressivo e radical, um tipo de antecessor de Hobbes, pois via uma formação malsã natural à humanidade, além de criticar a propriedade privada (um caso realmente curioso): “Defensor da ordem, achava que somente o respeito às leis seria suficiente para a tranquilidade no ato de governar bem o Estado. Considerava que o homem possuía uma natureza má, razão pela qual visava unicamente possuir bens materiais” (Handa, 2004, p. 19). Em conexão entre ambos, há a lição de que se há sociabilidade, não há porque haver sedição (parece ser um raciocínio bem simples e objetivo). A razão política do Estado deveria estar em servir ao povo e não o contrário. A dominação dar-se-ia pela persuasão do povo. A Escola Mozi ou Modi (468 – 376 a.C.) teve uma interpretação particular do governo, da política ou da guerra, mas é destacada aqui porque, de um certo modo, desembocou na tradição de Sun Tzu.

Moziou Modi tinha por princípio defender que as pessoas capazes e virtuosas ocupassem a posição de liderança do governo e do Estado. Também pressupunha a disciplina e o uso da lei como meio de força (do que derivou a Escola do Legalismo). A Escola Legalista, dirigida por Hanfei, discípulo de Xunzi, previa o uso da lei como coerção, a fim de impor a ordem e garantir a soberania, a dominação: “Todas as manobras políticas poderiam ser utilizadas pelo rei, desde que pudessem controlar os ânimos do povo e subalternos” (Handa, 2004, p. 20). Desse modo, opunha prudência e coerção — não havia muita sutileza —, e poderia ser considerado um Maquiavel da China. A Escola dos Estrategistas teve suas bases ditadas por Sun Tzu e Sun Bin, como veremos adiante, detalhadamente. A Escola de Shang Yang (ou Kung-sun Yang), no século III a.C., demonstrou ser uma vertente política da Escola Legalista. No conhecido período das guerras, a unificação chinesa era um pensamento dominante, e Shang Yang propunha um sistema de governo ideal. Porém, o pensamento do mestre Shang não foi aproveitado no reino Wei, o que o levou a mudar-se para o reino de Qin. Ali, então, propôs utilizar-se do programa da Escola Legalista para fortalecer o Estado: “Todos eram vistos com igualdade diante da obediência das leis. Ninguém se encontrava em posição superior a elas, inclusive os governantes” (Handa, 2004, p. 21). Com este sentido e propósito firmemente calcado na ideia da prudência, os príncipes deveriam submeter-se à obediência das leis do reino.  O Taoísmo formulou uma trinca interessante acerca disto que denominados de Teoria Social do Estado e do Direito.

Taoísmo: vencer sem agir; vencer sem armas

            O Taoísmo seria uma parte explicativa do processo civilizatório proposto por Weber (1979) para que víssemos a racionalização operante na religião, como forma de “desencantamento do mundo”. No exemplo do Taoísmo aqui proposto, a não-ação é que é programada, a estratégia adotada da não-ação é que é racionalizada:

Como podemos ver com Lao-tsé, a atitude típica do místico é de humildade específica, uma minimização da ação, uma espécie de existência religiosa incógnita no mundo. Ele se coloca à prova contra o mundo, contra sua ação no mundo. O ascetismo deste mundo, pelo contrário, prova-se através da ação. Para o asceta deste mundo, a conduta do místico é um gozo indolente do eu; para o místico, a conduta do asceta (voltado para o mundo) é uma participação nos processos do mundo, combinada com uma hipocrisia complacente (Weber, 1979, pp. 374-375).

 

No ensinamento 76, a força está no que é frágil; a beleza está no que se esconde; a grandeza está no pequeno; o futuro está no virtual; a ação está na não-ação:

Recém nascido, o homem é débil e frágil.

Morto, é rígido e duro.

Ao nascer, plantas e árvores são tenras e flexíveis.

Mortas, são rígidas e duras.

Rigidez e solidez são companheiras da morte.

Debilidade e flexibilidade são companheiras da vida.

Por isso, um exército que se faz forte não vencerá,

Uma árvore que se torna grande será abatida.

O que é forte e grande está em posição inferior.

O que é débil e frágil, em posição superior

(Lao Tsé, 1995 – grifos nossos).

 

No ensinamento 69, a não-ação guarda a força em si mesma, portanto, não sendo mera contemplação, mas não-ação premeditada que traga determinados resultados: é uma não-ação propositalmente dirigida. Por vezes, também o místico tem na não-ação um meio de ação indireta — agindo sobre os efeitos ou resultados.

Na arte militar há um provérbio:

“Evito provocar, aguardo o desafio”.

“Não ouso avançar sequer uma polegada, antes recuo um passo”.

Isso se chama avançar sem mover-se,

Rechaçar sem erguer o braço,

Capturar o inimigo sem atacar,

Vencer sem armas.

Não há maior desgraça que fazer um inimigo.

É quase perder nosso tesouro.

Por isso, quando dois adversários se confrontam,

Aquele que é compassivo certamente obterá a vitória

(Lao Tsé, 1995 – grifos nossos).

 

Isso se chama avançar sem mover-se, não poderia haver melhor definição para a Desobediência Civil. E são exemplos clássicos o Judô e o Aikido, quando o agente passivo espera empregar a força do oponente contra ele mesmo — invertendo-se o caminho da força. Mas também o budismo com sua mística contemplativa (talvez mais acentuada do que em referência ao taoísmo, um caminho de verdade pela ação) designa uma consciência que aflora, de uma racionalidade nascente.

As quatro verdades do budismo representam muito bem os termos comuns dessa consciência que aflora: 1) a realidade, a vida, o mundo sem dor; 2) a origem da dor é a “sede da vida” ou desejo; 3) a liberação é a supressão do desejo (nirvana); 4) a extinção do desejo se obtém seguindo a Lei (karma). Aqui se vê bem como a consciência que aflora descobre a alteridade do mundo, da vida e da ação como alteridade penosa e aspira portanto à inação e à fuga do mundo. A verdade, além da palavra Daquele que sabe, é também Lei e Justiça (no vedismo Rta significa Verdade e Direito, igual a Pravda, mas agora na língua russa) (Cerroni, 1992, p. 18 – tradução livre).

 

A chave desta racionalidade nascente pode muito bem ser essa ideia ou fórmula aparentemente simples: a extinção do desejo (agora como “instinto”)se obtém seguindo a Lei — o karma, uma razão comum e, portanto, superior a todos, é o ponto de partida do desencantamento e das rejeições religiosas: quando se descobre a alteridade do mundo. Pode-se contemplar com consciência do que se faz (ou se deve fazer), levando-se à consciência, níveis até mesmo superiores, como no caso da compreensão jurídica e definição de Justiça. Como se viu, a não-ação tem uma profunda racionalidade: o mesmo sentido que seria utilizado por Gandhi ao propor a desobediência civil. Nos casos extremados, no entanto: “Para o místico, pelo contrário, o que importa para a sua salvação é apenas a compreensão do significado último e completamente irracional, através da experiência mística” (Weber, 1979, p. 375). Este processo de desencantamento também foi sentido na política, e como bem o descreveu Max Weber. Mas qual a raiz histórica desse processo na modernidade política Ocidental?

A moderna sociologia política

Como se sabe, no caso das sociedades capitalistas, a raiz é a ética protestante. O puritanismo para Weber seria a máxima racionalização do trabalho e da fuga do universalismo:

Como uma religião de virtuosos, o puritanismo renunciou ao universalismo do amor, e rotinizou racionalmente todo o trabalho neste mundo, como sendo um serviço à vontade de Deus e uma comprovação do estado de graça. A vontade de Deus, em seu sentido último, era incompreensível, e não obstante era a única vontade positiva que podia ser conhecida [...] Esse estado de coisas parecia ordenado por Deus, e como material e dado para o cumprimento do dever de cada qual. Em última análise, isso significava em princípio a renúncia à salvação como meta alcançável pelo home, ou seja, por todos. Significava a renúncia à salvação em favor da graça sem base e apenas particularizada, sempre (Weber, 1979, p. 381).

 

Esse processo de racionalização do comportamento humano, seria como verdadeiro mecanismo de controle social, obviamente, e encontraria na figura do Estado, a sua forma mais avançada. O mais interessante é que esse mesmo espírito puritano (tanto lá, quanto cá), impõe-se por meio de mandamentos e dogmas, ou seja, age como arma de controle social, impondo-se pela violência:

O puritanismo [...] Interpreta a vontade de Deus como significando que esse mandamentos devem ser impostos ao mundo das criaturas pelos meios deste mundo, ou seja, a violência — pois o mundo está sujeito à violência e ao barbarismo ético [...] Por outro lado, há a solução da atitude antipolítica radical do místico, sua busca de redenção com sua benevolência e fraternidade acósmica. Com seu “não resistir ao mal[2]” e com sua máxima “voltar a outra face”, o misticismo é necessariamente carente de dignidade aos olhos da ética mundana do heroísmo (Weber, 1979, p. 385).

 

Com mais ou menos restrições, estaria aí a base de um Estado Racional (a mesma que flutuante no tempo-espaço) e acabaria por desembocar na centralização do Estado-Nação ocidental, tão caro e presente nas sociedades capitalistas avançadas e que Weber visualizou como ninguém. Portanto, pode-se dizer que, tendo a tensão entre religião (redentora) e política (controle e dominação) por eixo, desde sempre a política é parte integrante, como uma das esferas essenciais da racionalização que conduziu todo o processo civilizatório. Assim como a economia, a política é essencial ao homem:

O aparato burocrático estatal, e o homo politicus racional integrado no Estado, administram as questões, inclusive a punição do mal, quando realizam transações no sentido mais ideal, segundo as regras racionais da ordem estatal. Nisso, o homem político age exatamente como o homem econômico, de uma forma objetiva, “sem preocupação da pessoa”, sine ira et Studio, sem ódio, e portanto sem amor [...] Em última análise, apesar de todas as “políticas de bem-estar social”, todo o curso das funções políticas internas do Estado, da justiça e administração, é regulado repetidamente e inevitavelmente pelo pragmatismo das “razões de Estado”. O fim absoluto do Estado é salvaguardar (ou modificar) a distribuição externa e interna de poder; em última análise, essa finalidade deve parecer insensata a qualquer religião universalista de salvação (Weber, 1979, pp. 382-383).

 

Desse modo, também, podemos entender melhor, porque “a guerra é uma continuação da política”, pois a guerra traz o objetivo (os “valores quanto aos fins”) de que tanto, os homens necessitam. Verificamos a presença marcante do mito do herói:

A morte no campo de batalha difere da morte comum a todos. Como se trata de um destino a que todos estão sujeitos, ninguém pode jamais dizer por que ela chega precisamente a ele, e por que chega precisamente naquele momento [...] A morte no campo de batalha difere dessa morte simplesmente inevitável pelo fato de que na guerra, e somente na guerra, o indivíduo pode acreditar que sabe estar morrendo “por” alguma coisa[3][...] A fraternidade de um grupo de homens unidos na guerra deve parecer pouco valiosa para essas religiões fraternais, sendo vista apenas como um reflexo da brutalidade requintada da luta (Weber, 1979, pp. 384-385).

 

Isto também nos ajudaria a entender em que se assenta a “guerra santa”, o “martírio da morte pela pátria”, “o fundamentalismo do homem bomba”, é esse mito do herói, tão presente no passado, quanto marcante (metamorfoseado) no presente. Este seria um exemplo da atualidade ou atualização (metamorfose) do mito. Na modernidade tardia, não poderia ser diferente, a guerra, a revolução, a insurreição foi (vem sendo) uma poderosa força motriz da Razão de Estado que se camufla nos interesses e na “segurança nacional”. Esse apelo à doação em razão da segurança nacional (principalmente se por meio da invasão e da conquista do território) deve estar presente na “consciência do crente”. Este “crente” se vê, portanto, como soldado de Deus (a serviço de sua pátria) e não como mercenário: “Portanto, as aristocracias salvadoras rejeitam a compulsão de participarem das guerras das autoridades políticas que não se classificam claramente como guerras santas, correspondentes à vontade de Deus, ou seja, guerras não-afirmadas pela própria consciência do crente” (Weber, 1979, p. 386 – grifos nossos).

Aí estaria uma vez mais a longa raiz do Estado Racional, e mesmo que o próprio Weber lhe fizesse advertências: “Em virtude de sua despersonalização, o Estado burocrático, sob aspectos importantes, é menos acessível à moralização substantiva do que as ordens patriarcais do passado” (Weber, 1979, p. 382). Desse modo, mesmo sob o chamamento da racionalidade embutida em todo o processo histórico-cultural envolvido na elaboração do chamado Estado Democrático de Direito, desde essa despersonalização da política, pela ação natural da burocracia, é na modernidade tardia que mais temos dificuldades de falar em valores quanto a meios. Com o Estado Racional chegamos ao sentido helênico da lógica política. No plano dessa estratégia política que se iniciou com os chineses, finalmente, chegamos à política do não-obedecer prevista na Desobediência Civil.

O antiescravismo de Thoreau

Henry David Thoreau (1817-1862) foi um libertário americano que influenciou sucessivas gerações. Por seus princípios certificou-se a Desobediência Civil como ação consciente em contrário à tirania e à supressão da liberdade. Uma das ações afrontava o chamado Estado de Direito, quando este se erigisse em base a leis injustas. Diante deste fato jurídico, havia clara disposição para o frontal descumprimento do ordenamento jurídico. De maneira geral, portanto, em face da injustiça social, há um aceno político respaldado pela Desobediência Civil. A modalidade de ação política defendida pregava atos de desagravo individual que levassem ao descumprimento social de uma ordem imoral (ou simples descumprimento da lei). É o desagravo individual que leva ao descumprimento social, constituindo-se em campo fértil para a insurgência, onde se caminha da submissão legal e legítima para a insubmissão individual e personalíssima:

Terão os cidadãos, por um momento que seja, mesmo em grau ínfimo, de submeter a sua consciência ao legislador? Eu penso que devemos ser primeiro homens e só depois súbditos [...] A maior parte dos homens servem o Estado não como homens mas fazendo dos seus corpos máquinas [...] são posse comitatus[4][...] Na maior parte dos casos, não fazem uso da inteligência ou do senso moral (Thoreau, 1987, pp. 22-3).

 

O que também deveria resultar no respeito pelos direitos humanos, naquilo que está identificado, sobretudo, com a preservação do indivíduo frente ao poder de Estado ou das minorias frente à maioria. Porque se os direitos humanos são universais e naturais não podem admitir qualquer traço de injustiça. E então é fácil ver que se trata de uma tarefa que cabe a cada um de nós, como tarefa de enfrentar a usurpação do poder legal e legitimamente constituído. Pois, em sentido contrário, quando a missão pública deixa de ser portadora de virtualidade (uma potência, uma semente que pode germinar) têm-se a lógica da autoridade que age em razão do homem livre. Pois, associou-se deficiência de legitimidade da própria lei a um sentido de total injustiça, com os abusivos atos de Estado daí decorrentes. Isto é, do passado para o presente, esse sentimento soa invulgar na vida de quem nutre sensibilidade, porque, cada vez mais, para utilizar uma imagem de Thoreau, é como transpor a distância que separa o mar das montanhas.

Da legitimação à insubmissão

Mas mesmo aí no núcleo do desamparo do cidadão face à instituição da lei injusta, o próprio Thoreau adverte para que não se confunda lei e justiça, depositando a óbvia preferência pela segunda: “Não é desejável que se cultive o respeito pela lei, tanto quanto o respeito pela justiça” (1987, p. 22). Assim, o próprio Estado formulador e aplicador da lei, mas também o responsável pela preservação e distribuição da justiça, caminha de acordo com as garantias e os quinhões de justiça que oferece ao cidadão. Na síntese histórica: “A evolução duma monarquia absoluta para uma limitada e desta para uma democracia é o progresso do respeito pelos indivíduos” (Thoreau, 1987, p. 60). Bastaria, para o caso, não permitir que a própria consciência fosse ela mesma desvirtuada, desvirtualizada, afinal: “A semente possui tanta força e vitalidade que não precisa do nosso consentimento para germinar” (Thoreau, 1987, p. 41). Em sentido contrário, quando a missão deixa de ser portadora de virtualidade (como um germe) têm-se a lógica da submissão, e que é em essência uma sub-missão, uma missão incompleta, submersa, suposta, porque:

É mais fácil obedecer, acatar, aceitar, respeitar. E compensa mais. A liberdade vai doravante requerer mais disciplina e mais reflexão. Num mundo de máquinas obedientes, a recusa e a desobediência vão ser mais difíceis. A aprendizagem da liberdade não se compadece com imitações (Thoreau, 1987, p.28).

 

Na brilhante defesa de John Brow, a tensão entre os direitos do homem, do cidadão, frente aos desígnios imperativos da lei injusta, com ou sem a explícita renúncia do indivíduo frente ao compromisso com a humanidade, está ainda mais clara:

Nenhum homem sabe ao certo quando é justificado, não há espíritos brilhantes que sobre isso possam lançar luz. O criminoso sabe que o castigo é justo; mas, quando o governo se atreve a arrebatar a vida a um homem sem o consentimento da sua consciência, está dado o primeiro passo para a sua própria dissolução. Não será possível que o indivíduo tenha razão e que o governo esteja errado? Aplicam-se leis pelo simples fato de terem sido feitas? Ou porque um certo número de pessoas as declararam boas, quando não o são de fato? [...] Terão os juizes de interpretar a letra em vez do espírito? (Thoreau, 1987, p.68).

 

A barreira que se interpôs ao longo do tempo, associando-se deficiência de legitimidade da própria lei a um sentido de total injustiça, com os abusivos atos de Estado daí decorrentes, trouxe o enorme desafio de se superar um sentimento de quase insuperabilidade da própria noção de intolerância. Do passado para o presente, esse sentimento soa invulgar na vida de quem nutre sensibilidade, pois, cada vez mais:

As nossas sociedades densas ficam de repente cheias de espaços vazios, distâncias incomensuráveis. Compreendemos porque foi que nunca ultrapassáramos a barreira dos cumprimentos e da delicadeza superficial; tomamos consciência das longas distâncias existentes entre nós e eles, comparáveis à que se estende entre o nômada tártaro e uma cidade chinesa. O homem que pensa é um eremita no meio dum mercado barulhento. Entre ele e nós estendem-se de súbito oceanos intransponíveis, estepes nuas a perder de vista. As diferenças de constituição, de inteligência, de crença, são as barreiras verdadeiramente intransponíveis que separam mais os indivíduos e os estados do que os mares e as montanhas (Thoreau, 1987, p.45).

 

Hoje não mais se clama pela liberdade, como fez Thoreau, por ele e pelos seus, porque isto teria o mesmo som e efeito do “grito do afogado”. Estes são, no fundo, meros demonstrativos do que é se sentir sitiado, isolado, alienado, fragmentado. No entanto, a esperança de todo sitiado, como vimos, é justamente trocar a cela pela sala, a heteronomia (tutela) pela autonomia (capacidade real de “dar normas a si mesmo”, “sentindo-se responsável pelo mundo”). Está claro o direito à revolução. Um pouco (ou muito) mais radicais do que Os Federalistas, no entanto, eram os abolicionistas do período e no caso específico de Thoreau. Trata-se de um projeto liberal radical, especialmente quando se põe a lutar contra as ingerências abusivas do Estado. Contudo, Thoreau também será um severo crítico dessa liberdade passiva que acompanha as próprias definições legais (a liberdade negativa, restritiva). Observe-se que as máquinas obedientes já são as máquinas e as indústrias capitalistas em pleno vigor. Mas, há personagens históricos, reais, como John Brow, que desafiam o “direito posto” e mantido pelo status quo,em nome de um “direito revigorado” pelo sangue dos insurretos, em claro desafio à Razão de Estado que mantinha a ordem escravocrata[5]. Assim, direito e política se uniram para desunir uma ordem arbitrária, de espoliação do humano. Contemporâneo de Thoreau, Tocqueville também foi escravista, mas segundo suas expressões, por razões racionais.

A racionalidade exige novas leis

Nesta ventura da defesa da liberdade como direito inalienável está Alexis de Tocqueville e a análise docusto de um princípio: a Liberdade. Para Tocqueville (1805-1859), a abolição se efetivou porque havia uma oportunidade, tal como em muitas outras lutas sociais, na luta pela liberdade e pelo direito – a oportunidade se converteria em realidade. Afinal, “nada do que é humano é eterno”, nem os modelos políticos, nem o direito posto ou o status de que cuida. É preciso defender o novo direito sem preconceitos, mas não sem paixão. Tocqueville escreve entre eras, no fim da Aristocracia e sem vislumbrar a democracia, como um vivente da Modernidade Tardia. Segundo suas próprias palavras, colocava-se equilibradamente entre o passado e o futuro. Neste seu esforço, recolheu aparências, analisou diversos ângulos, não desconsiderou nenhuma força como secundária, pois não há esforço humano desprezível.

Como historiador, tratou das questões como elas são de fato, com realismo; assim, não só a escravidão é tida como injusta e iníqua, como é desnecessária. Não há razão que a suporte: Ninguém aprende a ser livre, sendo escravo. Sua leitura particular da Modernidade Tardia acentua o que chama de “mal inevitável” e quer dizer que, em meio às transformações sociais, uma era não se sobrepõe à outra por ser melhor, mas por haver forças que a impulsionam, por ser inevitável. Tocqueville analisa as épocas buscando seu fio condutor. A democracia e a liberdade já eram um marco regulatório no século XIX. No furacão social de 1848 vislumbrou que a igualdade inflama a luta de classes. Neste sentido, toda conciliação exigirá renúncia. O impasse, analisa, ameaça a própria conciliação (concordaria que hoje, com o impulso da Primavera Árabe, vivemos uma semelhante crise de civilização?).

O desafio lançado por Tocqueville é duplo: convencer os recalcitrantes da necessária abolição (especialmente nas colônias francesas); transformar os escravos em homens livres. Esta exigência burguesa é percebida quando diz que a abolição deve mais ao “senhor esclarecido”, do que às lutas dos próprios escravos. O projeto burguês deveria manter os níveis da produção, evitando a barbárie nas colônias. Era preciso preservar o “progresso civilizatório” (iluminista) iniciado na colonização. O escravo deveria ser transformado em trabalhador assalariado e não, por exemplo, em pequeno proprietário. A maior dificuldade está em romper o preconceito do status quo do colonizador. O próprio povo francês de espírito caseiro não seria inclinado à colonização. Além do mais, o poder centralizador levava o governo francês a julgar as sociedades nas colônias sem as conhecer, “mantendo ali os direitos suspensos”. A educação política do colono não o inclinava ao auto-governo e ao exercício pleno de novos direitos. Para a França, fundar colônias sempre foi um peso e nem de longe deveria se lançar a projetos de Estado Penal: “Fundar uma colônia penal é ainda mais perigoso...” (Tocqueville, 1994, p. 28 – grifos nossos). Por isso, seu empenho pela abolição partia de uma visão histórica e realista. Do mesmo modo, a liberdade só se edificaria se fosse livre: “Querer dar a um escravo as opiniões, os hábitos e os modos de um homem livre é condená-lo a permanecer como escravo sempre” (Tocqueville, 1994, p. 31). Como dar moral a quem não se sente digno nem de si mesmo? A abolição, no entanto, é uma necessidade histórica:

A escravidão é uma destas instituições que duram milhares de anos sem ninguém se dar ao trabalho de se perguntar por que ela existe. Mas é quase impossível mantê-la depois que esta pergunta é feita (Tocqueville, 1994, p. 34).

 

O julgamento histórico das forças sociais envolvidas é inquestionável e, uma vez posto em movimento, o movimento social adquire uma força social a não ser detida: “A época que se segue à abolição da escravidão é, sempre, um período penoso que exige empenho social. Este é um mal inevitável” (Tocqueville, 1994, p. 34). É um processo revolucionário. O medo à liberdade, entretanto, poderia vir da força empregada na abolição, se não falasse por bem a razão. Neste caso, o medo maior é de que não se constituísse a autoridade (do magistrado, por exemplo) quando da queda do senhor escravagista; seria a barbárie. Portanto, a abolição deveria trazer o Estado de Direito para as colônias. Portanto, um dos principais alertas de Tocqueville é no sentido de que a abolição resultasse de ações políticas dirigidas e não pela luta social – a força revolucionária, neste caso, seria mortífera para ambos os lados, além de paralisar totalmente a produção nas colônias. Ainda é contra liberdade gradual porque criaria um governo de exceção: “Os libertos, neste caso, continuariam a formar uma classe à parte para quem seria necessário criar uma legislação especial, contar com magistrados particulares e um governo de exceção” (Tocqueville, 1994, p. 39 – grifos nossos).

A escravidão é indigna, inclusive, para os homens livres, pois ao verem os outros trabalhar não desejam fazer o mesmo. Para a ideologia aristocrática, trabalhar é desonroso: o passado do trabalho desabona o futuro. Mas, o pior é que a libertação parcial gera uma exceção da liberdade. O homem não é um meio: “O homem jamais teve o direito de possuir outro homem e esta posse sempre foi e continua sendo ilegítima” (Tocqueville, 1994, p. 45). É natural que mudanças sociais tão intensas tragam tantas incertezas. Em suma, a abolição evitaria a insurreição. Para Tocqueville, o Estado de Direito deveria obrigar à liberdade, para que o ex-escravo aceitasse trabalhar como homem livre. Nas colônias inglesas, até os governadores eram conscientes da opressão e crueldade da escravidão. Deste modo, em um momento intermediário, antes da abolição, cerca de 10 mil alforriados já freqüentavam escolas.

Para Tocqueville, no entanto, a lei inglesa falhou porque não ofereceu a devida educação aos jovens e moralização aos adultos. O Poder Público deveria cuidar da liberdade e não os senhores de escravos. Seria como passar da “morte à vida”, pois a liberdade é produto do “espírito do tempo”. Não obstante os esforços de muitos políticos franceses, a escravidão perdurava e avançava a luta política – quase como guerra. Para Tocqueville, a liberdade e a economia do trabalho livre, quando não atendidas pelo governo, resvalam na Razão de Estado: “A França está pronta a desempenhar o papel que seus interesses e sua grandeza lhe indicarem [...] Posso até concordar que não façamos uso das nossas forças, mas procuraremos, pelo menos, preservá-las” (Tocqueville, 1994, p. 88). Nesta era da Modernidade Tardia, a nova Razão de Estado estaria – ou deveria estar – assentada no poder social constituído a partir da Revolução de 1789: acudir os infelizes; defender os oprimidos; sustentar os fracos; assegurar a liberdade a todos os homens. Como exemplo diz que a liberdade, na Inglaterra, foi retirada ao Estado: “A verdade é que a emancipação dos escravos foi, assim como a reforma parlamentar, obra da nação e não dos governantes. É preciso ver nela o produto de uma paixão e não o resultado de um cálculo” (Tocqueville, 1994, p. 92).

A Razão de Estado, neste sentido, seria realmente obra da nação; a liberdade ali seguiu a “onda popular”. Porém, mesmo na Inglaterra, a abolição seguiu cálculos do realismo político de Maquiavel, especialmente quando da proibição do tráfico de escravos: “É claro que, para chegar a isto, eles empregavam, segundo é seu costume, todos os meios; ora usavam a violência, ora a astúcia, frequentemente a hipocrisia e a dubiedade” (Tocqueville, 1994, p. 93). O que não se pode negar é que a liberdade – aliada à instrução popular – mudaria hábitos e costumes arraigados. Os novos trabalhadores livres “tornaram-se obedientes à lei, quando as leis se tornaram mais benevolentes”. Sobre o projeto da lei de emancipação, Tocqueville comenta que as reais vantagens estão no fato de que: a liberdade é assunto de Estado; a questão social seria mediada pelo Estado; em posição superior, o Estado dominaria ambas as classes; gradualmente, o objetivo maior seria alcançado.

Leis justas sempre

Mais recentemente, a recusa das leis injustas supõe sua improdutividade moral, à medida em que nada acrescentam aos elos sociais, como vemos nas lições do Tao (o melhor ataque, é a defesa) e na “Revolução Açafrão”, de Muanmá, nas batalhas do não-agir, do esperar para melhor avaliar, tão presentes nas “ações” da Desobediência Civil. Mas, também podemos dizer que, sempre que pode, o povo respondeu aos avanços do poder absoluto com posturas políticas, ora como enfrentamento violento, ora com a desobediência civil, especialmente a partir do século XIX. Enfim, como vimos, a Desobediência Civil é uma resistência legal e legítima às leis injustas. Na versão ocidental incidental, tratava-se de uma modalidade de ação política defendida por um revolucionário americano de nome Thoreau, e que pregava atos de desagravo individual que levassem ao descumprimento social de uma ordem imoral (ou simples descumprimento da lei).

 

 

Bibliografia

CERRONI, Umberto. Política: método, teorías, procesos, sujetos, instituciones y categorias. México, D.F. : Siglo Veintiuno Editores, 1992.

HANDA, Francisco. A arte da guerra & o livro de Mestre Shang. IN : SUN TZU (et. all.). Sábios guerreiros : A arte da guerra – O livro de Mestre Shang – Um livro de Cinco Anéis – Primeiros passos do guerreiro. São Paulo : Editora Claridade, 2004.

LAO TSÉ. Tao Të King: O Livro do Tao e sua Virtude: Versão Integral e Comentários. 2ª ed. São Paulo : Attar, 1995.

MIANMÁ. (Nota após a dobra do jornal). Jornal o Estado de S. Paulo, Caderno A, p. A11, 28/05/2007.

VIEIRA, E. O que é desobediência civil. 2. ed. São Paulo: Brasiliense, 1984.

THOREAU, Henry David. Desobediência Civil. Lisboa-Portugal : Edições Antígona, 1966.

____ Defesa de John Brown. Lisboa-Portugal : Edições Antígona, 1987.

SUN TZU. A arte da guerra. 30ª Ed. Rio de Janeiro : Record, 2002.

SUN TZU II. A arte da guerra – os documentos perdidos. 8ª Ed. Rio de Janeiro : Record, 2002.

SUN TZU (et. all.). Sábios guerreiros : A arte da guerra – O livro de Mestre Shang – Um livro de Cinco Anéis – Primeiros passos do guerreiro. São Paulo : Editora Claridade, 2004.

TOCQUEVILLE, Aléxis. A emancipação dos escravos. Campinas-SP : Papirus, 1994.

WEBER, MAX. Ensaios de Sociologia. Rio de Janeiro : Zahar Editores, 1979.

Vinício Carrilho Martinez

Professor Adjunto II da Universidade Federal de Rondônia

Departamento de Ciências Jurídicas

Doutor pela Universidade de São Paulo

 



[1]É interessante lembrar que na Índia admite-se a reencarnação com base na metamorfose, ou seja, pode-se passar uma vida como humano e outra (se decair), como inseto.

[2]Entretanto, aqui há que se ressalvar a ideia da “luta pelo não-agir”, do Tao à Desobediência Civil clássica, de Thoreau (1966).

[3]A Guerra do Vietnã seria um drama na consciência de muitos americanos que lá lutaram, justamente, por não haver esse motivo, este porquê.

[4]Exército popular de reserva, a serviço de tarefas policialescas. Em Vigiar e punir, Foucault já sinalizava para a produção da delinqüência a partir da utilização de alcagüetes.

[5]Contraditoriamente, a “intolerância virtual” indica crescimento do número de páginas com temática neonazista na internet. Veja-se em: http://cienciahoje.uol.com.br/109282.

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