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Gente de Opinião

Vinício Carrilho

Direito é cultura


            O direitoé pura cultura. Há expressõesclaras do jurista brasileiro Miguel Reale, já em 1940, indicando de que forma o direitodebe reverênciasà cultura:

  • “A norma jurídica é uma integração de fatos segundo valores”
  • “O Direito é uma ordem de fatos integrada em uma ordem de valores”
  • “O Direito não é puro fato, nem pura norma, mas é o fato social na forma que lhe dá uma norma”
  • “O Direito é síntese ou integração de ser e de dever ser; é fato e é norma, porque é o fato integrado na norma exigida pelo valor a realizar”
  • “É da integração do fato em um valor que surge a norma” (Reale, 1998)

É óbvio como Miguel Reale é atento ao que dispõea própria lei, ao prescrever que a cultura e os costumes são fontes do direito. A cultura é o mais singular trajeto da grandeza do espírito humano. Vamos entender esta afirmação em etapas: do trabalho social à fabricação da cultura e da sociedade. Inicialmente, pode-se afirmar que o fato mais notável dos seres humanos é a combinação de adaptabilidade aos meios mais diversos e até inóspitos.

Esta capacidade de combinação de esforços produz a diversidade, pois o homem tem que se adaptar às mais diversas situações e circunstâncias, superando historicamente as adversidades e contradições, para aí suprir suas necessidades elementares, por meio da cooperação e da solidariedade (racionalização no uso de recursos e de esforços). Este trabalho produz outros elementos mais requintados e igualmente diversificados: a cultura. Esta combinação entre adaptação e cultura é o que produz a enorme gama de diversidade social. Fato que também leva a pensar que a cultura é a gênese da sociedade. Equivale a dizer que somos programados para dar atenção à cultura e, por isso, diz-se que a cultura é nossa segunda pele – mas não artificial. Uma segunda pele que passamos de geração a geração, aprendendo com a interação de todos no Todo.

Este aprendizado ou capacidadede aprendizagem cultural tem o suporte de vários outros instrumentos, a exemplo da linguagem, da comunicação, da educação e da política. No entanto, o elemento comum é a nossa resposta, enquanto espécie, às necessidades de sobrevivência e em meio às adversidades e/ou riquezas naturais. Assim, participando conjuntamente da elaboração de respostas sociais, pode-se dizer que o homem produz cultura antepondo e experimentando seu equipamento intelectual, diante da tarefa comum de se produzir a vida social. Os seres humanos realmente aprendem a partir de meios culturais. Se é certo que o homem vive com e a partir da natureza, esta afirmação requer balizamento, pois o homem aprendeu desde a infância da Humanidade a viver na natureza transformada ou, o que dá no mesmo, no meio social construído – e essa natureza transformada é a matriz da cultura. Portanto, o homem só sobrevive graças à cultura, não há vida social, nem inteligência sem cultura.

Aprendemos com a cultura e vivemos para a cultura, pois a cultura é nossa marca distintiva e definitiva na natureza. Pode-se dizer que um homem e uma mulher só são cultos se e quando bem interagem com os demais membros do grupo social. No reconhecimento individual e na criação social do Outro, a cultura é um meio de desnaturalização, mas também deve ser o recurso mais ativo em busca da preservação do entorno. A própria cultura do direito nada mais é do que o equilíbrio entre o homem, a sociedade e o ambiente. A regra jurídica e a norma social nasceram com o objetivo sublime da preservação dos recursos naturais e humanos que alimentam a cultura.

Somente na impossibilidade da preservação da cultura é que o desafio lança o homem em busca de novos direitos – no mais, o direito permanece atado e recatado no seio da cultura. Porém, na presença de um mínimo de entropia social observamos um eterno recomeço, quando novamente o homem dá início à procura de transformar o meio em cultura, agindo através do trabalho social. Enfim, cultura é a capacidade humana de responder organizadamente às necessidades e assim transformar a natureza coletivamente, trabalhando e fabricando a inteligência social.

Por isso, vale repetir que a Cultura é nossa segunda pele. Ainda podemos dizer que cultural é a organização metódica das instituições e da política, da representação normativa e da religiosidade. Analiticamente, entretanto, podemos ver a Cultura como um esforço coletivo pela/para a organização demonstrativa e positiva (racional e objetiva) da vida social – formada, por sua vez por práticas sociais, costumes, formas e modos de produção, práxis política, invenções tecnológicas – e simbólica (lendas, mitologia, religiosidade). Mas, de todo modo, pertencentes a um determinado processo civilizatório, pois que constituem traços comuns aos membros da sociedade nacional (ou agrupamento social).

Já a razão que (se) desperta desse esforço organizacional é um apelo de sobrevivência metodicamente estipulado em virtude dos principais anseios ou necessidades sociais (ou de determinado grupo social pertencente à estrutura social, estratificação, da sociedade nacional). Portanto, a razão, como processo “evolutivo” (também destrutivo) da racionalidade, capacitou, historicamente, os membros pertencentes a grupos sociais ou à sociedade nacional (hoje seria sociedade global) ao raciocínio lógico-dedutivo, ao “pensamento abstrato” (conceitual), à organização instrumental e “razoável” dos equipamentos e argumentos discursivos (da oralidade à invenção da escrita), e dos pressupostos culturais.

Por isso, tanto no contexto da “civilização” quanto na “barbárie”, toda cultura é uma organização profícua e profundamente racional – e mesmo que lastreada por sentimentalismos e subjetividades, a exemplo das lendas, fabulações e mitos. Exemplo disto é a intelectualização presente na erudição de metodologias e de conhecimentos como se vê na metáfora (primeira forma de racionalização com destaque ao desvelamento de “significados” a um vasto público) e na alegoria (ocultamento da comunicação, revelando significado apenas a um público restrito). Este é o caso do Mito da Necessidade ensinando a todos a precaução, como necessidade de se evitar o risco desnecessário: a narração de Ifícrates (no rio Estige) revela o primado do Direito Público, porque o Estado produtor de regras jurídicas debe canalizar os fins privados em torno do contrato coletivo.

Portanto, o direito surge como uma tentativa de sistematização, codificação das sentimentalidades compartilhadas nas trocas embutidas na inter-subjetividade (codificação política). Isto ainda nos permite ver a cultura como uma segunda pele política e jurídica, ou seja, uma pele construída pelo esforço da racionalização dos vários significados que atuam na vida sócio-metabólica (“capitalização dos meios produtivos”). Em suma, podemos falar de uma conceituação do Antropo-Logos[1]e da Etnopolítica[2], como inerentes a uma Antropologia de dinamismo sócio-político, reaproximando o político da Antropologia Cultural (Antropologia Política).
 

Costumes

Costumes correspondem à observância duradoura, uniformemente reiterada, de certo regramento aceito globalmente pelo grupo social e/ou pela sociedade a que se pertença, por um lapso temporal razoável. Porém, os costumes não se reduzem a meras “rotinas administrativas ou burocráticas”, como práticas adotadas por determinados órgãos, entidades e agentes públicos. Portanto, o costume pode influenciar na geração de certos atos administrativos e na provocação do Poder de Polícia.

Um exemplo do direito comparado é o do caso de mendigos latino-americanos, na Inglaterra; pois enquanto os ingleses estavam acostumados com o homeless que se posta calmamente nas calçadas, já os latinos costumam abordar com filhos no colo e exercendo pressão moral, trazendo constrangimento aos transeuntes. Em razão disso, o parlamento inglês autorizou a punição mais rigorosa de pedintes que molestassem os cidadãos, alegando que a abordagem mais direta, incisiva, provocativa provocaria excessivos constrangimento e até ameaça à paz pública. Daí a autorização expeedida pelo governo inglês para haver uma punição tipificada como crime de vadiagem; uma tipificação social, aliás, reservada aos alforriados da escravidão no Brasil. Curiosamente ou ironicamente, não se trata a política ou as questões sociais como fonte originárias do direito - como se o Legislativo não fosse um poder de fato, movido pela política, e responsável pela garantia do monopólio legislativo do Estado. Nem mesmo a doutrina é admitida como fonte do direito administrativo, também como se muitos dos legisladores não procurassem se respaldar nos melhores juristas.

Assim, não reservam o escopo jurídico-administrativo necessário à doutrina, porque trata-se comumente a jurisprudência, os Princípios Gerais do Direito e até os costumes como fontes, mas não os anseios, as demandas e as pressões sociais e políticas. O mais habitual é que se veja a chamada letra fria da lei, como fonte primária do direito administrativo, quase que adstrito à estrita legalidade. Desse modo, inclusive os princípios precisam se recobrir do positivismo jurídico a fim de se legitimarem – como é exemplo que depreendemos do art. 37, caput, da Constituição Federal.

Quanto ao referido artigo da Constituição[3], como exemplo da incapacidade em se averiguar o alcance intimamente social da lei, ainda podemos dizer que o interesse público não é o que se opõe ao privado, mas sim aquele que se nega a privilegiar o privado em detrimento do público. Entretanto, com tantos conflitos políticos e de lutas por poder, ao largo da luta de classes (para outros tantos, verdadeira guerra civil no cotidiano da sociedade brasileira), até questões técnicas derivadas de princípios essenciais estão à deriva. Políticamente, institucionalmente, é preciso diferenciar com clareza desconcentração  (distribuição de competências dentro da mesma pessoa jurídica) e descentralização: pressupõe uma pessoa jurídica diferente do Estado.

Para muitos administradores, políticos, cientistas sociais, analistas políticos, e juristas, o Estado de Direito é uma ficção. Não pode haver segurança jurídica (império da lei, prevalência dos direitos individuais, sufrágio universal) diante de grupos de pressão, elites apartadas do todo ou a eterna luta de classes capitalista. Neste caso, especialmente porque a luta de classes corrói a legitimidade do sistema, conseguindo manter somente uma aparente legalidade. Concluindo, é preciso verificar que a constituição do Estado de Direito e da Federação é definida e delimitada pela Constituição Federal; ao passo que a criação, definição, estruturação do Poder Público são ditados pelo direito administrativo, com leis específicas que circunscrevem os liames e limites da Administração Pública. É o que se depreende do art. 61, §1°, a e b; art. 51, IV; art. 52, XIII, art. 88 da própria CF/88.

De todo modo, indiferente ao direito administrativo, frente ao costume, o jurista tem um caráter peremptório – o jurista se apropria do cultural. O jurista se posiciona como detentor do costume e, por isso, o costume é tido como fonte do direito. Com esta forma de apropriação cultural, o jurista propugna por uma simbiose entre a prática social reiterada e o elemento psicológico (opinio necessitatis). Dessa fusão ou alquimia é que se o substrato das regras de caráter obrigatório. Assim também se transforma fato em direito. Pelo viés dogmático, promove-se uma subsunção dos costumes ao direito, o direito envolve, subjuga os costumes – como se os costumes fossem da ordem do jurídico e não, propriamente, elemento de conformação cultural. Movido pelo chamado Pluralismo Jurídico, entende-se que o Direito é um produto do desdobramento natural dos costumes em regras e normas. O conflito se instaura no seio da relação entre lei e costume haja vista que o mundo moderno tem por base a luta entre classes fundamentais (burguesia x proletariado). A partir do século XX, esta segunda linha ganhou outra modelagem: o chamado movimento do direito “livre”. Este movimento tanto busca respostas para o “direito vivo” – que está recôndito – quanto também denuncia o fetichismo da lei e a univocidade do direito. Portanto, a existência autônoma é devolvida aos costumes.

 

Bibliografia

BRITO, Antônio José Guimarães. Estado Nacional, Etnicidade e Autodeterminação. IN : COLAÇO, Thais Luzia. Antropologia Jurídica. 2ª ed. Conceito Editorial, São Paulo, 2011.

 

BOTO, Carlota. A escola do homem novo: entre o Iluminismo e a Revolução Francesa. São Paulo : Editora da UNESP, 1996.

HOBBES, Thomas. Leviatã. Col. Os Pensadores. 3ª ed. São Paulo : Abril Cultural, 1983.

LOCKE, John. Segundo Tratado sobre o governo civil e outros escritos. Petrópolis-RJ : Vozes, 1994, 318 páginas.

REALE, Miguel. Fundamentos do Direito. 3ª ed. São Paulo : Ed. Revista dos Tribunais, 1998.

WOLKMER, Antonio Carlos. Pluralismo Jurídico: fundamentos de uma nova cultura no Direito. São Paulo : Editora Alfa Omega, 2001.

_____História do Direito no Brasil. 5ª. Edição. Rio de Janeiro : Forense, 2010.

 

Vinício Carrilho Martinez
Professor Adjunto II da Universidade Federal de Rondônia
Departamento de Ciências Jurídicas
Doutor pela Universidade de São Paulo

 



[1]O conhecimento real, que serve à humanidade, não conhece as fronteiras da intolerância, é um conhecimento que está atrelado ao convite da cultura.

[2]A política parte da condição humana e, obviamente, independe de toda demarcação cultural-étnica.

[3]Art. 37, caput, da CF/88: “A administração pública direta e indireta de qualquer dos poderes da União, dos Estados , do Distrito Fedral e dos Municípios obedecerá aos princípios de legalidade, impessoalidade, moralidade, publicidade e eficiencia”.

* O conteúdo opinativo acima é de inteira responsabilidade do colaborador e titular desta coluna. O Portal Gente de Opinião não tem responsabilidade legal pela "OPINIÃO", que é exclusiva do autor.

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