Segunda-feira, 20 de maio de 2024 | Porto Velho (RO)

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Gente de Opinião

Vinício Carrilho

A Multidão e os múltiplos políticos



Que tal se eu continuasse dormindo mais um pouco

 e esquecesse todas essas tolices?

Chegará então a vez da grande ruptura

Kafka – A Metamorfose

 

Muitos movimentos, tentativas de insurgência, insurreições, levantes populares foram assinalados na história política brasileira: Sabinada (Revolta de Escravos de 1837-1838), Revolta da Vacina (República Velha - 1904), Intentona Comunista (1935). E tantos outros. Mais recentemente, vimos o Movimento pelas Diretas-Já (1983-1984), o debate acirrado em torno da Assembleia Constituinte (anos 1985-1988), depois o fora Collor (1992).

Historicamente, o Poder Político nunca conviveu muito bem coA Multidão e os múltiplos políticos - Gente de Opiniãom as mobilizações sociais e populares, isto porque o poder tem a tendência a se centralizar, verticalizando-se, enquanto a sociedade tem múltiplas demandas sociais e, por natureza, é descentralizada, manifestando-se mediante o sentido global de uma multiplicidade horizontal. Portanto, o que vemos no Brasil, com a mobilização de milhares de pessoas, é uma manifestação sobre temas globais. O que faz eco com outras partes do mundo, a exemplo da Turquia em que a desconfiança com o Poder Público está no limite institucional. O entrechoque, no entanto, é instrumental, afetando-se toda a estrutura singular do Estado nacional. A polícia que, normalmente, é associada à repressão dos movimentos populares, nos movimentos que abalaram o Brasil com a tomada das ruas, teve atuação diversa; inicialmente foi violenta, mas se rendeu à lógica social da Multidão brasileira e aderiu à marcha[1], em sua luta contra a distopia pública[2].

Poder Político

O mito que herdamos do Estado Moderno (século XVI) assinala que o poder presente na Razão de Estado é constitutivo da vida social”. Este princípio legítimo da dominação (presente no mito) é o que conferia soberania ao Príncipe legítimo. Este poder da Razão de Estado submetia todos os sujeitos e ao direito, uma vez que é o produtor das próprias regras que garantem sua imposição. No século XVI, a Monarquia já se tornara absoluta e legisladora, outorgam-se o “vigor” capaz de atribuir, cancelar, instituir e redistribuir os direitos. Desde o século XVI, portanto, o soberano, na forma da Razão de Estado, vinha forçando a passagem da “Multidão” à condição de um “todo orquestrado” (de cima para baixo). A Multidão de artesãos, camponeses e pobres da Idade Média precisava ser agrupada e reequipada intelectualmente, culturalmente para servir ao mundo moderno; transformando-se em classe trabalhadora já se colocavam a serviço do capital e do Estado nascente. O proletariado, então, já sinaliza a centralização do poder social.

Poder-se-ia alegar, porém, que após o século XIX o direito[3]passou a regular o soberano (tornando limitado, o que era absoluto), mas é preciso lembrar que mesmo o Estado mais democrático não abre mão de formas ditatoriais de poder, a exemplo do “direito de exclusão” presente nas formas de exceção — uma indicação de que a Razão de Estado continua seduzindo atenções. O que ainda nos diz que Hobbes acertou na veia ao propor esta questão ao Estado Moderno: “E, para medirmos a inovação assim introduzida, basta recorrermos à frase de um teólogo do Século XII: ‘A diferença entre o príncipe e o tirano é que o príncipe obedece à Lei e governa o seu povo em conformidade com o Direito [...] A teoria da Soberania libera o poder do Príncipe de tais limitações” (Lebrun, 1984, pp. 28-29). Este pensamento absolutista acerca do poder marcou indelevelmente a Razão de Estado: poder soberano é o poder absoluto. Nenhum meio de manutenção do poder pode ser excluído; seja para a regra, seja para as suas exceções, “os fins justificam os meios”.

Em longo salto na história política, nas primeiras décadas do século XX, o Estado Social serviu como fundamento ideológico em que se procurava aproximar Estado e sociedade. Uma tentativa de modernizar a soberania (sendo mais popular) e de resgatar a legitimidade interposta pelo pensamento religioso: o príncipe obedece à Lei. Contudo, o Estado Social vem sendo gestado desde as revoltas e tentativas de revolução europeias dos anos 1848[4]e ganharia um empuxo ainda maior com a Comuna de Paris, em 1871. Depois, já no século XX, afirmou-se com a Revolução Mexicana, de 1910, e com a Revolução Russa, de 1917. Portanto, o chamado New Deal (plano econômico de restauração da economia americana abalada com a grave crise de 29), é apenas um marco econômico posterior do Estado Social. Isto é, de meados do século XIX (1848) até os anos 1930, o Estado Social consolidou suas bases históricas e matrizes ideológicas. O Estado do Bem Estar, por seu turno, terá o Plano Marshall (1947) como ponto de referência histórica: com o fim da Segunda Guerra, a Europa precisava ser restaurada. Enfim, de 1917 a 1947 são 30 anos de separação histórica e geográfica entre os dois tipos de Estado. As últimas décadas do século XX marcariam, ao contrário, o fim do Estado Social, com uma extensa privatização dos interesses, recursos e princípios públicos. Como resposta global a este desmanche do Estado que apoia o social, surgiu um fenômeno global denominado de Multidão.

Multidões

A Multidão é um fenômeno que se formou mais claramente a partir de 1990, com as revoltas e mobilizações por todo o mundo, especialmente contra o modelo econômico espoliador dos povos mais pobres. Na Multidão, a lateralidade e a horizontalidade democrática retoma parte da tradição política. Na Multidão, o poder popular, via de regra, não é centralizado, não tem uma cabeça para ser cortada, é um movimento de massas. Neste sentido, a Multidão carrega consigo a legitimidade do Poder Constituinte. Porque a Multidão também ultrapassa os mecanismos tradicionais dos partidos políticos, do Poder Político e das instituições de forma geral.

Para retomar outro exemplo da década de 1990, basta lembrarmos que se tornou evidente o uso revolucionário da Internet em Chiapas, México. Naquele momento, para fugir do cerco do exército mexicano, que seria letal, os zapatistas emitiram pedidos de socorro através da Internet, a fim de que a comunidade internacional pressionasse o governo a não cometer o genocídio político. Parece que foi o primeiro caso de Habeas Corpus Tecno-preventivo em nome de uma coletividade política. O governo não teve como resistir[5]. A partir de então, a modernidade aliançou em definitivo a política e a tecnologia (Di Felice, 1998).

Dos zapatistas a Seatle

Quando o sub-comandante Marcos, no México, utilizou a rede e a telemática para fazer avançar a ação da guerrilha zapatista, não estaria atualizando (colocando em dia) as possibilidades teóricas de todos os projetos e ideais revolucionários de cunho popular? Percebemos, desde então, que o Estado de Direito Virtual tem um alento revolucionário, pois se desenvolveu sob a lógica inversa da Matrix (como uma rede que controla a todos). Neste caso, a Matrix é fáustica e o maquinismo é maquiavélico. Aprendemos que na técnica vigora o raciocínio político controlativo (outrora meramente repressivo). Trata-se de um controle técnico que é político, como no caso do celular que vem com recurso de localização via GPS ou dos chips implantados sob a pele que, teoricamente, deveriam inibir situações de sequestro. Quanto ao Estado de Direito Atual, ainda podemos dizer que o suporte técnico impulsionou tanto o cidadão quanto o sub-comandante Marcos à esfera global.

O sub-comandante Marcos não é mais um guerrilheiro, é um cidadão do mundo, mesmo que pobre. Sua imagem virtual (lutando atrás de um computador, angariando o apoio de milhares de Hackers pelo mundo afora) não deixa de nos mostrar que os zapatistas se defrontam contra o Estado Atual mexicano, contra o status quo ante, e que se instalou depois da Revolução de Zapata, no início do século XX. Mas e quando se misturam, imiscuindo-se o atual e o virtual? Para o caso dessa política sem lugar, Deleuze atribuiu o nome cristalização:

Essa troca perpétua entre o virtual e o atual define um cristal. É sobre o plano de imanência que aparecem os cristais. O atual e o virtual coexistem, e entram num estreito circuito que nos reconduz constantemente de um a outro [...] Não é mais uma atualização, mas uma cristalização. A pura virtualidade não tem mais que se atualizar, uma vez que é estritamente correlativa ao atual com o qual forma o menor circuito. Não há mais inassinalabilidade do atual e do virtual, mas indiscernibilidade entre os dois termos que se intercambiam (Deleuze, 1996, p. 54).

 

É como se o Estado distante do povo fosse um desses cristais e a Multidão sai às ruas para quebrar cristais. Isto vale para o Estado de Direito Capitalista, quando toma formas mais fixas ou cristalizadas e dissociativas em relação ao capital predominante ou hegemônico. Quando o Estado Capitalista se globaliza, há valores que se cristalizam, ganham formas permanentes, com força e status inerentes. Há valores cristalizados, como nas seguintes ideias-motores do capital atual: “deixe o lucro crescer”; “o liberalismo é o bem e não pode ser contido”. Não deixam de ser cristais do capital, como um dia também foram suas pérolas. É por isso que o Estado simplesmente não desaparece, porque o Estado Arrecadador ainda necessita financiar o grande capital – a não ser que o capital encontre outra forma ou fórmula de auto-financiamento, o que também não se mostra muito viável, graças ao egoísmo natural da empresa.

O sub-comandante Marcos (entre os zapatistas, no México) é um ícone das forças anti-globalização ou hegemonização, mas também é uma lembrança de como funciona mal esse Estado-Cristal que demora a entender o fluxo ou a direção das forças em jogo. O Estado-Cristal mexicano não resolveu a crise social e ainda perdeu as batalhas midiáticas para os zapatistas que, com conexão via satélite, conseguiram colocar seu discurso por justiça social no mundo todo. Talvez por só ter notado essa característica do Estado-Cristal, da sociedade de controle, Deleuze também não notabilizou a grandeza, a potência do virtual – sua dinâmica, sua força motriz e política, sua infindável força de criação imaterial, de novas inteligências, da própria força de erupção desse novo instrumento/constructo. Com certeza, esse foi o primeiro grande passo da guerrilha cibernética contra o Estado-Cristal: o tipo de Estado incapaz de ver as virtualidades presentes nos movimentos sociais representativos dos interesses realmente populares. E isso também incentiva a reler o texto O Pensamento Único, de Ramonet. Essa estrutura, no entanto, será repleta de contradições e é para essa análise que nos encaminhamos, para as contradições políticas e jurídicas que mais se aproximam desse tipo de Estado controlado. A Multidão quer rever a legitimidade dada ao Estado Cristal (Martinez, 2001).

Seatle e o mundo globalizado pelo sofrimento social

Em outro exemplo do mesmo período, em Seatle, nos EUA, em 1999, na reunião da Organização Mundial do Comércio (OMC), a net também mobilizou a participação social em defesa dos países do Terceiro Mundo, denunciando a desigualdade social e clamando por medidas econômicas favoráveis. Esta democracia horizontal, retomada pela Multidão, conectou demandas globais que repelem as formas de autocracia. Da guerra de guerrilha do passado à guerra em rede do presente, os coletivos interligam-se em anseios múltiplos na Multidão. Este acentrismo confronta abertamente o Estado-Nação, mas o desafio político está em ultrapassar as fluídas matrizes da resistência aos governos de tirania e ao Império. Porém, o resultado democrático gera repressão e desigualdade, exacerbam-se as hierarquias e subvertem-se as estruturas políticas tradicionais. No refluxo estatal, experimenta-se um estado de violência global (Negri, 2005). Também nas primeiras décadas do século passado, fortificou-se a tese da greve geral como essência do poder popular – aquele que é detentor da legitimidade política.

Greve Geral

As teses da cidadania ativa avalizadas pela tradição política da Grécia antiga são resgatadas por Sorel, na primeira década do século XX. Em síntese, para Sorel, trata-se de uma “luta de classes por direitos”, no bojo do socialismo ético. G.D.H. Cole descreveu como democracia intencional:

A antiga concepção da cidadania que se limita a votar foi denunciada como coisa passiva e estéril; e os homens foram convidados, em nome da ação cidadã, a realizar diretamente a obra política mediante um conjunto de associações funcionais em que podiam prestar serviços positivos [...] Os homens — dizia-se — não devem ser levados à ação só por argumentos racionais, senão, sobretudo, por requerimentos emocionais, por atrações do instinto de solidariedade e de auto expressão, incorporado praticamente de ‘mitos sociais’ tais como aquele mito sindicalista da greve geral (idem: 60 - tradução livre).

           

Neste caso, o direito surge como um médium ou como mito social e a dominação racional como modelo utópico: ambos capazes de transformar o “sentimento ardente da injustiça e da indignação” em princípios normativos objetivos. A greve geral é parte vibrante da luta pelo direito, como releitura de Von Ihering:

Sorel foi capaz de patentear, como aspecto afetivo do processo de luta que Hegel colocara em vista, os sentimentos coletivos do desrespeito sofrido, dos quais só raramente as teorias acadêmicas tomam conhecimento... (Honneth, 2003, pp. 250-2510).

 

A referência à greve geral, por exemplo, denota claramente que se trata de consciência e de mobilização coletivas. Ao contrário de uma simples afirmação de direitos individuais, convivemos, em geral, sob o fluxo atuante (ou em repouso) de uma Multidão desterritorializada.

Multidão desterritorializada

            Muitos dos problemas enfrentados atualmente se devem à falta de estrutura, envolvimento e legitimidade de nossas organizações sociais e institutos. Se puxarmos pela memória, lembraremos que há uma ou duas décadas ainda tínhamos a sensação de pertencer a alguma categoria social, profissional e nos sentíamos pressionamos a participar – além de que éramos representados e sabíamos da importância dessas representações coletivas. Hoje, a própria ideia de representação está em xeque; aliás, não sabemos definir o que é representação, quais seriam os principais movimentos sociais e muito menos o nome e a atuação mais significativa de suas lideranças. Até pouco tempo, por exemplo, o MST (Movimento dos Trabalhadores Sem Terra) tinha suas lideranças na mídia e sua atuação forçava mudanças em outras instituições, obrigando o governo e as elites econômicas e políticas a negociar. A atuação do movimento provocou mudanças profundas na ordem social.

Mas, atualmente, não temos a mesma força presente nas relações sociais. Alguns mais céticos, inclusive, dizem que os Movimentos Sociais – e outras formas coletivas de organização – estão fora do contexto geral e que sua era é passada. A Multidão seria uma válvula de escape. No sentido técnico, pode-se dizer que a Multidão é uma somatória de quantidades imponderáveis de coletivos, o que altera a qualidade de sua verificação sociológica. Trata-se de coletivos que se aproximam por meio das redes políticas e de comunicação (instantaneidade) e assim superam as limitações geográficas e culturais. Forma-se uma espécie de etno-ética, para além das barreiras soberanas de seus Estados de origem. Em nome das sociedades e do poder social, as multidões desafiam o Estado Moderno e o poder político. São movimentos sociais intensos, centrífugos, mas que se iniciam a partir de demandas localizadas.

A Multidão é formada por coletivos que se comunicam com uma infinidade de outros movimentos legítimos. Esses coletivos configuram-se como uma Multidão de interesses, demandas e requisições aproximativas. São movimentos e coletivos desterritorializados porque angariam simpatia e adesão pelos quatro cantos do planeta, mas não são despersonalizados, como se orbitassem um não-lugar. São desterritorializados porque não são limitados pelos estreitos que se formam em torno das hostes do poder constituído. São deslocados por vontade e força própria, mas não estão perdidos. A Multidão não é um aglomerado mundial de indivíduos perplexos, mas causa muita perplexidade. Tem um nível de interatividade jamais verificada, mas se insurgem contra papéis e status pré-configurados.

Democracia horizontal

Abriu-se uma opção histórica para a Multidão forjar uma territorialidade mundial, conectando intersubjetividades e estimulando a formação de muitas outras. A Multidão desterritorializada caminha na horizontalidade das relações sociais e de poder. O mais interessante, entretanto, é que do aparente caos social e da ausência de representação surgiu um fenômeno social organizado em rede, sem estruturas hierárquicas e administrativas, com grande autonomia e com intensa agregação e participação social. A democracia horizontal é uma forma política de questionamento e de enfrentamento das estruturas hierárquicas rígidas (estáticas), em que sobressai a presença da autoridade sem alteridade. Assim, a democracia horizontal se notabiliza pela presença do Poder Democrático: autoridade + alteridade.

Diante da sociabilidade horizontal, mesmo refém do status quo, a potencialidade da Multidão se converte na possibilidade real de se insurgir como novo coletivo de sujeitos de direitos atuantes e envolventes em suas requisições, posto que as ações políticas são baseadas na legitimidade democrática e subversiva da heteronomia própria à centralização do poder (Razão de Estado). Para Arendt, a antiga filosofia favorecia a perspectiva integrativa entre excelência e prudência, com maior convivialidade:

Conviver no mundo significa essencialmente ter um mundo de coisas interposto entre os que nele habitam em comum, como uma mesa se interpõe entre os que se assentam ao seu redor; pois, como todo intermediário, o mundo ao mesmo tempo separa e estabelece uma relação entre os homens [...] O que torna tão difícil suportar a sociedade de massas não é o número de pessoas que ela abrange, ou pelo menos não é este o fator fundamental; antes, é o fato de que o mundo entre elas perdeu a força de mantê-las juntas, de relacioná-las umas às outras e de separá-las (Arendt, 1991, pp. 62-63).

 

A ampliação do significado e dos espaços de convivialidade, como vemos ocorrer na Primavera Árabe e nos movimentos de rua do Brasil -  e no decorrer da luta política pelo Direito a ter direitos –, é o cerne atual da democracia horizontal. A luta pelo reconhecimento do Direito a ter direitos é instigante, chamativa aos que têm o humanismo por referência e a Educação Permanente como indicador do processo civilizatório; porém é árdua e provoca uma série de retaliações por parte dos próprios aparelhos repressivos de Estado. Um desses marcos políticos esteve evidente na tentativa do Estado em controlar a moral, todas as “formas ideológicas” e a intersubjetividade cultural dos povos.

Desafios da Modernidade Tardia

O que ainda se poderia ressaltar é uma perspectiva político-ontológica que se iniciou nos anos 90, como forma articulada de resistência e enfrentamento das forças internacionais que se avolumavam na forma do Estado Penal. À época, desde o México zapatista, a opção pela organização em redes políticas podia ser facilmente verificada, mas o processo evoluiu nas décadas seguintes e hoje se pode falar das multidões desterritorializadas. Vivemos uma total metamorfose e a Multidão é um dos mais fortes indícios:

Quando Gregor Samsa acordou de sonhos intranquilos, encontrou-se em sua cama metamorfoseado num inseto monstruoso [...] — Que tal se eu continuasse dormindo mais um pouco e esquecesse todas essas tolices? [...] Chegará então a vez da grande ruptura [...] Era uma criatura do chefe, sem espinha dorsal nem discernimento [...] Gregor reconheceu que a falta de qualquer comunicação humana imediata, ligada à vida uniforme da família, devia ter confundido o seu juízo no decorrer desses dois meses, pois não podia explicar de outro modo que tivesse podido exigir a sério que seu quarto fosse esvaziado. Tinha realmente vontade de mandar que seu quarto — confortavelmente instalado com móveis herdados — se transformasse numa toca em que pudesse então certamente se arrastar imperturbado em todas as direções, ao preço contudo do esquecimento simultâneo, rápido e total do seu passado humano? [...] Dificilmente o surpreendia o fato de que nos últimos tempos levava os outros tão pouco em conta; essa consideração tinha sido, antes, o seu orgulho [...] precisamos nos livrar dele [...] Até logo para todos (Kafka, 1997 – citação incompleta).

 

A metamorfose narrada por Kafka bem pode ser lida como o desvirtuamento do que é direito, a fim de legitimar o Estado de Exceção que se imporia ao mundo naqueles tempos, isto é, podemos ver a flâmula da Multidão em marcha.

 

Bibliografia

ARENDT, H.A condição humana. Rio de Janeiro : Forense Universitária, 1991.

DELEUZE, G. Conversações, 1972-1990. Rio de Janeiro : Ed. 34, 1992.

_____ O atual e o virtual. IN : ALLIEZ, Eric. Deleuze filosofia virtual. São Paulo : Editora 34, 1996.

DELEUZE, G. & GUATARRI, F. Mil Platôs: capitalismo e esquizofrenia. Vol. 1. Rio de Janeiro: Editora 34, 1995.

DI FELICE, M. & MUÑOZ, C. A revolução Invencível - Subcomandante Marcos e Exército Zapatista de Libertação Nacional - Cartas e Comunicados. São Paulo : Boitempo Editorial, 1998.

HONNETH, Axel. Luta por reconhecimento: a gramática moral dos conflitos sociais. São Paulo : Ed. 34, 2003.

COLE, G.D.H. La organización política: doctrinas y formas. México, D.F. : Fondo de Cultura Economica, 1987.

NEGRI, Antonio. O poder constituinte: ensaio sobre as alternativas da modernidade. Rio de Janeiro: DP&A, 2002.

HARDT, Michael; NEGRI, Antonio.Multidão: Guerra e democracia na era do império. 1ª Ed. São Paulo: Editora Record, 2005

KAFKA, Franz.  A metamorfose. 18ª reimp. São Paulo : Companhia das Letras, 1997.

LEBRUN, Gerard. O que é poder? 6ª ed. São Paulo : Brasiliense, 1984.

MARTINEZ, Vinício C. A rede dos cidadãos: a política na Internet. Tese de doutorado em Educação. São Paulo : Faculdade de Educação da Universidade de São Paulo (FEUSP), 2001.

Vinício Carrilho Martinez

Professor Adjunto III da Universidade Federal de Rondônia - UFRO

Departamento de Ciências Jurídicas/DCJ

Pós-Doutor em Educação e Ciências Sociais

Doutor pela Universidade de São Paulo

http://www.gentedeopiniao.com.br/colunista.php?news=104

 


[3] Assim, direito é a presunção de potencia; lei é a presunção de que há força.

[4] Lembremo-nos de que o Manifesto do Partido Comunista (1848) data desse mesmo ano – o que indica, mais uma vez, as reais intenções dos movimentos sociais de cunho socialista dessa época. Sem dúvida, um fermento ideológico para a geração do Estado Social e de sua base jurídica.

[5] Veja-se o site da Frente Zapatista de Libertação Nacional (FZLN), acessado por mais de 300.000 pessoas, em http://spin.com.mx/~floresu/FZLN/, e do Exército Zapatista de Libertação Nacional (EZLN), com textos, manifestos e artigos publicados em http://spin.com.mx/~floresu/FZLN/archivo/ezln/index.htm.

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