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Sandra Castiel

OS ÓRFÃOS DO CAIARI


OS ÓRFÃOS DO CAIARI - Gente de Opinião

A História nos revela que o Caiari é o bairro mais importante de Porto Velho. A construção das casas remonta aos idos de 1940.

Na década de sessenta, quando a cidade ainda era provinciana, minha família passou a morar no Caiari, na Rua Santos Dumont. Éramos uma família de gente simples, apesar do engajamento de meus pais na política e de minha mãe ser uma mulher intelectualizada, de tradicional família paraense. Minha mãe adaptava-se a qualquer situação sem reclamar. E ia à luta: trabalhava o dia inteiro na Escola Normal e à noite servia café-com-leite-e-pão para a filharada enquanto espalhava velas acesas pela casa escura; era tempo de escassez.

O centro cultural de Porto Velho era o Caiari. Lá, dizia o povo, viviam os categas, aliás, os cutubas, a elite social. Quem vinha do Centro, para chegar ao Caiari, normalmente subia a ladeira do Porto Velho Hotel ─ hoje Unir. Nessa rota, precisava pisar no asfalto da Presidente Dutra. Ali fizeram um asfalto que era um verdadeiro atoleiro, puro piche. Quem fez? Os cutubas, claro. Tanto que nós, os peles-curtas, cantávamos uma marchinha provocativa:

Você pensa que asfalto atola?

Asfalto não atola, não!

Asfalto é pra pegar cutuba,

Pele-curta ele não pega, não!

Ao longo do tempo, aprendemos a amar o Caiari. As divergências políticas diluíram-se no convívio amigável entre vizinhos. Morávamos na mesma calçada que o Sr. Esron Menezes e D. Vitória; Sr. Mário Lima e D. Nega. Em frente, o Sr. Vivaldo Mendes e D. Babá. Na esquina, o Sr. Melo e D. Maria. Em ruas próximas, as famílias do Dr. Cesar Queiroz e D. Hilda; do Sr. Vítor Sadeck e D. Odaléa; do Sr. Ramiro e D. Floripes; do Dr. Calmom e D. Lili; do Sr. Marco Aurélio Guzmam e D. Oneida; de Lindomar Soares; de D. Labibe Bártolo; do Dr. Gondim e D. Alzenita; do Dr. Ary Pinheiro e D. Lurdinha; do Sr. Anísio Gorayeb e D. Terezinha; do Dr. Pedro Olímpio e D. Nadir; do Dr. Otino e D. Vivi; do Dr. Lourenço e D. Wilmem, além de centenas de outras famílias tradicionais de Porto Velho e, claro, do Caiari. 

Nós, jovens do Caiari dos anos sessenta, acreditávamos que éramos modernos. Alguns eram adeptos do movimento de contracultura e consideravam os hippies o máximo. Porém, o jeito hippie de ser de nossa turma de garotas era apenas um verniz; não ia além do cabelo comprido e despenteado, das túnicas e das pantalonas estampadas, dos cílios postiços e da maquiagem artística e exagerada. A gente dançava no Joá, barzinho descolado de D. Nilce Guimarães, e gostava de ver o pôr do sol no Rio Madeira. Comumente, na saída do Carmela Dutra, reuníamo-nos em pequenos grupos na Praça Aluízio Ferreira, para ouvir, num toca-discos de plástico, o último LP do Chico Buarque e aprender logo as letras. Curtíamos também Roberto Carlos e companhia. Era nossa forma de nos manter engajados, em sintonia com o pensamento da juventude dos grandes centros. 

Lembro-me da primeira turma de universitários do Projeto Rondon em Porto Velho. Os rapazes ficaram alojados numa casa em frente a nossa, na Rua Santos Dumont. Certa manhã, quando abrimos a porta de casa, havia um tamanduá enorme, morto na varanda. Foi um choque, um horror. Soubemos que os universitários fizeram aquilo, para nos provocar, já que os mantínhamos distantes de nós e de nossa casa, uma casa cheia de moças bonitinhas. Nossa vingança foi cruel. Colocamos na varanda deles, de madrugada, um boneco de pano deitado em uma caixa e espetado em alfinetes; sobre ele, uma faixa onde se lia: morte ao Projeto Rondon. O resultado do falso vudu foi terrível. Acabamos com pena dos rapazes e ficamos amigos.

O Caiari também foi cenário de momentos difíceis de nossa vida: a prisão de meu pai, pelos militares, em 64, foi o mais doloroso. Dessa época, outra cena de truculência permanece nítida em minha memória. Minha mãe, do alto de seu metro e meio, enfrentando aos gritos dois homens que, de revólver na mão, bateram em nossa porta à noite, para buscar e prender o Sr. João Bento da Costa, grande amigo de nossa família, que ali se encontrava. Diante da determinação e da coragem de minha mãe, que empurrou o Sr. João Bento para o interior da casa, os homens foram embora. 

O Caiari foi palco de ricas vivências. Porém, nada houve de mais significativo do que sua escola de samba, a Pobres do Caiari, criação de José Roberto Melo, o Zeca, grande líder da juventude local. Dona Marise, com seu talento e criatividade, uniu-se ao Zeca e ambos transformaram a Pobres do Caiari, dantes acanhada, em uma escola de samba de verdade, aliás, a primeira a mostrar um carnaval temático e luxuoso por essas bandas. A concentração da azul e branco em frente a nossa casa, horas antes do desfile, era pura emoção. O bairro em peso participava daquele momento grandioso, cantando o hino da escola; já nos primeiros versos, o amor dos brincantes e simpatizantes transbordava das palavras: “Ah, meu Caiari, minha vida...”

Os reveillons no Caiari eram inesquecíveis. À meia-noite, as famílias saíam de suas casas e se cumprimentavam nas ruas: abraços, apertos de mão, votos sinceros de felicidade. Mas o tempo é implacável... Tudo isso ficou perdido em um passado distante. Hoje, esse Caiari só existe na nossa lembrança e aqui dentro do peito da gente que cultua sua doce memória. Fechando os olhos, dá até para ouvir as brincadeiras, a bateria da escola, nossos pais nos chamando... Já é tarde. Muito tarde. É hora de voltarmos ao presente.
Ficamos órfãos de você, Caiari.
 

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Fonte: Fonte: Sandra Castiel - [email protected]
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