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Gente de Opinião

Sandra Castiel

O TITANIC DO BAIXO MADEIRA


Rondônia do passado era um território muito isolado; só se tomava conhecimento do que acontecia no mundo pelo rádio. Tudo era longe e as mercadorias vendidas pelo comércio local demoravam a chegar a Porto Velho e a Guajará Mirim, os dois únicos municípios de então.

Se a distância dos grandes centros já era problema para os moradores de Porto Velho e de Guajará, imagine o leitor como viviam os ribeirinhos e os moradores da zona rural.

Os comerciantes das localidades ribeirinhas costumavam abastecer suas tabernas (pequenas casas que vendiam enlatados e variedades) com mercadoria comprada nas lanchas que percorriam todo o Baixo Madeira fornecendo alimentos e outros produtos. Nessas localidades, a personalidade mais importante do lugar costumava ser o padre, que atuava como juiz, conselheiro, professor etc.    

Em São Carloshavia um padre que além de exercer junto à população todos esses papéis era muito falante e se intrometia nos assuntos pessoais dos paroquianos.

Um dia o padre veio a Porto Velho e adquiriu um megafone, a última novidade em tecnologia do comércio local. Então, quando havia arraial no largo da Igreja, o padre lançava mão de seu megafone para anunciar as vendas e para dar bronca nos paroquianos. Assim, em pleno arraial, disparava pelo megafone: “Atenção, dona Sebastiana! Cuide de sua filha Doralice que ela está de segredinho com um homem casado, atrás da barraquinha de pescaria. O homem é o marido da dona Dininha, que não pôde vir ao arraial porque está doente. Fique de olho! Cuidado com pecado mortal, minha gente, o diabo está solto!”

E assim a vida seguia em São Carlos, no Baixo Madeira.

Um dia apareceu por lá, não se sabe de onde, um homem conhecido como Murupi. Alto, pele bronzeada do sol da Amazônia, atlético, sorriso franco, o homem era uma tentação para a mulherada; talvez isso explicasse seu apelido, porque afinal de contas “murupi” é um tipo de pimenta da região. 

Murupi era comerciante e possuía uma beleza de lancha; não era grande, mas tinha bom motor, bom acabamento e um nome interessante escrito em letras vermelhas e garrafais sobre a pintura branca da embarcação: TITANIC.

Não demorou muito, e o povo do lugar já sabia quando TITANIC estava chegando, pois Murupi atraía a freguesia com seu megafone comprado em Manaus, portanto mais novo e mais poderoso do que o megafone do padre: “Atenção pessoal! Titanic está atracando com muita novidade! Tem corte da zona franca para as damas fazerem lindos vestidos! Tem rádio moderno para os cavalheiros ouvirem o jogo de futebol! Brinquedos a pilha para a criançada!

Além de deitar falação pelo megafone, Murupi trazia na embarcação um toca- disco com caixas de som. Sua chegada era ouvida de longe, por causa da música alta que agitava o lugar; as moças ficavam inebriadas pelo carisma de Murupi. Aliás, havia quem falasse que Murupi era boto, tal o seu mistério e encanto; havia também quem falasse que ele era filho de boto e herdara do pai aquele ar sedutor. 

Ocorre que o padre sentiu-se incomodado com a música alta e enciumado com a atenção exagerada dispensada a Murupi; afinal as paroquianas passaram a cercar o homem de cuidados: umas levavam-lhe galinha ensopada para o almoço; outras ofereciam refresco de cupuaçu, além de pupunhas com café quentinho. Enfim, Murupi tornou-se querido por toda a população do lugar. O padre já havia pedido que parasse com a música alta, que parasse de se exibir às moças, mas o homem não obedecia. Então, o padre tomou uma decisão e resolveu acabar com aquilo de vez.

Um dia, quando a Titanic despontou no horizonte, ponto branco e minúsculo na imensidão barrenta do Madeira, o padre, munido de seu megafone (àquela altura, já rouco de tanto uso), esperou Murupi atracar a lancha e desembarcar fazendo a algazarra de sempre. O padre estava furioso; o suor cobria-lhe o rosto rosado e escorria-lhe no corpo sob a batina preta.

Assim que Murupi subiu o barranco, ouviu do padre, no megafone rouco, um sermão em tom de ameaça: não poderia mais ligar seu toca-disco enquanto estivesse por ali; não poderia mais ficar desfilando no meio dos moradores, exibindo-se para as mocinhas, e muito menos aceitando presentes. Se continuasse com aquele comportamento, não ia dar certo, ia se arrepender; palavra de padre.

Murupi achou aquilo um despautério; reagiu, dizendo uns desaforos ao padre: falou que continuaria, sim, com seu trabalho; afinal, só sabia trabalhar daquele jeito, tornando-se amigo da população; os incomodados que se mudassem, ora!

O padre, furioso, partiu pra cima do rapaz, e chegaram às vias de fato. Até que um grupo de homens apartou a briga e foi cada lutador pro seu lado. Acalmada a contenda, o padre advertiu a população através de seu rouco megafone: ninguém poderia mais aproximar-se daquele homem, afinal, ele era o próprio demo, o satanás disfarçado de gente.

Depois que o sol se pôs, e o lugar foi tomado pela penumbra, Murupi deitou-se em sua rede atada na popada lancha; acendeu um cigarrinho e se deixou estar, contemplando o céu estrelado e pensando na vida. Todos haviam sumido. Estava só.

Foi então que avistou, subindo a escadinha da embarcação, a silhueta miúda de dona Santinha, a beata mais fervorosa do lugar. Solteirona, agasalhava no peito, sob as vestes pudicas e as fitas consagradas de filha de Maria, uma tórrida paixão pelo dono da Titanic, embora vivesse abafando essa atração arrebatadora; uma atração que lhe arrepiava a pele inteira, deixava-lhe o corpo em brasas e lhe tirava o sono. 

Dona Santinha contou ao rapaz que o padre, após a briga, dirigiu-se ao altar e, aos gritos, rogou-lhe uma praga terrível: Murupi havia de desaparecer dali pra sempre! A ira do Altíssimo cairia sobre ele de tal modo que jamais alguém teria notícia daquele homem; jamais alguém poderia dizer se estava vivo ou morto.

A beata terminou a narrativa em lágrimas. Murupi, grato pela lealdade, olhou a mulher nos olhos, soltou-lhe cuidadosamente os cabelos presos, e beijou-lhe apaixonadamente a boca; a mulher, que tinha quarenta anos de idade, pela primeira vez deitou-se com um homem. Horas depois, ainda sob o impacto do sucedido, dona Santinha deixou sorrateiramente o Titanic, esgueirando-se por entre as sombras da noite.

Assim que a passarinhada anunciou o começo de um novo dia, Murupi partiu daquele lugar; tinha pressa: não conseguia esquecer a praga do padre. 

Bateu à porta de uma benzedeira da região, e dela ouviu uma notícia terrível: “Meu filho, tenho reza pra tudo, menos pra praga de padre; contra isto não tem reza não. Arruma uma imagem de São Miguel Arcanjo, o santo que espanta o mal, quem sabe ele não ajuda? Vai com Deus, meu filho.” Dito isso, despachou Murupi e foi cuidar da vida.

Depois de amargar algumas horas com as palavras da benzedeira na cabeça, Murupi partiu pra Porto Velho, onde percorreu vários locais atrás de uma imagem de São Miguel Arcanjo; não encontrou. A busca prosseguiu em Manaus; em vão. Foi então que Murupi decidiu viajar até Belém; iria ao fim do mundo se preciso fosse, queria se proteger contra a praga do padre.

Em Belém, já havia percorrido igrejas e lojas, não encontrava nada. Até que, desanimado, andando a esmo pelo VER-O-PESO, avistou uma barraca com algumas imagens de santos; uma delas destacava-se pelas belas asas: era São Miguel Arcanjo. A imagem era enorme, tinha mais de metro; comprou-a assim mesmo. No mesmo dia seguiu com ela para Porto Velho; mas antes, teve o cuidado de fixar a enorme imagem de São Miguel Arcanjo na proa do Titanic; ficou uma beleza!  Era um verdadeiro abre-alas alado, o santo que o livraria de todo mal.

Foi assim que Murupi, triunfante, empreendeu o caminho de volta a São Carlos. Muitos dias depois, quase chegando, ligou o toca-disco, e os moradores avistaram um ponto branco despontando no horizonte da imensidão barrenta do Madeira: era o barco Titanic que voltava em todo seu apogeu, trazendo à frente a imagem poderosa de São Miguel Arcanjo.

O tempo estava muito quente, sem chuva, sol a pino. Subitamente o sol desapareceu, um grande raio estalou nos céus, e um banzeiro de proporções gigantescas levantou as águas do rio, assustando os moradores de São Carlos, que presenciaram a cena.

Do alto do barranco, esperando a chegada da Titanic, o povoado inteiro avistou a imagem de São Miguel Arcanjo tombar atingida pelo poderoso banzeiro, juntamente com a lancha, que emborcou e foi tragada rapidamente pelas águas profundas e revoltas do Madeira.

Desde então nunca mais se teve notícias de Murupi por aquelas bandas. Viveu ou morreu?  Ninguém sabe. O corpo não foi encontrado, e o Titanic ficou a repousar para sempre no fundo do rio.  O certo é que São Miguel Arcanjo jogava mesmo era no time do padre... 

* O conteúdo opinativo acima é de inteira responsabilidade do colaborador e titular desta coluna. O Portal Gente de Opinião não tem responsabilidade legal pela "OPINIÃO", que é exclusiva do autor.

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