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Sandra Castiel

O DOMINGO EM QUE MORDI JESUS


O DOMINGO EM QUE MORDI JESUS - Gente de Opinião

Domingo era um dia mágico na Porto Velho de minha infância. A cidade amanhecia com preguiça. Também, pudera, acordava-se muito cedo àquela época. Nós, as crianças, mal conseguíamos dormir e ansiávamos para que o dia  clareasse, afinal, era domingo... Levantávamos com os galos cantando - sim, havia galinheiros nos quintais, e os sinos da catedral chamavam em tom festivo para a primeira missa da manhã. E a primeira missa era às cinco horas!

Católicos? Não éramos. Aliás, não seguíamos nenhuma religião. Meu pai pertencia a uma família judaica, daquelas que faziam jejum, respeitavam o yon kippur etc. e praticavam todo o ritual do judaísmo. Mas meu pai era diferente. Não seguia nada. Dizia para a mãe e os irmãos que estava jejuando, enquanto se empanturrava das comidinhas de sempre. Minha mãe, de origem católica, costumava contar que recebera bênçãos especiais de um bispo em Belém, para justificar a união com meu pai, já que não pôde se casar no religioso; casaram-se apenas no civil. Numa época em que quase tudo era considerado pecaminoso, unir-se a um judeu soava estranho e suspeito; até hoje desconfio da história das bênçãos do bispo.

Como ninguém ia à igreja regularmente em nossa casa, com exceção de uma das irmãs que estudava em colégio salesiano, eu morria de vontade de ir. Achava o máximo do requinte mulheres com véus rendados na cabeça, terços de madrepérola entre os dedos, e crianças que carregavam uma espécie de missal branco cuja capa trazia uma pequena cruz dourada. Certamente eu, que devia ter uns oito anos, queria ser uma daquelas crianças. Consegui comprar um véu com o prestimoso auxílio da empregada de casa, que, comovida, interpretou o desejo como um sinal divino.  Embora não fosse de renda, já que só havia de filó no comércio local, para mim, passou a ser a peça mais valiosa do armário àquela semana.  Guardei-o cuidadosamente e esperei o domingo chegar.

Estudávamos, as filhas mais novas, no grupo escolar que ficava ao lado da catedral. Na saída da escola, eu não resistia à atração que o ambiente católico exercia sobre mim. Diariamente, atravessava o adro e entrava na igreja. Examinava cuidadosamente o espaço e ficava impressionada com as imagens: santos de olhar perdido e anjos alados que combatiam o mal. Velas acesas iluminavam calidamente o espaço principal. No fundo do salão, no altar, ficava o objeto maior de minha curiosidade: o sacrário.

Já ouvira das coleguinhas que ali, naquela espécie de casinha com uma pequena porta, ficava a hóstia, o corpo de Cristo. Na comunhão, não se podia mordê-la, era sagrada, diziam, poderia sangrar. Aquela revelação me fascinou. Durante a missa, as meninas da vizinhança entravam na fila para comungar; todas comungavam menos eu.  Passei, então, a me sentir excluída e a considera a situação inaceitável.  Cansara de ouvir que era preciso fazer a primeira comunhão etc. Daí a decisão íntima e irrefutável de comungar no próximo domingo. Ainda mais agora que tinha meu próprio véu, ora! ...

A noite de sábado fora longa. Nem sei se consegui dormir. Mal pude esperar pelo toque alegre dos sinos avisando aos fiéis: a-mis-sa-vai-co-me-çar-a-mis-sa-vai-co-me-çar! Era a primeira chamada. Pulei da cama e troquei de roupa rapidamente. As outras irmãs permaneceram dormindo. Sai devagarzinho, sem que ninguém da casa percebesse. Vestida com a roupinha domingueira e com meu véu de filó branco nas mãos, parti determinada em direção à catedral.

Não havia viva alma na rua àquela hora da manhã. Aliás, ainda estava meio escuro e a madrugada era fria. Apressei o passo e fui mesmo assim. Na porta da igreja, avistei as coleguinhas da vizinhança e juntei-me a elas. Começou a missa, e minha expectativa era grande. As mãos suavam à medida que se aproximava a hora da comunhão. Finalmente, iniciaram os cânticos que acompanhavam o ritual. Vozes esganiçadas de mulheres velhas misturavam-se às infantis. As orações em latim, na voz do padre, e o cheiro e a fumaça de incenso provocados pelo movimento do turíbulo tornavam o ambiente mágico. Todos cantavam fervorosamente, quebrando o silêncio da madrugada:   

 

 Jesus Cristo está realmente

De noite e de dia

   Presente no altar

              Esperando que cheguem as almas

    Para visitar

 

Pronto. A fila começava a se formar. O coroinha, paramentado, acompanhava o padre segurando uma espécie de bandeja que colocava sob o queixo das pessoas que iam comungando. De véu na cabeça, entrei na fila e passei despercebida. Meu coração transformara-se em uma bomba enlouquecida dentro do peito. Era agora ou nunca. Assim, quando chegou minha vez, recebi a hóstia. Imitando as outras pessoas, uni as mãos pequenas sobre o peito e, compenetrada, voltei, vagarosamente, para o banco onde estava antes. Enfim conseguira... Foi então que me dei conta de algo aterrador: o corpo de Cristo colara-se no céu da boca e entre os dentes. E agora? Como eu poderia preservar a integridade daquela massa sagrada, engoli-la inteira, se ela estava grudada?

Foram momentos terríveis!... Entrei em uma espécie de pânico e fui tomada por um enorme sentimento de culpa. Podia até ouvir as vozes dos santos e anjos alados que combatiam o mal a acusar-me aos gritos:  - Quem mandou comungar sem fazer a primeira comunhão? - Quem mandou sair às escondidas, sem autorização da mãe e do pai?...  Meu Deus!... O mundo ruíra aos meus pés. O pior é que só havia um jeito de resolver a situação: mastigar. Foi nessa hora que uma das coleguinhas atentou para a irresponsabilidade do inocente gesto e, de dedo em riste, proferiu a implacável sentença: - Pecado mortal! Isto é pecado mortal!  Comungaste sem confessar! Se morreres, tua alma vai queimar no fogo do inferno!

Trêmula, deixei a igreja às pressas, carregando o peso do mundo e até do pecado original sobre meus frágeis ombros de criança. Enquanto corria de volta para casa, pensava na loucura que havia cometido: além de comungar sem ter sido absolvida pela confissão, ainda havia mordido o corpo de Cristo... Mas essa parte da história, só eu sabia.

Minutos depois, assim que me sentei à mesa para o café da manhã com meus pais e as seis irmãs, fui contagiada pela alegria que reinava em meu lar, e não pensei mais no assunto.  Afinal, era domingo, dia de ir para o sítio.
 

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Fonte: Fonte: Sandra Castiel - [email protected]
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