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Sandra Castiel

MEMÓRIA


 
Ao longo de minha existência, desenvolvi a convicção de que o alimento mais precioso para a alma humana é a memória. Não me refiro apenas à memória utilitária, à memória recente, àquela que nos traz à mente, de pronto, dados práticos e indispensáveis à nossa vida, como número de telefone, endereço, registros de documentos etc.. Refiro-me àquela que constitui nossa bagagem afetiva, àquela que não permite que nos percamos de nós mesmos nos momentos de crise, de solidão profunda. A criança sapeca que fomos em passado remoto ainda existe em nós; o jovem cheio de sonhos não realizados, que acreditamos ter deixado para traz, também ainda existe em nós; tudo isso permanece nessa bagagem absolutamente individual e subjetiva, que é a memória.

“O presente não me interessa” - diz o escritor americano James Ellroy, literato obcecado pelo cenário de uma Los Angeles do passado, um passado que tenta reviver em suas tramas policiais, mantendo-se literalmente distanciado de tudo que a modernidade oferece: computador, telefone celular, televisão, revistas e jornais da atualidade.
Embora à margem desse rigor doentio, normalmente valorizamos menos o presente, não nos damos conta de que no futuro ele fará parte de nossa bagagem individual e nos lembraremos dele, por amargo que seja, com uma ponta de melancolia; o passado é irremediável.

Uma experiência significativa inspirou-me esse tema, para iniciar a sequência de crônicas que pretendo escrever semanalmente aqui. Dia 25 de junho, participei de um programa de rádio intitulado Porque hoje é sábado . O assunto em pauta era uma homenagem aos professores de antigamente, àqueles que trabalhavam árdua - porém, prazerosamente - nas escolas públicas de Rondônia.

Juntos, todos nós que ali estávamos na bancada - Viriato Moura, Anisinho Gorayeb, Maria da Paz, Ivo Feitosa e eu - , mergulhamos fundo no passado, esmiuçando, no recôndito de nossas mais remotas lembranças, rostos e nomes de mestras e mestres que fizeram parte de nossa vida escolar e da história da educação em Rondônia.

Aos poucos, o já acanhado espaço do estúdio de rádio tornou-se insuficiente para comportar a pequena multidão de antigos professores, que, saídos de nossas lembranças e das lembranças dos ouvintes que ligavam para o programa, faziam-se presentes ali. Esses professores vinham dos mais diversos lugares, quase podíamos tocá-los, eram tão reais!... Os da cidade, éramos capazes de vê-los, entusiasmados, nas salas de aula do Grupo Escolar Barão do Solimões, do Grupo Escolar Duque de Caxias, da Escola Normal Carmela Dutra, da Escola Samaritana, do Colégio Getúlio Vargas, do Colégio Castelo Branco, da Escola Nossa Senhora das Graças, do Colégio Murilo Braga, do Colégio Estudo e Trabalho e de tantos outros tradicionais locais de ensino de Porto Velho que nos fogem à memória. Todos os professores, sem exceção, vestidos de azul e branco -  conforme a regra da época. Também de azul e branco, do alto das barrancadas do Baixo Madeira e das pequenas povoações da zona rural, os heróicos mestres e mestras daquelas longínquas paragens, diante do singelo apelo, enriqueceram com a sua lembrança a homenagem prestada pelos idealizadores do programa de rádio.

Várias horas depois de acabada a função, as lembranças dos professores e da escola de minha infância e juventude ainda permaneciam bastante vívidas em minha mente: o toque do sino do grupo escolar; a entrada; o hino cantado solenemente no pátio; a professora adentrando a sala de aula, e os alunos perfilados, ao lado das carteiras, em sinal de respeito; a oração antes de iniciar a atividade do dia; o recreio; a merenda preparada com o leite Aliança para o Progresso...

Tudo isso se misturava às minhas lembranças como jovem mestra: meus pequenos alunos do Duque de Caxias, enfileirados e felizes; as cantigas que costumávamos cantar, para alegrar-lhes a infância; os teatrinhos improvisados na classe, os fantoches -  recursos infalíveis à época, para facilitar a aprendizagem dos conteúdos; as reuniões na sala dos professores... Enfim, naquele dia, acredito que reiterei intimamente a dimensão e a importância de se cultivar a História.

Estou certa de que esse encontro no programa de rádio proporcionou-me uma grata constatação: o banalizado conceito de que Rondônia é terra de ninguém, sobre o qual tanto se ouve lá fora atualmente, é um equívoco: Rondônia tem, sim, sua própria gente, seus próprios filhos (naturais e adotados), sua própria família. Todos nós que amamos Rondônia, cultivamos sua cultura e reverenciamos aqueles que construíram sua história, fazemos a identidade de Rondônia.

Viriato Moura, Anisinho Gorayeb e Ivo Feitosa, entre outros, merecem nossa admiração e reconhecimento pelo trabalho contínuo em prol da cultura rondoniense; um trabalho que não acontece apenas aos Sábados. Portanto, há que se guardar, todos os dias, carinhosamente, na memória.

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Fonte: Fonte: Sandra Castiel -
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