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Sandra Castiel

CÉUS DE RONDÔNIA


                                                                            
O ano era 1989. Agosto em Porto Velho costuma ser um mês muito quente, sobretudo durante o dia. Eram quatro horas da tarde e senti que havia alguma coisa errada com minha respiração; o ar parecia pesado, difícil. Estaria eu tendo um mal súbito? Então vagarosamente, levantei-me da escrivaninha onde corrigia trabalhos escolares e atravessei a sala em direção à saída. Abri a porta que dava para a varanda de minha casa e contemplei aquilo que considerava um pedacinho do paraíso: o meu jardim.

Os longos anos de cuidados diários transformaram meu jardim em um espaço especial. É verdade que ele não era extenso, mas as espécies cuidadosamente escolhidas para cada cantinho ampliavam visualmente o terreno, causando a impressão de que era maior: fícus, dracenas, agaves, exórias, musaendras, crótons, costelas-de-adão, folhagens nativas, flores rasteiras...  Enfim, o pequeno conjunto arquitetônico de formas e cores naturais, circundado por uma forração de hera ao longo de todo o muro, imprimia personalidade e beleza ao ambiente. Algumas pessoas não gostam da hera porque ela retém orvalho e gotinhas de chuva. Eu gosto dela exatamente por essa característica; pena que, hoje, isso represente uma ameaça à saúde: não se deve ignorar um horror como a dengue.   

Ao lado da casa, no espaço da garagem, mandei erguer um caramanchão de faveira- ferro, madeira que, como dizia meu pai, é tão forte quanto uma coluna de concreto. A intenção era que buganvílias, trepadeiras floridas de variadas matizes, plantadas e cultivadas cuidadosamente ao pé do caramanchão, entrelaçassem-se às vigas da madeira, subissem e formassem uma cobertura natural. A espera foi longa, mas o resultado foi o esperado.

No quintal da casa, onde o espaço era um pouco menos acanhado, dei preferência às fruteiras, embora de pequeno porte: mamoeiros, cajueiros, um pé de carambola, coqueiros e  palmeiras ornamentais.

 Ao longo do tempo, a natureza encarregou-se de retribuir as numerosas vezes em que, nos anos oitenta, levantei de madrugada (dia sim, dia não, hora em que a CAERD mandava água para meu bairro), a fim de – mangueira em punho e feliz da vida - molhar cada pedacinho do quintal e do jardim. Não fosse essa providência radical, minha delicada plantação não resistiria às tardes demasiadamente ensolaradas e aos longos períodos de estiagem de nossa região. Todo esse cuidado valeu a pena, pois  as árvores e as plantas  tornaram-se majestosas: havia frutos, flores, folhagens e sombra.

 Nessa época, nossa capital ainda apresentava, no próprio perímetro urbano, áreas consideráveis de vegetação nativa, como babaçuzeiros, castanheiras, embaubeiras, entre outras tantas árvores  resistentes ao período de chuvas escassas.

 Mesmo no estio, as aves da região matavam a sede, na orvalhada que a madrugada, zelosa, cuidava de depositar caprichosamente sobre as folhas.  

Durante muitos anos, ao entardecer, dezenas de passarinhos procuravam as árvores e as palmeirinhas de meu quintal. Sem a menor cerimônia, rodopiavam festivamente em torno delas e acomodavam-se entre os galhos. Algumas espécies chegavam agrupadas em pequenos bandos; outras, aos pares; outras havia que apareciam sozinhas. O fato é que, religiosamente, buscavam o quintal da casa na hora do sol se pôr: rolinhas, sanhaçus, peitos-roxos e pipiras eram as mais frequentes. Não raramente, surgiam também uns pássaros maiores, de belo canto, cujo nome desconheço. Sei apenas que diariamente eu permanecia ali, imóvel, na hora do pôr do sol, reclinada em uma espreguiçadeira, contemplando aquele balé festivo sob os céus límpidos de Rondônia, deleitando a alma com a cantoria barulhenta da passarinhada, agradecendo ao Criador a benção daquele momento mágico após um dia de trabalho.

As circunstâncias da vida nos conduzem para longe dos lugares e das pessoas que amamos. Após uma longa temporada fora, eis-me de volta ao lar, naquela tarde quente e abafada do mês de Agosto de  1989.

Atravessei o jardim e abri o portão da casa em direção à calçada. Ali  pude sentir que o ar parecia realmente mais pesado; havia uma fumaça densa, e o horizonte, assim como o próprio céu, apresentava um estranho tom avermelhado. Meus pés descalços arderam em contato com a alta temperatura do chão cimentado e tocaram alguma coisa que identifiquei com certa estranheza: cinzas!...

Pelo volume,tive a impressão de que eram resíduos provenientes de grande combustão. Observei que as calçadas das casas vizinhas também estavam cobertas de cinzas e fuligem... E o sol estava causticante, e a atmosfera parecia mais e mais carregada.

Foi então que avistei, no asfalto escaldante, inerte, a delicada silhueta de um passarinho: era um peito-roxo, que agonizava sufocado pela fumaça das queimadas.

Naquele momento, fui tomada por um sentimento de indignação tão intenso que jamais imaginara ser capaz de sentir. Nada parecia mais importante do que aquela cena em  minha vida...

Só conseguia pensar na mata queimando, no fogo devastador, na fumaça assassina da flora e da fauna... Invadindo!... Sufocando!... Matando!...   Só conseguia pensar na imagem dos céus de Rondônia em brasas...

 Os céus de Rondônia...  Outrora decantados pelo ideal dos pioneiros, agora maculados pela ganância aventureira, pela voracidade que engole tudo, letal como uma tormenta:

  • “E o remoinho vai, pelas terras em fora, engrossando cada vez mais, pelo meio da mata... roncando, torcendo as garrancharias, que estralejam como se um fogo  invisível  e violento as comburisse!...”

Só conseguia pensar nos animais acuados pelas chamas... Só conseguia pensar na triste figura das árvores carbonizadas, com seus  galhos secos e negros apontando para o céu, metáforas  da morte, cadáveres  da mata  exuberante...  

Quanta saudade das palmeiras de minha infância e juventude em Porto Velho!...

Sou do tempo das pupunheiras, dos açaizeiros, dos buritizeiros, dos pés de murici e de tucumã... Todos por perto! ...

 Sou do tempo das fruteiras frondosas, das ingazeiras, das azeitoneiras, das jaqueiras, das mangueiras, dos abieiros, dos pés de uxi e marirana, das goiabeiras, dos araçazeiros e dos pés de cajarana... Todos por perto! ...

 Sou do tempo dos Banhos, balneários com imensos igarapés de água límpida, que faziam nossa festa aos domingos. Sou do tempo das cachoeiras - do Samuel, de Santo Antônio e do  Teotônio...

Sou do tempo em que a natureza de Rondônia era sua própria identidade...

Por tudo isso, considerei inaceitável atrair populações de plagas distantes, para queimar a  mata e destruir ecossistemas, em nome de um pseudo-ideal desenvolvimentista.  Por tudo isso, não consigo fazer apologia de um progresso que devastou, que maculou a natureza, que extinguiu povos indígenas, que aniquilou a vida.

Em nome da natureza saqueada, prefiro celebrar os céus de Rondônia como antigamente: moldura que no passado engalanou uma diversidade natural exuberante! Um céu sempre azul, cristalino e sempre puro, cenário paradisíaco que encheu de orgulho nossos pioneiros e que representou a vida e a liberdade à grande diversidade de aves, inclusive ao grande número de passarinhos que visitava nossos quintais  ao  pôr do sol.

A propósito: hoje vivo no mesmo bairro, em Porto Velho. Da extensa área  verde que havia no local, apenas algumas solitárias castanheiras, uns poucos pés de babaçu e algumas embaubeiras sobrevivem  em volta do que sobrou do igarapé  conhecido como Sem-fundo. Se, no passado, esse igarapé de água límpida servia de balneário para a criançada, hoje, é corredor de esgoto a céu aberto, e o odor é insuportável.

E toda essa degradação acontece há décadas sob os Céus de Rondônia.

Que Deus nos proteja!...

Que Deus proteja o que restou da natureza desta terra! ...

 

*Herman Lima, Tijipió e Garimpos.


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Fonte: Fonte: Sandra Castiel - [email protected]
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