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Sandra Castiel

A MISTERIOSA DAMA DO BAIXO MADEIRA


A MISTERIOSA DAMA DO BAIXO  MADEIRA - Gente de Opinião

Domingos era um caboclo ribeirinho, nascido na ilha de Assunção, no baixo Madeira. Ali cresceu e ali vivia com seus pais, quando conheceu Zefinha, uma morena brejeira e recatada, nascida e criada em Ilha Nova, também no baixo Madeira.

Para ver a moça por quem se apaixonara, Domingos andava uma hora a pé mata adentro. A caminhada era árdua, mas ele achava que valia a pena, afinal Zefinha era a cabocla mais bonita daquelas paragens. Além de formosa, era estudada, dava aula para as crianças de Ilha Nova na igreja do lugar. O sacrifício, portanto, era até pequeno─Pensava Domingos, no instante em que abraçava a morena de pele macia, cabeleira ondulada e perfume de flor.

− Não que implicasse com o namoro do filho caçula com a professora de Ilha Nova... −Matutava Dona Toninha, com seus botões, agachada à beira do rio, enquanto colocava a roupa ensaboada para quarar ao sol. Só tinha era preocupação de mãe, afinal o filho andava a pé uma hora, no meio do mato, para encontrar a moça. Bem que uma vez ou outra ela podia vir até Assunção, ora. É verdade que viera uma vez com a família para o almoço, quando Dona Toninha matou três galinhas gordas, das melhores que tinha. −Como hoje é sábado ─ Pensava ─, lá vai o Domingos de novo para Ilha Nova!... Seu coração de mãe não se aquietaria até ele voltar. E se fosse picado por uma jararaca ou uma pico de jaca? Cobra venenosa era o que não faltava por ali.

A data era 22 de Novembro de 1989.

Para não causar preocupação à família, sobretudo à mãe, que reclamava de suas idas à Ilha Nova, Domingos decidiu sair cedinho, para voltar ainda com dia claro. Afinal, até os irmãos já andavam reclamando de seu namoro, pois isso estava tirando o sossego de Dona Toninha e Seu Francisco.

Assim, depois de um banho demorado, Domingos vestiu a roupa nova, perfumou-se e falou com os pais: Que não se preocupassem consigo − disse-lhes o filho. Iria cedo e voltaria antes do anoitecer. Não queria que se aperreassem, afinal conhecia bem aquele caminho, conhecia bem aquela mata, havia nascido e crescido ali − Repetia com firmeza.

Diante de tal convicção, a mãe, ainda temerosa, retirou de sua velha maleta de papelão uma antiga poronga e entregou-a ao filho, recomendando: −É bom levar isso. Tem cuidado, filho! Nosso Senhor te guarde!

Então, partiu Domingos para Ilha Nova.

Depois de uns quarenta minutos andando, procurando caminhos para pisar no meio da mata fechada, o rapaz percebeu que um forte temporal se avizinhava do lugar. Domingos apressou o passo. ─Voltar não dava mais... −Pensava, enquanto enxugava o suor do rosto. Só lhe restava seguir no rumo de seu destino.

Em Ilha Nova, a namorada esperava inquieta. Assim que avistou Domingos saindo do meio do mato, correu em sua direção. Intimamente, Zefinha agradeceu aos céus por ele estar ali, em segurança. Abraçou o rapaz e abriu-lhe a porta de casa. Foi o tempo de desabar um temporal daqueles.

Domingos passou o dia ansioso, pensando nos pais. A chuva era torrencial, não poderia voltar cedo a Assunção, como havia prometido. Lá não devia estar chovendo, sua família ficaria preocupada com sua demora. A namorada bem que tentou alegrá-lo, mas o rapaz não tirava os olhos do relógio e do céu, esperando que a chuva passasse.

A chuva parou antes do anoitecer.

Zefinha, preocupada com o namorado, insistia para que ele dormisse em Ilha Nova. Ele poderia ficar em sua casa, ela ajeitaria uma rede na cozinha, os pais dela não iriam se importar – Argumentava a moça. Era melhor do que entrar na mata hora, àquela hora, logo iria escurecer − Alertava. Mas Domingos estava decidido: voltaria imediatamente a Assunção, pois não queria mais preocupar os pais, ainda mais a mãe, que sofria do coração. Assim, retirou da pequena bolsa a poronga que sua mãe lhe dera, despediu-se da namorada e entrou na mata.

Na mata fechada, os animais silvestres começavam a se acomodar para dormir: alguns procuravam suas tocas; outros, as galhadas das árvores. Sonolenta, a passarinhada foi diminuindo o pio, até quase silenciar por completo.

Caminhando no meio do mato, na penumbra, Domingos ouvia o som estridente dos grilos, das cigarras e o coaxar dos cururus. De vez em quando um arrepio percorria-lhe a espinha: era o canto dorido do Jurutaui, despedindo-se do dia, triste como um grito de dor.

Passos firmes, poronga na cabeça, o rapaz planejava chegar em casa antes de escurecer completamente. De repente, algo inusitado chamou-lhe a atenção: à sua frente, uns três metros de onde estava, numa ampla área de seringueiras, avistou a figura de uma mulher.

Corpulenta, cerca de cinquenta anos de idade, toda de preto e usando um véu também preto que lhe cobria a cabeça, a mulher estava parada no caminho. Carregava na mão direita o que Domingos identificou como um cipó espinhento, comum em árvores da região.

Ela então se dirigiu ao rapaz:

− Tu não tem vergonha, Seu Cabra? Deixar tua mãe te esperando com o coração na mão?

Antes que Domingos pudesse esboçar uma resposta, a mulher levantou o braço e ergueu o cipó com destreza. Na primeira cipoada, derrubou-lhe a poronga. O rapaz tentou correr, mas a mulher o alcançou e deu-lhe a segunda cipoada. Depois, outra e mais outra, sucessivamente, num ritmo cadenciado e com uma força descomunal.

A dor era tão intensa que o rapaz veio ao chão com todo corpo. A última coisa que lhe ficou na memória, antes de perder os sentidos, foram os gritos da mulher. A cada cipoada que dava, emitia um som estranho, idêntico ao do Jurutaui que Domingos ouvira minutos antes. Jurutaui... O pássaro encantado cujo canto parece um gemido de mulher, ou um lamento de mãe pelo filho que partiu: hu, hu, hu... Meu filho foi, foi, foi...

No momento em que voltou a si, Domingos percebeu que estava sozinho deitado sobre um folharal no meio da mata. Ao lado, sua pequena bolsa. Quando conseguiu enxergar as horas no relógio florescente, tomou um susto: Eram 23 horas!

Desesperado, levantou-se trôpego e tentou retomar o caminho de casa. Cerca de duas horas depois de andar sem parar, percebeu que estava perdido. Esgotado, encostou-se no tronco de uma castanheira e esperou o dia amanhecer.

Horas mais tarde, com o dia clareando, Domingos conseguiu encontrar o caminho de volta.

Em casa, os pais e os irmãos ficaram horrorizados com o estado deplorável de suas costas, de seu peito, de suas pernas e braços: o rapaz havia sido violentamente açoitado com um cipó espinhento e venenoso. O tratamento para curar as feridas foi longo.

Dona Toninha e seu Francisco passaram vários dias tentando identificar a estranha mulher que agredira seu filho no meio da mata. De casa em casa, os pais de Domingos procuraram insistentemente, na vizinhança e nas localidades próximas, mas não havia ninguém nas imediações que conhecesse ou soubesse algo a seu respeito. Ademais, que mulher haveria de entrar na mata de noite, para açoitar o filho de outra mãe? Só podia ser coisa de outro mundo, coisa de assombração.

Domingos não levou adiante o namoro com Zefinha. Desistiu de se arriscar andando uma hora mata adentro. Mas até hoje a história da mulher de chicote que grita igual ao Jurutaui assombra os moradores da Ilha de Assunção, no baixo Madeira. 


 

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Fonte: Fonte: Sandra Castiel - [email protected]
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