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Renato Gomez

Crônicas do Velho Porto: A rodoviária


                        Era uma mulher de aparência idosa, mas com certeza a vida sofrida lhe atribuía mais anos do que de fato tinha. Sentada em um banco de madeira ela se reclinava sobre a tela de ferro trançado da grade entre o pátio central e a área de embarque e desembarque da rodoviária. Com uma mão segurava o telefone ao ouvido e com a outra fazia malabarismo para esmigalhar um pedaço de pão e jogar as migalhas aos pombos que a rodeavam.

                        Ao telefone falava com outra mulher, a julgar pelo gênero atribuído nas palavras:

-                 É tudo culpa sua! Se eu estou aqui, assim, nessa situação...

                        Dá uma longa pausa, desaba no choro e aos prantos continua:

-                 Se você não tivesse tomado tudo que eu tinha, eu estaria bem, não estaria aqui na sarjeta...

                     Outra pausa e transtornada ela solta o pão ao chão, os pombos avançam como tubarões ao sentir cheiro de sangue, ela entrelaça os dedos da mão livre nos cabelos ressecados e os puxa à frente do rosto com violência, como se para arrancar-lhes:

-                 Sua desgraçada! Você é uma desgraçada! Eu tô na miséria, mas a amaldiçoada é você!

                       Começa a rir, às gargalhadas, como se estivesse em frenesi:

-                 É isso mesmo, você é uma amaldiçoada e por isso eu rio de você, você pode ter tudo que era meu, mas não tem a felicidade...

                  Ela bate o pé no chão, os pombos se afastam, mas permanecem à espreita vendo-a recolher o pequeno pedaço que sobrou do pão, uma vez que os pombos mais se bicaram desordenadamente na briga por uma migalha do que conseguiram alcançar a comida, se levanta e começa a caminhar em círculos e grita:

-                 Eu vou te matar! E te matar ainda vai ser pouco perto do que você merece!          Empurra um transeunte que passa olhando assustado por perto dela:

-                 Tá olhando o que? To falando com a vadia que destruiu minha vida! 

                        Mais uma vez pausa as palavras, se senta novamente e chora desoladamente. Bate a cabeça na grade repetidas vezes. Levanta-se arremessa o telefone ao chão para logo em seguida recolhê-lo. Levantou-se e foi embora, alternando as passadas ligeiras e compassadas, com tiques nervosos como coçar freneticamente o ouvido com o dedo mindinho e sacudir a cabeça de um lado pro outro batendo o cabelo ao rosto. Observei-a indo, até perdê-la de vista. Tive a impressão que toda a situação presenciada era rotineira na vida dela e dos demais transeuntes e habitantes da rodoviária da cidade, que mais parece um albergue. São inúmeros os moradores de rua que ali se abrigam para ter um teto sobre suas cabeças enquanto adormecem sem saber se a fome, a violência e as necessidades que passam vão deixar-lhes acordar.

                        Ah, já ia me esquecendo. Era mais um fim de semana que eu frequentava a rodoviária para mais uma de minhas rotineiras viagens, quando presenciei a história acima. E seria uma história “normal” (dentro dos parâmetros de nossa louca sociedade), não fosse o fato de que o telefone na mão da mulher era nitidamente de brinquedo.

* O conteúdo opinativo acima é de inteira responsabilidade do colaborador e titular desta coluna. O Portal Gente de Opinião não tem responsabilidade legal pela "OPINIÃO", que é exclusiva do autor.

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