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Gente de Opinião

Paulo Saldanha

CEM ANOS DE INTEGRAÇÃO, COMUNHÃO E BOA COMPANHIA


Gabriel Garcia Márques nos legou CEM ANOS DE SOLIDÃO ao narrar a vida de um casal, José Arcadio Buendía e Úrsula Iguarán (e seus descendentes), personagens do legendário livro ambientado numa aldeia, chamada Macondo. Úrsula, uma mulher forte, manejava ardilosamente para gerenciar a família e viveu mais de 115 anos.

Versa oCEM ANOS DE INTEGRAÇÃO, COMUNHÃO E BOA COMPANHIA - Gente de Opinião livro sobre o tema solidão, conduzindo-nos à interpretação de que os núcleos familiares instalados em Macondo, geração a geração, estariam fadados ao isolamento, a “fartar-se”, como se fosse possível o sadismo, “comprazendo-se” de desamparo, de desarrimo.

A Estrada de Ferro Madeira-Mamoré, a exemplo da família Buendia/Iguarán, nasceu, como ideia no século XIX e firmou a sua construção em 1907, com conclusão em 1912, portanto já no século XX.

Hoje, 30 de abril, fará cem anos, se considerarmos a data da conclusão da ligação oficial entre Porto Velho e Guajará-Mirim, quando o último dormente e o grampo “de ouro” (?) foram fixados. Retirava-se o lugar de um histórico despovoamento, porque ermo, negligenciado, renegado e desprezado, sem outras ligações senão os rios, desde que cachoeiras e tombos fossem contornados. Buscava-se a integração como proposta.

Em primeiro de agosto daquele ano foi ela inaugurada oficialmente.

Em face de sua ação cívica-econômica-social agiu como fonte de vida, berço em cujo regaço se embalava o progresso, origem de tantas afirmações cidadãs de um povo heróico, que não se entregava; líder de uma grande família: os habitantes das terras da área geográfica dos rios Guaporé, Mamoré e Madeira. Família enorme, se contarmos com os moradores nos afluentes desses rios.

Como mãe dadivosa ninou seus rebentos, agenciando a proteção, a manutenção, o crescimento humano de seus filhos. Do seu colo, nos chegavam o alimento que nutre, os livros que ensinam, melhor qualidade de vida que o combustível oferece, as correspondências que emocionam, as noticias que informam e atualizam, o tecido que veste, o cobertor que aquece, o remédio que salva, enfim, a esperança que se busca desesperadamente na fé...

A Ferrovia Madeira-Mamoré não viveu tanto, quanto Úrsula; faleceu aos 60 anos de idade, em 1972, para ser preciso em 10 de julho de 1972. Muita gente chorou a sua morte. Naquele dia, como se tivessem combinado, os maquinistas fizeram ecoar os apitos dos trens que pareciam reproduzir gritos de angústia, desespero, desencanto, desgosto, de agonia...

Imaginava-se que seus filhos, em cada casa, badalavam um sino surreal anunciando pelo pranto, a partida de um ente muito querido, sugerindo que a morte confirmada poderia ser um declínio moral e econômico, pela falência de um órgão tão vital, dando a entender, numa linguagem figurada, que um tipo de energia, uma modalidade de ação, um toque especial de iniciativa e de criatividade estavam se apagando, ante a aflição que se descortinava, pela perda da ferrovia, que nem na vertente turística poderia ser reanimada e reerguida.

Assim como José Arcadio Buendía, que implantou Macondo, a Ferrovia fundou Porto Velho, Jacy-Paraná, Jirau, Mutum-Paraná, Abunã, Vila Murtinho, Yata e Guajará-Mirim, no Brasil e promoveu as mudanças rumo ao progresso e ao crescimento, em GuayaraMerin, Cachoeira Esperança, Trinidad e Riberalta, do país irmão, a Bolívia, para que também pudessem florescer e se multiplicar. As vilas ao longo dos rios Mamoré e Guaporé, e seus tributários, saíram do abandono e puderam vicejar.

Princípios e fundamentos de física e mecânica (além de outros) por ela foram utilizados para implantar-se, instrumentos de que Buendia se valera para empreender, segundo o romancista vitorioso que, compondo o perfil de seus personagens, deu vida a sua narrativa.

Um dia, num sentido simbólico, em face das mortes ceifadas durante a sua construção, um emérito escritor a denominou como “Ferrovia do Diabo”!

Contudo, por sua grandeza histórica, terá nova denominação.

Senhores, apenas para a nossa reflexão me imponho o direito e o dever de fazer uma comparação, haja vista que a denominação Ferrovia do Diabo seria debitada aos mortos, que, para mim, jamais justificarão o terrível emblema com que tentaram injustamente marcar com tintas fortes a epopéia que foi a construção da lendária ferrovia.

Todavia, outras obras que a humanidade conheceu não tiveram idêntico tratamento e se nos referirmos aos mortos em conflitos mundiais, uma das vergonhas do homem ao longo de sua trajetória, esse qualificativo depreciativo soa injusto e pérfido.

E justifico:

A I Guerra Mundial com seus 19 milhões de mortos ficou conhecida com os nomes pomposos de “A Grande Guerra ou Guerra das Guerras";

A II Guerra Mundial, com seus 70 milhões de sangue humano derramado, permeado com o holocausto em que 6 milhões de judeus tornaram-se vítima da intolerância hitleriana e ainda com Hiroshima e Nagasaki, símbolos da crueldade, nem por isso essas duas guerras, que mataram infinitamente mais homens, crianças e mulheres, mereceram a alcunha de Guerra do Demônio".

Na Revolução Russa quando da formação da União Soviética, em que historiadores se dividem assinalando uma matança que as divergências dão conta de que entre 9 a 22 milhões de russos foram abatidos por seus irmãos líderes Lênin e Stalin, entre 1918 e 1922; contudo, jamais foi premiada com o conceito de Revolução dos diabos. Na URSS irmão matou irmão, repete-se...

Por quê a Estrada de Ferro Madeira-Mamoré, que só o bem produziu ganhou essa “trágica e nociva homenagem”?...

As pirâmides do Egito, que utilizaram mais de cem mil operários durante 20 anos, embora sem convicção um anônimo registrou que, entre 15 e 20 mil trabalhadores, escravos ou não, ali pereceram.

No Canal de Suez, cujas obras começaram em 1859 com as dificuldades que foram imensas, descritas como de autêntica escravatura, mais de 120.000 operários perderam a vida, durante a sua construção!

O Canal do Panamá, depois de um hercúleo trabalho e muita improvisação, cuja conclusão ocorreu em 10 de Outubro de 1913, dez anos após iniciado, tem o registro de que 5.609 mortos lhes são cobrados perante a história.

Nem por isso, as pirâmides do Egito, os Canais de Suez e do Panamá foram apelidados com o sadismo do injusto epíteto, que lhes diminuiria a importância chamando-as de obras macabras, projetos do diabo.

Voltemos à vitoriosa presença da Ferrovia da Madeira-Mamoré, lamentando que os verdugos, os seus carrascos, que não viviam neste espaço, esqueceram-se dos objetivos que inspiraram a sua implantação ou os desprezaram na sua torpeza, quando da tomada da decisão infeliz, condenando-a a extinção.

Todavia, como se fosse um ser humano pródigo e leal a sua terra, a Ferrovia, nos seus estertores, mesmo ultrajada, autoimolou-se e resolveu doar-se. E o fez com a magnanimidade, com a grandiosidade, com a generosidade de quem possui a alma elevada, grandeza de espírito e altruísmo... e soprou vida à rodovia que se implantava. Nenhuma mágoa se observava nas suas reações!

Como Úrsula, a prima de José Arcádio, mulher daquele empreendedor, que ficou imortalizada como batalhadora, guerreira, temperamento tão forte, focada na melhor qualidade possível de vida dos filhos, a ferrovia, qual mãe resolutamente responsável, não se entregava, e, por principio soberano, pugnava para que remédios, mercadorias, equipamentos, alimentos, passageiros e cartas chegassem aos respectivos destinos, suprindo as carências, levando boas novas e melhores condições aos destemidos pioneiros deste pedaço de chão.

E no retorno, rumo a Porto Velho, seus vagões repletos transportavam produtos agrícolas, gado, castanha, borracha, couros e ipecacuanha, resultado das ações empreendedoras eficientemente geradas aqui, na bacia dos rios Guaporé/Mamoré. E levavam ainda gente, pessoas, homens, mulheres e crianças, plenas de sonhos, carregados de esperança...

A Ferrovia, assim como Úrsula, era destemida, audaciosa e prometia viver bem mais do que efetivamente pôde viver. E por conta da omissão e da negligência tornaram-na um ser minado, enfraquecido, deixando-a morrer à míngua, por falta de oxigênio e, assim, foram matando-a por inanição. Mas ela, agonizando ainda desejava ser útil.

E doou-se...

Doou-se, entregando o sangue guardado nas suas entranhas, sangue derramado pelos homens predestinados que a fizeram construir, vencendo o medo, a dificuldade geográfica, as doenças - a febre amarela, o impaludismo e outras enfermidades – as onças, as cachoeiras, a revolta dos indígenas agredidos e expulsos de seus primitivos terrenos.

Doou-se, entregando as suas pontes de ferro, soberbamente intactas, para que automóveis, caminhões, ônibus e vans pudessem trafegar, enquanto as de concreto não as substituíssem.
Doou-se emocionada, trôpega, cambaleante, sem entender o porquê da sua prematura partida, como os pais chorosos, ainda que desesperados pela perda da sua criança, doam órgãos vitais do filhinho com morte encefálica declarada, para que outro menino possa continuar vivendo.

Doou-se entregando parte de seu corpo -o trajeto onde corriam os seus trilhos– para que a BR-425 pudesse oferecer seu tráfego.
Doou-se alienando o seu cérebro, em Porto Velho, para que abrigasse secretarias de Governo e, noutro imóvel, um museu.

Doou-se oferecendo um dos seus membros para que a Praça em Guajará-Mirim pudesse mostrar a locomotiva que a embeleza e adorna, tão impávida ali na orla do rio, no porto da cidade.

Autotransplantou-se mutilando outra parte do seu corpo,–a sua estação– e servisse de vida ao Museu da Pérola do Mamoré.

Doou-se, depois de uma decisão deletéria, danosa sob todos os aspectos, permitindo que lojas e depósitos fossem instalados no entorno geográfico, onde respirava e caminhava, desfilando através das locomotivas e dos vagões, fazendo as suas manobras.
Se as dificuldades vivenciadas pela família Buendia/Igarán foram enormes, o mesmo aconteceu com a ferrovia Madeira-Mamoré, histórias que, em parte, se confundem e se unem em cima da aspereza, vilanias, da superação, das negociatas e das ardilosas transações, que desembocam nos apuros e nas situações críticas que chegam à destruição.

Porém, diferentemente de Macondo, a cidade dos Buendia/Iguaran, relegados a cem anos de solidão, a Ferrovia ora celebrada retirou do isolamento uma área geográfica.

A Estrada de Ferro Madeira-Mamoré não morreu! Está ai aos pedaços tão viva socorrendo passageiros, agricultores, homens e mulheres do comércio, estudantes e turistas, empresas de transporte, motoristas, motociclistas, enfim, à população que demanda ao Acre e às demais cidades rondonienses, como se fosse um espírito atento, ainda que retaliado, mas, desde a sua implantação, servindo à história e aos homens e mulheres de diversas gerações.

Na comunhão com o rondoniense, faz parte da nossa alma com a sua aura multicolorida e brilhante, devidamente integrada, a nos conceder, ainda que em pedaços, a graça da sua boa e insubstituível companhia.

Mas ela, com a sua alma tão sensível, com a meiguice do olhar maternal, me encarou tão grave e terna, com os olhos lacrimejantes e desabafou:

–aquele meu sacrifício, valeu por você, por meus outros filhos e por meus netos, pelos bisnetos e tataranetos, pois este meu calvário, este meu martírio, é uma renúncia, é ação de desprendimento e amor, e uma oferenda, é meu grito de liberdade que eu doei, jamais será em vão, jamais será tardio... é a oferta, que se tornou inevitável imolação, pois é vida encurtada para que outras vidas possam prosperar.

A Ferrovia é feminina, logo sensível, delicada, afetiva e intuitiva; como a mulher que deu à luz, foi criando várias filhas, cuidando, zelando para que nada lhes faltasse, ou, que o mínimo, lhes sobrasse, fazendo verdadeiras “escolhas de Sofia”, protegendo até onde iam os seus limites, a sua esperançosa prole, representadas pelos lugares implantados, servidos a partir da sua presença, pelo menos, semanal.

Porém ela, mesmo desiludida, abandonada, assim tão despedaçada, desprezada pelo Planalto Central, porém perenemente reverenciada por mim e por tantos, beneficiários da emoção de tê-la conhecido tão exuberante e tão moça, só podemos transmitir a idéia de que a Ferrovia que doou tanta vida, tanto sangue econômico, desenvolvimento e progresso, ela, sim, mesmo sendo um instrumento do bem, é que deveria estar vivendo os seus primeiros “100 anos de solidão”...

Jamais! Jamais, “enquanto nos palpita o coração” nos curvaremos a esse abandono porque somos “sentinelas avançadas, somos descendentes dos destemidos pioneiros que nestas paragens do poente gritamos com força: Somos brasileiros”.

Ao contrário, porém, em função da honrosa e privilegiada condição de descendentes daqueles destemidos pioneiros, que a viram forte, ativa e altaneira, jamais a deixaremos ficar relegada e esquecida. Esta celebração é prova inequívoca do respeito e da devoção que a ela - a Ferrovia da integração– os rondonienses devem e precisam cultuar.

Cabe a cada um de nós lutar com raça, afinco e tenacidade para soprar sobre ela a mesma vida que ela, no passado, tanto distribuiu. É preciso agir, cobrar, gritar, espernear e focar na recuperação, ainda que parcial, da principal iniciativa sócio-econômica, no limiar do século XX, que os céus de Rondônia puderam ver, de forma soberana e altiva, porque, senhores, Valeu, Estrada de Ferro Madeira-Mamoré! Valeu Ferrovia dos homens! Valeu Ferrovia que viveu várias existências! Valeu querida Mãe dadivosa, como instrumento de integração!

Valeu Nossa Senhora da Madeira Mamoré! Valeu Estrada da Redenção! Valeu, Ferrovia da Integração! Valeu, Ferrovia da Vida! Valeu, Ferrovia dos homens! Valeu Ferrovia de Deus!

PAULO CORDEIRO SALDANHA/30 de abril/2012

 

* O conteúdo opinativo acima é de inteira responsabilidade do colaborador e titular desta coluna. O Portal Gente de Opinião não tem responsabilidade legal pela "OPINIÃO", que é exclusiva do autor.

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