Segunda-feira, 2 de junho de 2025 - 14h35
Faz 20 anos que o linguista Nilson Gabas Júnior, do Museu Paraense Emílio Goeldi, iniciava em Rondônia seu projeto de resgate da língua tupi. Ele visitava o Povo Arara, em Ji-Paraná. Desde o velho Território Federal do Guaporé, Rondônia falou essa língua que por pouco não foi extinta. O tupi está entranhado no português de maneira irrevogável.
O professor Nilson conseguia concluir sua missão em 2006, visitando os 130 indígenas (número estimado naquele período) Arara.
Por pouco essa língua não acabou, exatamente pela falta de apoio governamental e do êxito em missões das quais participam apenas altruístas iguais ao professor pesquisador Nilson Gabas Júnior. O ex-diretor do Museu Goeldi é formado em jornalismo pela PUC-Campinas, possui mestrado em linguística pela Unicamp, com ênfase em línguas indígenas amazônicas e doutorado, também em linguística pela Universidade da Califórnia, em Santa Bárbara (EUA).
Há séculos, em Rondônia, a civilização indígena reinava no interior, cuja floresta tombou entre meados dos anos 1970 e por toda década de 1980, cedendo espaço a vilas e cidades que surgiram ao longo da BR-364 (ex-BR-29), BR-429, e circunvizinhanças.
Açaí, caju, jabuticaba, maracujá...
Muitos leitores conhecem alguns termos tupi. Meu amigo cuiabano, saudoso jornalista Jorge Bastos Moreno, por exemplo, assinava no jornal O Globo, a coluna “Nhenhenhén”. Tradução: ficar falando sem parar. Nhe’eng é falar.
Chorar as pitangas – pitanga é vermelho em tupi; então, a expressão significa chorar lágrimas de sangue.
Cair um toró – tororó é jorro dágua em tupi, daí a música popular “Eu fui no Itororó, beber água e não achei”.
Ir para a cucuia significa entrar em decadência, pois cucuia é decadência em tupi.
Velha coroca é velha resmungona – kuruk é resmungar em tupi.
Dos verbos que nós temos, grande parte é tupi: socar – soc é bater com mão fechada. Bater com a mão aberta é petec, daí vem peteca. Espetar é cutuc, daí cutucar; chamuscar é sapec, daí sapecar e sapeca.
Nomes de doenças, como catapora – marca de fogo, tatá em tupi é fogo.
O significado de grande parte dos nomes de lugares só se sabe com o tupi, a exemplo de bairros de São Paulo, Capital paulista: Pari é canal em que os índios pescavam, Mooca é casa de parentes, Ibirapuera é árvore antiga, Jabaquara é toca dos índios fugidos, Mococa é casa de bocós – bocó é tupi.
Em nossa fauna e flora, o tupi aparece massivamente: tatu, tamanduá, jacaré. Até nas artes ele é encontrado – vejam o famoso quadro de Tarsila do Amaral, o Abaporu, que quer dizer antropófago em tupi.
Somente as tribos indígenas sustentaram o tupi, desde os primórdios da civilização amazônica e de outras civilizações. Até o século 17, ele estava em todo o território nacional, mas o Marquês de Pombal o proibiu, em 1758.
O trabalho do professor Nilson inclui documentação do tupi em dicionário e videodocumentário. Anteriormente, outros pesquisadores do Museu Goeldi esforçaram-se para resgatá-lo.
O esforço de salvação desse idioma, sem dúvida o que há de mais brasileiro, constitui-se uma enorme conquista para Rondônia, Amazônia e o País. No início da década de 1980, quando a Funai e as polícias Civil, Militar e Federal tinham dificuldades para retirar cerca de 80 famílias de invasores de uma área do Posto Indígena de Igarapé Lourdes (habitado pelos Arara e Gavião), o então delegado-adjunto da Funai, Amauri Vieira, recorria a Brasília.
Vieira denunciava aos seus superiores que a usurpação do território indígena fora comandada por políticos e comerciantes de Ji-Paraná.
Além do professor Nilson, outros notáveis pesquisadores se destacam no resgate linguístico, a exemplo do professor da USP, Eduardo Navarro, um dos responsáveis por conseguir fazer do tupi a língua indígena mais bem-documentada e preservada que temos.
Nossa língua original vem desde a chegada do navegador português Pedro Álvares Cabral à costa baiana. Foi a língua dos bandeirantes, de Tibiriçá e do cacique Araribóia – a língua da construção espiritual e política do Brasil.
Num trabalho inédito no Brasil, Navarro ensinou os índios Potiguar, da Paraíba, a falar a língua de seus antepassados. Ele formou professores indígenas, criou material didático para as crianças e resgatou obras escritas a partir do século 16 – incluindo-se aí o teatro, as poesias e a liturgia do Padre Anchieta.
Dos defensores e estudiosos dos Arara, Gavião, Karitiana, Namkikwara, Paiter Suruí, Uru-eu-au-au e Zoró, alinho os sertanistas: Apoena Meireles, Aimoré Cunha da Silva, Benamour Brandão Fontes, Amauri Vieira, Francisco de Assis Silva, José do Carmo Santana, o Zé Bel, Osman Brasil, e Osni Silveira.
Talvez os Arara e Gavião, tão vítimas do homem branco, não tivessem tempo de suplicar a salvação da sua língua. E não tiveram mesmo, porque migrantes brancos cercaram suas terras, o que lhes inquietava diariamente.
Já os Potiguar da Paraíba acalentaram o sonho de falar a língua de seus antepassados. O professor Navarro foi até lá, munido do aprendizado do tupi clássico, e o fez sozinho, com documentos do século 16 e 17, traduzidos e publicados.
O trabalho de difusão do tupi realizado por Navarro é feito em várias frentes. Ele criou a ONG Tupi Aqui, para ser um centro de referência e difusão da língua e da cultura indígenas; concluiu o “Dicionário da Língua Brasílica – O Tupi Antigo das Origens do Brasil”, prefaciado por Ariano Suassuna, com cerca de oito mil termos, editado pela Vozes.
A jornalista Paula Chagas, na época no extinto Jornal da Tarde, ouviu de Navarro que o tupi é importante para se entender a cultura brasileira. “O brasileiro já nasce falando tupi, mesmo sem saber. O português falado em Portugal diferencia-se do nosso principalmente por causa das expressões em tupi que incorporamos. Essa incorporação é tão profunda que nem nos damos conta dela. Mas é isso o que faz a nossa identidade nacional.
“Depois do português, o tupi é a segunda língua a nomear lugares no País. São milhares de nomes, que continuam aumentando. Além disso, a literatura brasileira não é só em português, é em tupi também. Um exemplo são as obras do padre Anchieta, que escreveu teatro, poesia lírica, músicas, catequese, tudo em tupi.”
“Gonçalves Dias quis recuperar isso com suas obras, como I Juca Pirama – que significa “o que vai ser morto” –, assim como José de Alencar que, ao escrever Ubirajara, Iracema e tantos outros livros, buscava encontrar o rosto do Brasil. A importância do tupi se faz notar em cada fala nossa”.
O Brasil tem dificuldades em lidar com línguas em extinção. Percebi essa situação no apelo que me fazia o padre Cassimiro Beksta, em Manaus, quando viajei para a divisa do Amazonas com o Acre e Rondônia, em 1981, a fim de conhecer os indígenas Kaxarari. “Você vai conhecer um tesouro da linguística.” Fora ele, o autor da única cartilha a respeito do modo de falar dessa gente.
No entanto, os Kaxarari falam uma língua da família Pano, semelhante ao idioma falado pelos Yaminawa, Kaxinawa, Yawanawa, Nukini, Katukina e Poyanawa, todos do Acre.
Eu era um dos editores do jornal Porantim. Padre Cassimiro orientou-me a desembarcar em Vista Alegre do Abunã e embarcar no lombo de um burro para chegar à terra Kaxarari, no Igarapé Azul. Fui, escrevi duas páginas a respeito deles, mas só vim a compreender melhor a diferença de troncos linguísticos quatro décadas depois.
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Com fotos de: Daiane Mendonça, Museu Goeldi e Agência Senado
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