Terça-feira, 11 de setembro de 2007 - 20h10
No primeiro artigo que produzi a respeito do livro Enganos da Nossa História, de autoria de Antonio Cândido da Silva, fiz alusão ao fato de que os erros, enganos e equívocos são intrínsecos à natureza humana e que aqueles que nos precederam também eram humanos, havendo, portanto, também cometido seus erros e enganos, inclusive o criterioso general Cândido Rondon e a autora da sua biografia autorizada, Esther de Viveiros, que trabalhou com os originais de alguns dos seus relatórios que não eram de natureza reservada. Ao introduzir tal assunto, de forma deliberada, não comentei que Antonio Cândido recorreu a autores como Manoel Rodrigues Ferreira, Esron Penha de Menezes, Yêdda Pinheiro Borzacov, Amizael Gomes da Silva, Abnael Machado de Lima e alguns outros menos regionalizados quase sempre no sentido de fazer reparos sobre as obras que produziram, respaldando muitas das suas críticas exatamente com base em trechos da obra de Esther de Viveiros.
Pois muito bem. Vamos então exemplificar como no livro Rondon Conta Sua Vida, de Esther de Viveiros, biografia autorizada de Rondon publicada somente após a sua morte, certamente por recomendações do próprio biografado, podemos encontrar trechos com referências equivocadas a respeito de detalhes da nossa região. No entanto, mesmo havendo transcrito e comentado vários trechos dessa volumosa obra, o autor de Enganos da Nossa História parece não haver se dado conta desses pequenos detalhes, embora questionando outros até de menor importância para o nosso contexto histórico.
Por exemplo, à página 303, 4º parágrafo, da obra citada, podemos encontrar um equívoco de natureza geográfica quase impensável para ser cometido por Cândido Rondon que primava pela precisão das referências que fazia aos trechos por ele palmilhados. No entanto, descendo o rio Madeira, em fevereiro de 1910, com destino a Manaus, havendo partido do porto de Santo Antonio, Rondon afirma haver passado pela barra do rio Jaci-Paraná na sua desembocadura no rio Madeira, conforme podemos conferir na transcrição do referido parágrafo:
Não pude, infelizmente, esperar pelos expedicionários do Jaci. A febre com que eu iniciara os trabalhos, e que se atenuara em Comemoração de Floriano, voltara com redobrado furor e a 1º de fevereiro tive um acesso de 41º. Claro que seria impossível ficar mais tempo em Santo Antonio. Reembarquei no mesmo navio que me trouxera, saindo a 6, com destino a Manaus. Ao passar pela barra do Jaci-Paraná com o Madeira, encontrei as turmas dos Ttes. Alencarliense e Pirineus aboletadas em um barracão de Ascenzi & Cia., patrões de Miguel Sanka. Não havíamos, felizmente, perdido nenhum de nossos homens.
Ora, acontece que, descendo o rio Madeira a partir de Santo Antonio, o grande explorador de sertões nunca poderia haver passado pela foz do rio Jaci-Paraná, situada a mais de cem quilômetros a montante da cachoeira de Santo Antonio e a pelo menos duzentos quilômetros acima do ponto ao qual Rondon se refere, que, no caso, só poderia ser a barra do Jamari, do Maici ou do Ji-Paraná ou Machado. Em se tratando de Rondon, erro de geografia tão crasso só poderia ser explicado pelo seu precário estado de saúde no momento em que fez a anotação a respeito do local que julgou ser a barra do Jaci-Paraná, já que descia o rio Madeira acometido de forte acesso de malária que o impediu até de esperar a turma do capitão Manoel Teófilo da Costa Pinheiro que estava ainda no rio Jaci-Paraná. Talvez a doença e a preocupação com seus comandados internados no rio Jaci-Paraná tenham levado o notável explorador a fazer anotações em momento em que estava acometido por delírio decorrente do seu estado febril, não havendo revisado o equívoco na versão original do relatório que Esther de Viveiros transcreveu. Como o livro só foi publicado após a morte de Cândido Mariano Rondon, ocorrida em 1958, ele não pôde fazer o reparo que por certo teria feito se vivo estivesse. E como ele havia sido acometido por um glaucoma no final da década de 30 quando desempenhava a missão diplomática em Letícia, perdendo progressivamente a visão a partir da década de 40, não lhe foi possível revisar o copioso material manuscrito que havia produzido ao longo de mais de três décadas antes que esse material fosse passado para a versão literária que lhe foi dada por Esther de Viveiros, que não tinha os conhecimentos geográficos necessários para notar os equívocos eventualmente contidos em alguns dos relatórios, entre os quais uma pequena confusão entre os rios Cautário e São Miguel, somente identificável por quem conhece muito bem a geografia do Vale do Guaporé. O Antonio Cândido não acusou tais discrepâncias, mas devia tê-lo feito.
Outro aspecto a respeito da região do Guaporé que Rondon comete um estranho equívoco é com o nome do seringalista Américo Casara, na expedição de 1930, nas duas vezes que faz referências ao nome do conhecido fundador do seringal cujo barracão estava localizado em Laranjeiras, na margem do Guaporé, com colocações de seringa no rio Corumbiara. Nesse barracão do Corumbiara, entre os anos de 1924 e 1927, esteve vivendo como desertor do Exército Aluízio Pinheiro Ferreira, não como seringueiro conforme alguns afirmam, mas sim como funcionário de Américo Casara, trabalhando no pátio do barracão, até porque seria impensável naquela época malbaratar os conhecimentos de um homem com o preparo intelectual de Aluízio Ferreira empregando-o como simples seringueiro, já que ele seria muito mais produtivo em atividades administrativas para as quais era muito difícil recrutar candidatos capazes naquela época que o analfabetismo era a regra com raras exceções na região guaporeana. Américo Casara era um homem culto, formado ainda na Europa, dono de uma esplêndida biblioteca particular acomodada no barracão de Laranjeiras, que certamente Aluízio Ferreira aproveitou muito bem durante os seus anos de desertor. Com tanta fartura de referências a respeito de Américo Casara na região guaporeana, chega a ser incompreensível que o general Rondon não tenha conseguido registrar o verdadeiro nome do seringalista, referindo-se a ele, pelo menos duas vezes, como o italiano Carava. Teria sido um erro de transcrição de Esther de Viveiros ou Rondon teria escamoteado deliberadamente o nome do seringalista? Se Rondon escamoteou o nome de Américo Casara, quais as razões para tal atitude? Teria sido em razão de algum pedido de Aluízio Ferreira? Tais aspectos tão interessantes da nossa história regional não foram apontados por Antonio Cândido no seu livro de revisão dos erros da nossa História.
Em outra passagem da obra de Esther de Viveiros, que parece haver sido a fonte à qual Antonio Cândido concedeu mais crédito entre todas as outras às quais recorreu, o autor de Enganos da Nossa História parece não haver notado que no episódio do assassinato do sargento Paixão praticado pelo soldado Júlio, Rondon descreve o assassino como sendo um tipo de puro sangue branco. No entanto, no seu livro de correção de erros sobre a nossa História, Antonio Cândido recorre a uma transcrição da obra de Octaviano Cabral que descreve o assassino do sargento com fenótipo completamente diverso daquele registrado por Rondon: ... O assassino, caboclo atlético, alto, espadaúdo, mal encarado, de mau comportamento, entranhara-se na mata, fugindo.
Ora, se o soldado era um tipo de puro sangue branco conforme Rondon o descreveu no seu relatório, logo não poderia ser caboclo atlético como foi descrito por Octaviano Cabral... Tal detalhe parece não haver sido notado por Antonio Cândido na sua caça aos enganos da nossa História. Qual dos Cândido estaria com a razão em tal discrepância, o Rondon, que conhecia muito de perto o seu comandado, ou o Antonio, que coonesta a citação equivocada de Octaviano Cabral sem lhe fazer qualquer reparo?
Enfim, podemos aqui concluir que a obra publicada por Antonio Cândido veio apenas acrescentar mais algumas controvérsias sobre a nossa história regional, isto sem que se possa negar-lhe o mérito de haver contribuído para que a discussão sobre o assunto seja retomada com muito mais afinco e uma certa dose de humildade... Quanto aos deslizes de português facilmente encontradiços pelos leitores mais atentos, conquanto não sejam louváveis para o autor que é graduado em Letras, são desculpáveis porque podem haver ocorrido durante o processo de edição do livro, assunto que conheço muito bem pelas experiências pessoais que já vivenciei na atividade de escritor.
Fonte: MATIAS MENDES
Membro fundador da Academia de Letras de Rondônia.
Membro correspondente da Academia Taguatinguense de Letras.
Membro correspondente da Academia Paulistana da História.
Membro da Ordem Nacional dos Bandeirantes Mater.
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