Quarta-feira, 3 de outubro de 2007 - 11h27
Eu costumo dizer que não tenho receios das pessoas que não sabem, pois normalmente elas não interferem em determinados aspectos da vida. De igual modo, não tenho receio dos sábios, pois tenho certeza que eles são capazes de aquilatar o valor real de cada ser humano. No entanto, entre os dois grupos, há uma camada que se poderia denominar sem riscos de laborar em equívoco como sendo a mediocridade entre os que não sabem e os que sabem muito. E eu receio tanto quanto abomino a mediocridade no sentido de mal sabença. Sempre nutri um justificado receio de que podemos ser perfeitamente ser contaminados pelo apedeutismo de certas pessoas. A mediocridade, via de regra, é integrada pela legião dos que pensam que sabem, daqueles que se julgam donos e senhores absolutos da verdade.
Por uma estranha coincidência, em recente artigo que fui compelido a escrever e fazer referência a alguns autores franceses, eu cometi uma gafe digna do notário que corrompeu o nome da minha saudosa avó materna de Maria de Godoy Aranha para Maria Deogodoza Aranha. Não sei exatamente se pelo fato de ser um discípulo fervoroso de Honoré de Balzac, que detestava os notários por haver sido servidor num cartório, ou por motivo de haver sido duramente atingido no meu próprio nome pela incúria cartorária, a grande verdade é que não aprecio muito os notários, conquanto nunca tenha trabalhado em cartórios. A gafe digna de notário à qual me refiro aqui diz respeito ao nome da notável pensadora Simone de Beauvoir, que cometi o pecado de corromper na grafia para Simone de Bouvoir, logo eu que sou tão afeito à grafia correta dos nomes dos autores que muito raramente cito.
Aliás, sobre este aspecto de citar nomes de autores, é um assunto que eu costumo evitar pelo fato de haver lido realmente muito ao longo da vida. Houve época de minha vida de matuto guaporeano (mas não boçal) que atingi a média de mais de uma centena de títulos lidos por ano, marca que nem os mais longos cursos universitários exigem de seus estudantes ao longo de cinco ou seis anos. Depois, com as preocupações naturais de ser humano responsável pela própria vida, minha média anual de leitura baixou sensivelmente, mas sempre mantendo a casa de pelo menos cinqüenta títulos anuais. Atualmente, com pequenas variações, leio em média apenas uns vinte títulos anuais. Como adicional ao fato ao qual me referi de que tenho hábitos e métodos de leitura impensáveis para a maioria das pessoas, vale lembrar que cheguei ao ponto de ler algumas fábulas de Jean de La Fontaine vertidas ao latim, tal como li parte da obra de Renée Descartes também na forma original do latim.
De tal modo, alguém que tentar me impressionar citando um ou dois autores, seja lá de que nacionalidade for, por certo vai esbarrar mesmo num muro matuto que somente pessoas como os mestres Jackson Abílio, Edson Jorge Badra, José Barbosa, Manoel Rodrigues Ferreira, César Albuquerque (irmão do nosso conhecido Lúcio Albuquerque), Gesson Magalhães, Maria Angélica de Queiroz, Abnael Machado de Lima, Jean-Paul Mestas, Vitor Hugo, Ary Tupinambá Penna Pinheiro, Ary de Macedo Davi Rey Cuéllar, Euro Tourinho, o Velho, Euro Tourinho Filho e alguns poucos mais souberam avaliar com a devida justiça. Note-se, por relevante, que todos os citados aqui ou já estão mortos ou são senhores bem entrados nos anos, portanto não se trata de neófitos ou de néscios, mas sim de homens de fato sábios. Nenhum ímpeto juvenil seria capaz de superar aquilo que foi consolidado ao longo do tempo e do hábito de leitura constante. Aqueles que se iludem com a ascensão econômica e social conseguida ao sabor de expedientes políticos, achando-se imunes a qualquer coisa, estão redondamente enganados no que tange a este matuto guaporeano burilado por castelhanos e franceses. Cela va sans dire que eu não tenho apenas rudimentos de francês como alguns pensam. Nem se poderia dizer que tenho apenas rudimentos de latim. Tampouco de espanhol. É verdade que tenho apenas rudimentos de inglês, de italiano, de romeno, de alemão, de tupi-guarani, de quimbundo, enfim, de línguas que entendo muito precariamente e que não as uso na forma escrita. Quanto aos meus rudimentos de francês, com perdão da veleidade cabível, são exatamente semelhantes aos rudimentos de português de qualquer graduado em nível superior em qualquer parte do Brasil, inclusive aqui nas profundezas das florestas amazônicas, como diria o jornalista Paulo Queiroz. Este é o ponto fundamental de tudo. Aliás, foi em razão dessa pretensão patológica de negar o óbvio, de contradizer o correto, de querer reinventar o mundo e outros disparates que eu escrevi uma série de artigos em linguagem absolutamente literária e recebi de volta insultos maldosos vertidos em linguagem de lupanar de quinta categoria.
No que tange ao sucesso de certos livros, pela longa experiência que tenho de leitura, ao que me parece, trata-se de questão adstrita à relatividade do conceito. Por exemplo, eu considero Memória de minhas putas tristes, de Gabriel García Márquez, uma obra-prima da prosa latino-americana. No entanto, há críticos que julgam que o grande escritor colombiano já produziu melhores romances. Ao meu ver, o sucesso de um livro só pode ser medido pela sua perenidade. De tal modo, romances e poemas imortais, tendo ou não vendido grandes tiragens, podem ser considerados livros de sucesso. No entanto, livros que podem arrecadar somas significativas no impacto de uma primeira edição e que são relegados depois ao esquecimento pela inutilidade de parte do seu conteúdo, não há como ser considerados livros de sucesso. Em casos semelhantes, nenhum título que o autor ostente pode salvar o desastre, até porque os latinos já ensinavam que: Cum charta cadit, omnis scientia vadit, o que equivale a dizer que quando cai o papel, lá se vai toda a sabença. Quando se trata de literatura, não há como se escudar apenas no papel, pois o que conta mesmo é o conhecimento. Para ilustrar tal observação com um exemplo bem local, eu mesmo estou tratando da segunda edição do livro As Musas e o Perfil, de minha autoria, inclusive com um texto de apresentação assinado por um cidadão francês que foi meu condiscípulo em certa época, obra que foi editada de forma precária há vinte e cinco anos em tiragem muito reduzida. No entanto, a despeito da precariedade da primeira edição, eu considero ser este o meu mais significativo livro no gênero da poesia. Contudo, o fato de estar saindo em segunda edição não significa que o livro fez sucesso, mas sim que está sendo reeditado com os cuidados que o seu conteúdo merece.
En revenant à nos moutons, o fato de haver estropiado a grafia do nome de Simone de Beauvoir fez-me refletir no perigo que corremos ao lidar com determinadas pessoas. Parece que, por um processo de osmose, o contato com o apedeutismo termina por contagiar-nos de alguma forma. Talvez por tal razão Balzac tenha cunhado a célebre expressão de que quand tout le monde est bossu, la belle taille devient la monstruosité. No entanto, como sou por natureza refratário ao embotamento mental, lembro aos patrulheiros de plantão o antigo ensinamento de Voltaire: "Qu'on ne croie pas connaître les poétes par les traductions; ce serai vouloir apercevoir le coloris d'un tableau dans une stampe." A tradução sumária seria no sentido de que não se acredite conhecer os poetas pelas traduções, pois isto seria como querer perceber o colorido de um quadro numa estampa, numa reprodução. No caso específico do jabuti aqui postado na copa de um frondoso assacu, eu apenas aconselho muito cuidado àqueles que julgam conhecer o jabuti apenas pelos rudimentos. Seiva de assacu cega...
Fonte: MATIAS MENDES
Membro fundador da Academia de Letras de Rondônia.
Membro correspondente da Academia Taguatinguense de Letras.
Membro correspondente da Academia Paulistana da História.
Membro da Ordem Nacional dos Bandeirantes Mater.
FÉRIAS: Viagem ao Centro do Brasil
Por MATIAS MENDES No mês de julho, de férias, para compensar uma temporada pelas regiões remotas do Guaporé, meti
PEDRAS NEGRAS: Reflexões da Festa do Divino
Por MATIAS MENDES O Distrito histórico de Pedras Negras, no rio Guaporé, entre os dias 15 e 19 de maio, há quase um mês, engalanou-s
BOTAFOGO: O Império da Mística
Por MATIAS MENDES O Botafogo, famoso pela mística que o acompanha, não deixou por menos no ano de 2013, não permiti
Por MATIAS MENDES Dias atrás, neste mesmo espaço de imprensa, eu teci comentários a respeito da situação do muni