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Gente de Opinião

Lúcio Flávio Pinto

Meu irmão, minha perda


 

LÚCIO FLÁVIO PINTO

Nada fere mais fundo na alma humana do que a perda. A vida é uma sucessão – e às vezes um acúmulo – de perdas. À maioria delas sobrevivemos sem maiores traumas. Outras são mais difíceis de reparar. Mas há aquelas que se tornam irremediáveis, irreparáveis. São perdas que nos mutilam, reduzem o nosso tamanho, minam a nossa força. A perda de Raimundo José de Faria Pinto foi destas perdas definitivas para mim. Deixei-o no túmulo, ao lado do nosso pai, que morreu 24 anos antes, quase tão jovem quanto nós, aos 60 anos (Zé tinha 56), certo de que uma parte de mim ficou lá, não volta nunca mais.

Uma parte de mim que não tem nada de pequeno, principalmente por meu parco patrimônio pessoal. Zezé foi o “Badibaúa” dos 3 anos, que, no seu tatibitati indeciso, quis dizer aos colegas de molecagem que me foram buscar em casa que eu não podia ir para a rua e só conseguiu formular a frase macia, despojada de suas consoantes ásperas: “Ele não badi ba ua”.

A caçoada foi pesada e ele tratou de corrigir a falha. Deu então de cara com outra – ou melhor, de língua: descobriu-se que era gago. Mais sarros cruéis, aos quais respondeu alongando as palavras travadas e estabelecendo um novo tempo no discurso, com a vantagem adicional de lhe permitir observar e analisar as palavras antes de dizê-las. A gagueira só escapava do seu controle quando era ele como um todo que se descontrolava. Mas quando a tensão podia ser prevista ou programada, como numa entrevista ou numa palestra, que era forçado a fazer, ninguém notava. Sua tendência para o ensimesmamento, a introspecção e a timidez ganhavam um componente cerebral, analítico, que se tornaria uma arma na profissão de jornalista.

Nada, nos primeiros anos do Zé, indicava-o para o espinhoso ofício. Foi exatamente sobre espinhos que ele andou para vencer as limitações naturais e se expor diante dos acontecimentos, vivenciá-los, tomar-lhes o pulso. Tornou-se o melhor de todos nós como repórter de rua. Talvez se ele não fosse jornalista, seria um amanuense macambúzio ou um encastelado amante dos prazeres da vida (outra das suas marcas).

Felizmente, para todos nós, ele venceu as muitas barreiras no seu caminho. Construiu peça por peça a sua personalidade, o seu currículo, o seu halo de beleza, que desafiava para um diálogo repentista o raro (e duplo) defeito da visão, a enormidade meio desajeitada do corpo, o rosto rascante de neto de sertanejo do Ceará, sem adereços nem adiposidades, firme e forte como um mandacaru, áspero por fora, aquoso por dentro, de uma fibra que só se revelou por completo na luta lancinante contra o câncer, uma batalha perdida, mas não desperdiçada. 

 

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Crianças Panarás, filhos dos "índios gigantes" da BR-163, fotografados nos anos 1970 /PEDRO MARTINELLI

Mandei Raimundo para um sem-número de missões, logo ali na esquina, ou lá nos grotões da selva. Ele sempre voltou com um relato exato, seco, justo, rico em informações, com as melhores observações possíveis. Incontáveis vezes ele ligou do outro lado para dizer que estava levando para nosso caótico escritório uma matéria que se pautara, das boas, das melhores. O profissional aplicado, sisudo, compenetrado da sua missão, ao entregar o texto ou ao passá-lo diretamente para a sede, imediatamente se transformava num “causeur”, num observador refinado, num autor de chistes antológicos, animando a roda, que, felizmente, sempre conseguiu ser bem humorada na família, a despeito de seus dramas e tragédias. Sem nunca deixar de ser o irmão silencioso ao nosso lado, vigilante, solidário, amigo, amoroso complemento de todas as nossas faltas e carências.

Quantos terão tido o privilégio de trabalhar com pessoa como essa ao longo de 18 anos, em 80% desse percurso num mano-a-mano literal, um ao lado do outro, sem mais ninguém. Primeiro, nos altos de uma loja de discos e de uma alfaiataria na travessa 13 de Maio, ao lado do edifício Barão de Belém, onde estava a sede do sindicato que presidimos. Depois, no 8º andar do edifício Justo Chermont, quase inquilinos privilegiados do grande Afonso Chermont, uma personalidade a desafiar biógrafos.

Nesses dois locais funcionou aquela que seria a maior sucursal já instalada por um órgão da imprensa brasileira na Amazônia. Ela mobilizou nomes como Walter Rodrigues, Raimundo Costa, Manuel Dutra, Elson Martins, Ademir Braz, Manoel Lima, Oscar Ramos Gaspar e auxiliares como Expedito Costa e Pedro Carlos Pinto. Destes jornalistas saíram algumas das melhores reportagens já escritas sobre questões amazônicas.

Algumas pessoas talvez não entendam completamente a intimidade da parceria e da minha relação com meu irmão. Ela foi umbilical, como se fossemos gêmeos. Eu apareço primeiro, eu comando? Inevitável: sou três anos e meio mais velho do que o Raimundo e comecei na profissão cinco anos antes dele. Minha precedência cronológica me fez abridor de caminhos. Todos os caminhos que abri, fiz questão de que por eles Raimundo José viesse. Não como uma dádiva nem por nepotismo. Por conquista dele, seu crédito. 

 

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"Pará Negócios", a newsletter editada por "Pintão", jornalista de história e grande serviço prestado à Amazônia / REPRODUÇÃO


Ora, se eu tinha um grande repórter à mão, por que ia buscá-lo longe e no desconhecido? Nunca os chefes aos quais indiquei o nome dele questionaram a indicação. Raimundo os convenceu e conquistou com seu trabalho, com sua competência. Produzimos reportagens em dupla, estivemos juntos em várias publicações, criamos veículos nossos, recebemos prêmios em comum e escrevemos em conjunto livros, um dos quais, sobre os índios Panará, na companhia de outros caros amigos e autores, como Ricardo Arnt e Stephen Schwartzman, é documento vivo, indispensável. Alguém se lembra de uma briga minha com Raimundo, de um texto meu contra ele, de uma observação verbal maldosa, de um caso de conflito?

Divergências houve – e não foram poucas, e nem sempre foram acessórias. Mas tratamos nossas diferenças no círculo do respeito e do amor mútuo, do apreço e da admiração que tínhamos um pelo outro, já aí sem qualquer hierarquia – de tempo ou de qualidades. Como éramos distintos e diferentes, nossas trajetórias não foram siamesas. 

Ele fez muita coisa sozinho, em outro âmbito, sem qualquer participação minha – e vice-versa. Mas eu sempre estive ao alcance das suas necessidades – e vice-versa. Nunca lhe faltei. Ele nunca me faltou. Silenciamos, às vezes. E como lamento que em nossas vidas tenha havido tantos silêncios, tantas distâncias, tantos desencontros de agendas. Ao deixá-lo na companhia do pai, na sua última morada terrestre, sabia que meu tempo, a partir de agora, será marcado por esse lamento. De uma perda que nunca mais será reparada. E como dói. Dói como o retrato de Parauapebas na parede. 

O campeão vencido

Elias Pinto morreu quando estava no auge meu contencioso com o primeiro governo Jader Barbalho, em 1985. Quase todos os dias, durante certo período desse ano, o jornal do governador publicava mentiras e infâmias contra mim. Como a de que era assessor do advogado Paulo Lamarão, autor de uma ação popular contra a desapropriação da gleba do Aurá, considerada lesiva ao interesse público. Sempre que uma notícia desse tipo aparecia no Diário do Pará, papai ligava para me dizer que iria reagir na minha defesa, porque eu tinha pai e ele não podia permitir que eu fosse atacado daquela maneira. A iniciativa às vezes se restringia ao telefonema, ou à aparição dele no escritório ou em casa.

Só descobri o quanto ela era importante quando, dois dias depois da sua morte, na madrugada de 25 de dezembro, outra invenção foi publicada na coluna Repórter Diário (como represália aos meus artigos de crítica ao governo em O Liberal, onde eu tinha coluna diária) e não recebi seu telefonema nem sua visita. Percebi que havia perdido meu pára-choque. A partir daí, eu teria que receber diretamente todas as agressões e ainda servir de muro de proteção para os que estavam cronologicamente atrás de mim na família.

Numa sociedade patriarcal, eu ocupara o lugar do meu pai na hierarquia familiar, como o primogênito homem, também com a responsabilidade sobre a irmã mais velha, Eliaci, a única mulher dentre os sete filhos de Elias e Iraci Pinto.

Como o núcleo familiar ainda é a fonte principal dos papéis que assumimos na vida, o segundo grande golpe nessa estrutura veio com a morte de Raimundo José, três anos e meio mais novo do que eu, o terceiro na sucessão. Uma força poderosa, originada da confusa e misteriosa conjunção de instinto e razão, de herança e criação, me cobrou minha responsabilidade. Pela ordem natural das coisas, eu é que devia morrer e não Raimundo. Se ele é que agonizava, havia culpa minha nesse desfecho. Talvez eu não tivesse observado todas as minhas obrigações. Falhara como cabeça da família?

Claro que esse tipo de posição é gerado por impulso instintivo. Mais do que isso: irracional. É uma irrupção de forças ancestrais, da nossa origem mais primitiva, quando a sobrevivência dependia do nosso grau de animalidade no processo da evolução humana. É um banzo, ao qual não se deve dar os ouvidos da razão. Melhor fazer como Ulisses ao canto das sereias: se amarrar aos critérios da racionalidade para não ceder a impulsos primitivos. Mas não é conquista fácil. Antes de alcançá-la vive-se a debater entre angústias e questionamentos, que falam apenas ao mais íntimo do ser, àquele compartimento de mistérios e segredos que, por nunca serem desvendados, constituem a dimensão da espiritualidade, da humanidade que nos distingue dos outros animais da Terra.

O câncer, que vitimou meu irmão, causando-lhe cruel sofrimento até o seu último suspiro, acrescenta a esse banzo uma contribuição tecnológica. Homem bom, profissional consciencioso, pessoa afável, e ainda jovem, aos 56 anos, ao ver seu corpo ocupado pelos tumores agressivos, ele se fez a pergunta que um número crescente de seres humanos se faz em todos os lugares: mas por que eu, por que exatamente eu? Diante do descompasso entre seu modo de vida e a doença, a irrupção do câncer costuma ser associada a um componente moral poderoso. O doente, ainda discriminado e estigmatizado, vê a interferência de um dedo invisível, como um castigo.

Meu irmão perquiriu por essa relação moral, sem encontrá-la. Por isso lutou com uma fibra insuspeitada pela vida. Rejeitou como pôde o avanço da morte – lenta, ardilosa, inescrupulosa e fatal. Resistiu aos efeitos de todos os remédios para se manter alerta, em defesa da sua vida, do seu legítimo e superior direito de prosseguir sua escrita com intensidade. Só um dos olhos não resistiu aos múltiplos ataques, que provocaram a falência múltipla dos seus órgãos: o outro olho continuou aberto. Sua pálpebra não baixou, como a arma que permaneceu a serviço da sua luta pela vida. Foi guerreiro até o fim.

Foi guerreiro nas instâncias anteriores ao seu internamento hospitalar, que se prolongou em martírio por dois meses. Por sete ou oito vezes foi ao Hospital Ofir Loyola, como um cidadão comum, em busca do atendimento marcado. Foram outras tantas frustrações, principalmente porque o equipamento de radioterapia quebrava. Já era demasiado (além de injusto) o castigo. Repassei a situação ao então diretor do hospital e à então secretária de saúde. Não adiantou.

Não porque eles se manifestassem insensíveis: era exatamente porque, tendo todo o poder decisório em suas mãos, tal poder era inútil diante da falência absoluta dos meios para executar a decisão. Os pacientes de câncer carentes de radioterapia foram deserdados pelo Estado. Os outros são simplesmente maltratados. Num tal cenário, dignidade passou a ser metafísica. Das péssimas.

Raimundo José percorreu as estações de suplício que havia para enfrentar e vencer a moléstia que mais tem crescido, talvez sem a exata representação numérica, estatística, mas num plano que desafia a incredulidade pública e a insensibilidade oficial: a olhos vistos. A via crucis do meu irmão, de sua família, parentes e amigos é uma prova desse massacre, ao qual nem os mais honrados estão isentos, mesmo que tenham toda disposição de resistir e todo direito de escapar.

Raimundo José de Faria Pinto perdeu essa guerra, depois de tantas batalhas terríveis. Mas venceu o combate pela imortalidade na memória de todos nós, que estivemos ao seu lado e do seu lado jamais deserdaremos.

Lúcio Flávio Pinto é editor do Jornal Pessoal e colaborador desta Agência. 

NR. 
 

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Raimundo Pinto, repórter, editor, foi também presidente do Sindicato dos Jornalistas do Estado do Pará /BLOG DA TEMPLE

Quem foi Raimundo Pinto
Ao editar “Pará Negócios”, uma perfeita síntese econômica do Estado do Pará, Raimundo Pinto deixou no expediente um pouco da sua vida profissional. Dela extraímos o perfil dele: começou a trabalhar como repórter em 1971, no jornal “A Província do Pará”. Foi correspondente em Belém dos jornais “O Estado de S. Paulo” e “Jornal da Tarde” por 18 anos, de 1975 a 1993, e da revista “Visão” por seis anos, a partir de 1978.
Atuou também como repórter do jornal “O Liberal” em 1976 e repórter e editor do extinto jornal “O Estado do Pará” de 1977 a 1980. Foi ainda editor do jornal alternativo “Bandeira 3” e de “O Jornalista”, órgão de divulgação do Sindicato dos Jornalistas do Pará, por cerca de dez anos. Repórter e editor do jornal “Gazeta Mercantil” de 1996 a 2004 e assessor de imprensa da Embrapa de 1981 a 1989 e do Governo do Pará de 1995 a 1996 e de 2003 a 2004. Atuou como consultor na área de Comunicação e escreveu matérias especiais para vários órgãos de comunicação.
Foi autor do livro “Repórter”, editado em 1995, e co-autor dos livros: “Panará – a volta dos índios gigantes”, de 1997, editado pelo Instituto Socioambiental; e “O Novo Brasil”, editado em 2002 pela Editora Nobel. Ganhou o Prêmio Esso de 1976 pelo jornal “O Estado de S. Paulo”, com a famosa matéria sobre as mordomias no poder público, e Menção Honrosa do Prêmio Esso de 1977 pela série de reportagem “Amazônia, a ocupação ilegal”, no mesmo jornal. E o Prêmio Aimex de Jornalismo em 2003, 2004 e 2005.

* O conteúdo opinativo acima é de inteira responsabilidade do colaborador e titular desta coluna. O Portal Gente de Opinião não tem responsabilidade legal pela "OPINIÃO", que é exclusiva do autor.

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