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Lúcio Flávio Pinto

O enclave de Ludwig na Amazônia no tempo da ditadura


O enclave de Ludwig na Amazônia no tempo da ditadura - Gente de Opinião

Lendo o seu artigo Carajás:  enclave no Pará, me veio em mente uma experiência que fiz com a Jari, quando trabalhava como economista, no fim dos anos 60, ou seja, pouco antes de ir embora daqui. Antes de me formar em economia, em 1967, comecei a fazer um estágio no escritório dos professores Henrique Osaki e Wilton Brito. Me formei e continuei ali enquanto meus colegas conseguiram entrar, quase todos, para a Sudam. Os incentivos fiscais tinham aumentado e todos os sulistas queriam fazer ao menos uma agropecuária na Amazônia Legal. Paralelamente, começaram a nascer vários escritórios, concorrentes da Econorte.

Um dia descobrimos que o dono da Jari, Daniel Ludwig, tinha vindo a Belém, com toda a segurança possível de modo que ninguém o visse. Conversou com os chefes da Econorte, o escritório de economia que iria fazer seu projeto para a Sudam, e onde eu trabalhava.

O Amapá ainda era um território federal quando Ludwig conseguiu encontrar uma área de 1,6 milhão de hectares, na bacia hidrográfica do principal rio, o Jari, na divisa entre o Pará e o Amapá. Único proprietário, a Empresa de Comércio e Navegação Jari Ltda, o que facilitava suas intenções. Nesse tempo se falava muito da falta de celulose para a produção de papel e ele decide plantar ali, dez mil pés de gmelina arbórea.

Um belo dia me comunicaram, no escritório, que deveria ir até a sede da Jari, fazer um controle do que já existia lá, para poder iniciar a fazer o projeto. Numa manhã, bem cedo um carro me levou até o aeroporto, onde me esperava um ’teco-teco’ que me levaria, juntamente com um funcionário da Alfândega, até a sede da fábrica da Jarí.

O funcionário da Alfândega ia controlar os navios que chegavam lá, diretamente dos USA, e sem passar por Belém. A Jari mandava um avião buscar o funcionário e de tarde o trazia de volta para Belém, depois de ter examinado o que a Jari recebia de fora. O responsável por essa função tinha adoecido e o substituto ia pela primeira vez.

Comecei a controlar o galpão e tomar nota do nome das máquinas ali instaladas, mas na hora de voltar eu ainda não tinha acabado e tive que ficar lá para dormir. O funcionário da Alfândega voltou sozinho. O teco-teco tinha uma autonomia de voo que o obrigava inclusive, a partir bem antes do pôr do sol, e não podiam esperar que eu acabasse meu trabalho.

Novas descobertas ia fazer. De longe olhava a floresta que ia ser derrubada para plantarem os dez mil pés da gmelina arbórea, da qual utilizariam tudo: raízes, troncos, ramos e folhas. Iam produzir, também, conglomerados, além da pasta para fazer papel, motivo principal da derrubada das árvores.

Me levaram, então, até onde ficavam as casas dos funcionários onde duas delas serviam como depósito. Essas casas de madeira vinham desmontadas dos Estado Unidos e montadas lá, incluindo aquelas portas que víamos nos filmes, com uma tela para impedir a entrada de carapanãs, mosquitos e afins.

Na casa que entrei, tinha de tudo, made in USA: colchões, lençóis, toalhas de mesa e de banho, talheres, pratos e copos; enlatados de todo tipo com comidas, manteiga, mel, sucos de fruta; papel higiênico, garrafas térmicas. Enfim, tinha tudo que era necessário para “sobreviver no meio do mato”, como me disseram. Era o depósito de parte das mercadorias que traziam os navios, incluindo bebidas alcoólicas.

Para jantar me levaram para a casa do lado do depósito, igualzinha às outras, onde viviam os americanos, mas usada como sala de jantar: com uma mesa grande e cadeiras ao redor. Ali faziam as refeições e na frente do meu prato, um monte de vidrinhos e latinhas com manteiga, geleia, leite, chocolate, e todo tipo de comida estrangeira a que estão acostumados. Até os guardanapos eram made in USA; de brasileiro, ali, somente o céu escuro cheio de estrelas... nem na mesa tinha alguém de lá. Aquilo parecia um enclave no meio da Amazônia.

No dia seguinte acabei de fazer o levantamento do que tinham já instalado e voltei. Ao chegar, para minha surpresa, li nos jornais a denúncia do funcionário da Alfândega, sobre todas as irregularidades que encontrou entre o que chegava de navio. No outro dia nada mais lemos nos jornais, nem soubemos que fim levaram os dois funcionários. Os militares tinham apenas cinco anos no governo.

É bem capaz que esse tenha sido o primeiro “enclave” na Amazônia, no tempo da ditadura.

_____

A atitude desse funcionário público foi exceção; e por ter sido bem no início da implantação do projeto. Outro gigante americano, a Georgia Pacific, maior madeireira dos Estados Unidos, também levava fiscais para assistirem o desembarque da carga transportada pelo navio. Tão americano quanto o porto da Georgia Pacific, em Portel, não muito longe do porto e dos navios americanos de Ludwig. Não me recordo de denúncia do fiscal. Ludwig foi levado ao primeiro presidente do regime militar do marechal Castello Branco, pelo empresário Augusto Antunes, amigo do tycoon gringo, e Roberto Campos, que era ministro do Planejamento. Todos americanófilos. 

* O conteúdo opinativo acima é de inteira responsabilidade do colaborador e titular desta coluna. O Portal Gente de Opinião não tem responsabilidade legal pela "OPINIÃO", que é exclusiva do autor.

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