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Lúcio Flávio Pinto

Crônica de Emir Bemerguy: meio século de Santarém


  

  

Crônica de Emir Bemerguy: meio século de Santarém - Gente de Opinião
Emir reúne-se com familiares durante o lançamento de "Santarenices" /BRUNA JAQUELINE

 
 

LÚCIO FLÁVIO PINTO
Editor do Jornal Pessoal

 

BELÉM, Pará – Ninguém poderá tratar da história contemporânea de Santarém sem considerar a vida e a obra de Emir Bemerguy. Ele já viveu 77 anos e, fora os últimos, quando a doença o fez recolher-se, viveu intensamente os acontecimentos do município e de todo Tapajós. Viveu e testemunhou: é um dos raros personagens que documentou os fatos, deu sua opinião e a registrou de forma pública, através da imprensa, com uma invejável produção.

 

Parte considerável dela foi reunida no livro Santarenices – Coisas de Santarém (294 páginas), lançado recentemente pelo Instituto Cultural Boanerges Sena, de Cristovam Sena, hoje a principal fonte de referência sobre a região. O livro contém os principais artigos que Emir Crônica de Emir Bemerguy: meio século de Santarém - Gente de OpiniãoBemerguy escreveu entre 1966 e 1998. Alguns deles são os únicos documentos por escrito de determinados acontecimentos. Por isso, a obra passa a ser de consulta obrigatória para quem quiser reconstituir essas mais de três décadas.

 

Nesse período, Emir não chegou a passar “quatro meses longe de Santarém”, conforme declara, o que é bom e ruim. Bom porque seu testemunho é mesmo vivencial, de ver e sentir, conhecendo os atores do enredo, vários deles seus amigos de longa data. Ruim porque o sedentarismo, que leva à rigidez das raízes, prejudica certas análises e interpretações que ele fez.

 

Elas são distorcidas pelo conservadorismo, a religiosidade e certa autocomiseração do autor, tornando-o às vezes extremado, dogmático ou impulsivo na apreciação dos eventos cotidianos. Apesar de a sua formação espiritual o encaminhar para a tolerância ao contrário e ao diverso, Emir teve rompantes de intolerância, sobretudo na fase mais crítica da história de Santarém, durante a crise que levou ao afastamento do então prefeito Elias Pinto.


 

Autoritarismo adquirido

 

Depois de escrever artigos ponderados, no ápice dessa crise, em 1968, Emir incorporou o espírito autoritário da época: “No meu débil entendimento, não consigo compreender como, em plena vigência de um governo revolucionário, não se tenha condições de intervir, legalmente ou não, para retirar esta cidade das manchetes sensacionalistas dos jornais.

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Com carnavalescos, no Centro Recreativo de Santarém /ERCIO AFONSO

Fez-se uma Revolução para varrer do país os corruptos e os subversivos; se a corrupção e a baderna voltam, intensificadas, como ora se verifica aqui, configura-se, a meu ver, o descalabro, a situação excepcional que está a precisar de um severo e imediato corretivo”. Pretendia “uma solução pacífica e legal, se for possível; fora da lei, sendo necessário...”

 

Essa solução acabou adotada, com a inclusão de Santarém dentre as áreas de segurança nacional, que não podiam mais escolher pelo voto popular seu dirigente máximo, o prefeito municipal. A partir daí baixariam os prefeitos nomeados pelo governador e sujeitos à aprovação dos órgãos federais de informações. Alguns dos quais elogiados por Emir. Outros, criticados. Ele continuou a ter voz ativa, escrevendo não mais apenas para os instáveis ou efêmeros jornais locais, mas também para os principais órgãos da imprensa paraense, como a Folha do Norte (já extinta) e O Liberal. Conforme ele próprio não deixa de anotar, era o único autor do interior do Estado acolhido pelos jornais de Belém. Não é pouca coisa.

 

Estranha combinação de homem e paisagem

 

A participação de Emir Bemerguy ao longo das três décadas de jornalismo semanal merece ser levada na devida conta. Ele testemunhou a descaracterização acelerada da cidade pequena, onde todos se conheciam e havia certa identidade difusa na sociedade, em torno de elementos da cultura valorizados (como a música, o artesanato e certas manifestações literárias, como a música), além do apreço pelas riquezas naturais da região, a maior delas a combinação do rio com suas margens de areia branca. E a metamorfose em algo ainda indeciso e inconcluso, mas profundamente alterado pela intervenção do estrangeiro (assim, mesmo quando de dentro do país).

 

Essa combinação de homem e paisagem é totalmente estranha aos que planejaram e executaram a travessia da cidade de um pólo a outro. Com suas pranchetas instaladas fora da região e avalizadas pelo poder centralizado em Brasília, que expedia éditos quase reais, eles equalizaram a cidade litorânea a uma urbe qualquer. Num dos seus artigos, Emir protesta com toda razão contra a desfiguração de Santarém quando o órgão federal pôs em prática projeto próprio, que engoliu a praia e emparedou o que restava do “belíssimo litoral defronte da cidade”. Podia ter sido muito diferente se a vontade de Santarém não tivesse começado a ser castrada pela intervenção federal de 1969, que duraria quase duas décadas.Crônica de Emir Bemerguy: meio século de Santarém - Gente de Opinião

 
 

Saudosismo e rabujice

 

À medida que o tempo passa, os artigos de Emir passam a ser necrológios: das pessoas, da cidade, de seu modo de vida, dos seus valores, da sua cultura – tudo sacrificado na pira do crescimento demográfico e econômico, travestido de progresso. O escriba se insurge contra a ação avassaladora dos imigrantes e dos intrusos, incluindo o governo de Brasília.

 

Certas manifestações suas podem ser classificadas de saudosistas, provincianas, rabugices. Muitas outras, não. Ele expressou como poucos valores de grande significado para os nativos, que os colonizadores (claro, sob outras denominações menos agressivas) desconhecem ou desprezam. Como eles têm o poder de mando, são eles que decidem o que pode ser mantido e o que deve ser eliminado. Os critérios da definição costumam ser obtusos e empobrecedores. Podem possibilitar arrolamentos quantitativos de impressionar e convencer os que vêem as mudanças por uma bitola estreita e curta.

 

Mesmo por esse ângulo, o balanço do que foi realizado não é positivo. Em 1982 Emir podia dizer: “A nossa imensa região vem contribuindo com 42% de tudo o que o Estado do Pará arrecada, mas recebe pouco mais que migalhas como contribuição”. Essa injustiça explicaria Santarém provavelmente ser então “a única cidade do mundo inteiro que, ostentando o seu porte e a sua importância, não possui uma Universidade”.

 
 

Homem de todo Tapajós

 

Universidades (ou centros de ensino superior) agora já existem, públicas e privadas, formalizadas ou ainda em casulo. Mas dos 42% de participação na receita, a região deve ter baixado para menos da metade. Se, por um lado, as compensações cresceram, a importância da região diminuiu. Nem por isso se fortaleceu a campanha pela autonomia, através da criação do Estado do Tapajós, bandeira à qual Emir foi aderindo aos poucos, desconfiado dos patrocinadores da nova unidade federativa.

 

Se os números não convencem o analista mais exigente, satisfazem muito menos os que utilizam parâmetros mais qualitativos da antropologia, sociologia ou mesmo literatura. E quem devia estar satisfeito, como beneficiário de tantos cavalos de pau colocados na praça central da cidade, não está nada satisfeito.

 

Disso, Emir não deixa dúvida nos seus artigos. Homem de todo Tapajós por sua nascença, em Itaituba, sua infância, em Belterra (a segunda cidade fundada por Henry Ford), e a maior parte da sua vida, em Santarém, Emir tem sensibilidade, olhos e ouvidos para o mais íntimo da sua terra, para o mundo que já existia antes dos colonizadores, verdadeirosbwanas à moda antiga, que consideram a si como o princípio de tudo, inclusive da história local, por eles ignorada ou desprezada.

 

Por isso se solidarizou com os remanescentes do último quilombo da Amazônia, o do Trombetas, quando eles foram expulsos de suas terras ancestrais para a criação de uma reserva biológica federal, que visava combinar com sua contrafação, a mina de bauxita do outro lado do rio, explorada por multinacionais.

 

A nova cultura que se forma é de voyuers, turistas apressados, como o jornalista Miguel de Almeida. Embora sua intenção fosse reconstituir a viagem que o antenadíssimo escritor Mário de Andrade, um dos modernistas de 1922, empreendeu pela Amazônia em 1927 (como “turista aprendiz”), quase seis décadas antes, o repórter não fez jus ao poeta.

 

Mereceu um tremendo puxão de orelhas de Emir porque, ao passar meteoricamente por Santarém, disse nada ter observado que merecesse registro. Nem o incrível encontro das águas barrentas do rio Amazonas com as do azul – então ainda límpido – Tapajós.

 
 

Um testemunho para ser lembrado

 

Não faltavam motivos para o visitante lamentar a falta de opções de lazer na cidade, lacuna de ontem e de hoje. Mas era totalmente insubsistente sua observação de que Santarém é uma dessas cidades “desenraizadas e forjadas repentinamente pelo progresso”. Nada mais oposto à verdade. E aí Emir foi buscar sua chinela:

 

“Santarém não foi, meu bom Miguel, forjada repentinamente pelo progresso, coisa nenhuma. Essa praga veio chegando aqui aos poucos, trazendo todo o seu estoque de venenos e remédios, de bênçãos e de maldições. Vivíamos muito melhor, com muito mais fartura e paz, antes de aportarem aqui o desenvolvimento adoidado e certos forasteiros que gostaríamos de ver à distância. O progresso nos tem oferecido mais contrariedades e desassossego do que benefícios reais. Mas isso é outra história, que não cabe aqui”.

 

O testemunho de Emir não pode ser sepultado na cova rasa da incompreensão e do esquecimento, como vários dos personagens cujo perfil ele traça, como se fora incumbido da extrema unção de um mundo tão recente e já tão remoto, do qual ele é elemento exemplar, uma espécie de “o último dos moicanos”. Mas que, felizmente, graças a iniciativas como a de Cristovam Sena, não terá o destino inglório de alguns dos seus companheiros de viagem.

 

Paulo Rodrigues dos Santos e João Santos (nenhum parentesco, exceto as afinidades intelectuais) quiseram destruir suas obras e arquivos, indignados com a indiferença da sociedade local. Paulo esperou cinco anos pelo lançamento de Tupaiulândia, em 1971. Doente, não pôde vir a Belém para a solenidade, mas o governador Fernando Guilhon o visitou em Santarém. Paulo Rodrigues morreu pouco depois. Mas uma edição digna da sua obra só surgiria muitos anos depois da primeira, patrocinada por uma instituição inteiramente local, o ICBS de Cristovam.

 

Do muito que João Santos escreveu, resta pouca coisa publicada. Infelizmente, seu arquivo permanece indevassável, mantido em injustificável isolamento pela família, quando podia exercer uma função fecundadora, como os três livros de Emir publicados nos últimos tempos pelo Instituto Cultural Boanerges Sena.

 

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* O conteúdo opinativo acima é de inteira responsabilidade do colaborador e titular desta coluna. O Portal Gente de Opinião não tem responsabilidade legal pela "OPINIÃO", que é exclusiva do autor.

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