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Hiram Reis e Silva

Terceira Margem – Parte DCXIX - Pereira do Lago ‒ Um Herói Anônimo Parte II


Terceira Margem – Parte DCXIX - Pereira do Lago ‒ Um Herói Anônimo Parte II - Gente de Opinião

Bagé, 31.07.2023

A têmpera dos heróis anônimos da Retirada da Laguna forjada na caserna e aperfeiçoada nos desafios impostos pela carreira das armas aproxima estes seres dos deuses das guerras e povoa o imaginário dos pueris mortais. Os heróis são homens de coragem, homens capazes de se imolar por uma causa; não são homens comuns. Vamos reproduzir, a seguir, a biografia de um deles publicada na Revista Trimestral do Instituto Histórico e Geográfico do Brasil – Tomo LVI – Parte Segunda, editada em 1893, de autoria do Visconde de Taunay.

Apontamentos Biográficos

II

Declarada a Guerra do Paraguai, não podia o brioso militar conservar-se retraído e em Comissão civil, quando tudo o impelia a ir servir a pátria nos pontos de mais perigo e assim pagar-lhe com juros todos os benefícios que dela havia recebido em proteção, auxílios e principalmente instrução, desde a primária até à superior.

Quebrando, pois, sem vacilação a doçura da vida de família, já com dois filhinhos a lhe alegrarem o lar doméstico, foi ao encontro de qualquer chamado e, apresentando-se ao Quartel General, teve a 09.03.1865, ordem de se pôr à disposição do Presidente Comandante das Armas da Província de Mato Grosso, então nomeado, Cel Manoel Pedro Drago, a fim de seguir para aquela parte do Brasil invadida e ocupada em sua Zona Meridional pelos inimigos.

Já no caráter de Ajudante da Comissão de Engenheiros, dirigida e cuidadosamente organizada pelo seu antigo Chefe no Rio de Janeiro e amigo, então Tenente-Coronel José de Miranda da Silva Reis. Anteriormente fora já, por decreto de 28.11.1863, promovido a Capitão, dois anos depois de concluído, com aprovações plenas, o Curso de Engenharia Civil, em 1861. A 01.04.1865 partiu Pereira do Lago para a Expedição de Mato Grosso, que tantas inclemências teve que suportar, mal se afasta do litoral, internando-se no sertão.

Após penosas e dilatadas marchas em que muito padeceu a coluna, já pela carência de víveres apura­da até à fome, já por várias e mortíferas epidemias, viu todos os seus sofrimentos coroados pela terrível Retirada da Laguna hoje bem conhecida na história e citada com honra e como prova frisante do quanto podem, nas mais tremendas conjunturas, a constân­cia, a coragem e o pundonor militar.

Durante interminável viagem pelo interior do Brasil baldo de recursos [dois anos para se chegar à Zona de Operações!] na economia interna das forças expe­dicionárias, no serviço diário dos acampamentos, nas explorações e, sobretudo, passagens de Rios vadeá­veis ou não, nos reconhecimentos e combates e, acima de tudo, nos mais horrorosos trechos da Retirada, foi o Capitão Pereira do Lago inexcedível em resolução, sangue frio e serenidade, exemplo contínuo, sem o menor desfalecimento, a quantos quisessem dar cumprimento inteiro a deveres torna­dos então sacrifícios quase sobre-humanos.

Assistente do Ajudante-General, cargo de importân­cia capital naquelas circunstâncias, pronto, além dis­so, para todos os serviços e para as mais arriscadas comissões, superior às maiores intempéries, a repre­sentarem legítima subversão da natureza mato-grossense, já de si áspera e selvática, sempre na frente de todos, nos postos mais perigosos, não houve elogios que dos Chefes e camaradas não alcançasse e não merecesse.

Por vezes foi a verdadeira alma, o “Braço Forte” da infeliz coluna em seu Movimento Retrógrado da linha do Apa a Nioaque, principalmente quando, em fins de junho de 1867, depois dos medonhos estragos do “cholera morbus”, o acúmulo e a agravação das mi­sérias e desastres a quase todos haviam alquebrado o ânimo e a vontade de lutar e resistir.

Simples Capitão patenteou, nesses crudelíssimos e inesquecíveis dias, qualidades e temperamento de legítimo e prestigioso General, dependendo, em não poucas ocasiões, a salvação geral da sua pertinácia e inquebrantável calma.

Se é preciso morrer ‒ costumava bradar aos tímidos e desconsolados ‒, pois bem morramos todos! Neste mundo ninguém fica para semente; disto podem ter certeza.

Verdade é, que a responsabilidade da marcha até à fronteira paraguaia e da invasão do território inimigo sobre ele cabia quase inteira, pois fora o seu voto preponderante no Conselho de Guerra em que se decidira a temerária aventura, era temerária, de fato; pois de 1.600 homens de guerra que trans­puseram o Apa, só voltaram, trinta e cinco dias depois, 720!

Dessas angustiosíssimas semanas, em que a coluna brasileira se arrastava por impenetráveis e imensos campos, tangida pelo desespero, cercada de incên­dios diariamente renovados por ferozes persegui­dores, buscando só e só salvar as suas bandeiras e os seus canhões ‒ isto é, a sua honra ‒ entregue a todas as contingências imagináveis da morte pela fome, pela peste e pelas balas, daquele período tão extraordinário diz concisamente a Fé de Ofício de Pereira do Lago o seguinte:

Na parte que o Comandante do 17° de Voluntários da Pátria deu ao Comando das forças a 6 de maio, foi declarado que, tendo pedido para acompanhar aquele Batalhão, muito o coadjuvou, dando provas da maior coragem e marchando sempre na frente.

Tomou parte na retirada das Forças para o Forte paraguaio de Bela Vista a 8 e daí para Nioaque, onde chegou a 11 de junho. Assistiu aos combates de 6, 8, 9, saindo as forças do acampamento da Invernada e ao geral de 11, tudo do mês de maio, à margem direita do Rio Apa, e bem assim aos tiroteios contínuos de 14, 16, 18, 19, 23, 25 e 26 do dito mês de maio. Em virtude da nova organização dada, em Ordem do Dia do comando a 1° de Junho, à Comissão de Engenheiros, reduzindo-a a três mem­bros e estes pertencentes à arma especial, deixou por isso o exercício da mesma Comissão. Na Ordem do dia do Comando em Chefe, n° 3, de 8 do mesmo mês, relatando as ocorrências nas marchas, contramarchas e combates foi seu nome contem­plado várias vezes por ter-se portado sempre com bizarria e sangue frio, dignos de muito particular menção.

Com mais especificação e naturalmente menos frieza oficial, diz a história da Retirada da Laguna em suas páginas 86 e 87, resumindo em breves traços o caráter do notável militar e mostrando a participação que tivera nas imprudências da coluna expedicionária e no resgate de todos os heroicos confrontos:

À testa dos mais entusiastas se via o Capitão Pereira do Lago, oficial tão atilado, quanto positivo e perti­naz, com uma coragem que facilmente se exalta e nunca desce do nível a que uma vez sobe. Cabe-lhe certamente o maior quinhão nas nossas temerida­des; mas também, mais tarde, soube sempre nas jornadas mais difíceis da nossa retirada fazer frente a todas as necessidades do momento com a sua atividade, com a sua poderosa iniciativa e com a perspicácia do seu lance de vista, grandes dotes, ainda de mais a mais realçados pela sua lisura, amenidade e simplicidade de caráter.

E, aludindo a fatos anteriores, acrescenta aquela narrativa:

Há muito conhecíamos quanto dele se podia esperar. Mais de um ano antes, quando o desventurado General Galvão se viu em risco de morrer à fome com toda a sua gente no Coxim, coube à Comissão de Engenheiros ir reconhecer a possibilidade de passagem para o Sul, e os perigos dessa exploração, a caminhar-se para frente sem guia através das planícies inundadas que nos cercavam, eram tais e tão evidentes, que os Engenheiros, com autorização do seu Chefe, confiaram à sorte de apontar entre eles os dois oficiais que assim deviam arriscar-se. O primeiro nome que saiu da urna foi o de Taunay: a única probabilidade de salvação para ele em seme­lhante incumbência era ter por companheiro um homem como o Lago, e felizmente o segundo bilhete continha essa indicação. A satisfação foi geral; ho­menagem prestada ao mérito em uma dessas oca­siões em que só a verdade se manifesta.

Acampadas afinal as forças expedicionárias no Porto Canuto, junto ao Rio Aquidauana, objetivo de todos os seus esforços durante a Retirada da Laguna pelo apoio que lhe davam os contrafortes da serra de Amambaí, também chamada Maracaju, e terminadas assim as operações de guerra, gloriosas de certo, mas totalmente infrutíferas, teve a coluna ordem de seguir, depois de conveniente descanso e reparação, para a capital Cuiabá. Com muita ordem e rapidez fez-se essa longa marcha de concentração, desenvol­vendo nela o Capitão Lago, segundo reza a Ordem do dia de 19.10.1867:

Constantes e nunca suficientemente louvados zelo e inteligência e concorrendo para que tudo caminhasse sempre com a máxima regularidade e disciplina.

Concluídas todas essas afanosas obrigações, pediu então para se reunir ao seu Corpo do Estado-Maior de 1ª Classe e partir para o Rio de Janeiro e na Ordem do dia de 21 de Novembro, ao deixar as funções de Assistente do Ajudante General, em que tanto se distinguira e tão alto se levantara no conceito de todos, colheu ainda os mais estrondosos elogios. Fez-se de viagem e, no dia 20.02.1868, apresentou-se na Corte ao seu Corpo.

Já então, pelos extraordinários feitos de Mato Grosso lhe brilhava no largo e leal peito o oficialato da Ordem da Rosa, além do hábito de Aviz conquistado por 20 anos de irrepreensíveis serviços e compa­nheiro da medalha da campanha do Uruguai, que ganhara como simples Praça de Pret. (Taunay, 1893) (Continua...)

Bibliografia

 

TAUNAY, Alfredo de Escragnolle. Coronel Antônio Florêncio Pereira do Lago – Brasil – Rio de Janeiro, RJ – Revista Trimestral do Instituto Histórico e Geográfico do Brasil – Tomo LVI – Parte Segunda – Companhia Tipografia do Brasil, 1893.

 

 

(*) Hiram Reis e Silva é Canoeiro, Coronel de Engenharia, Analista de Sistemas, Professor, Palestrante, Historiador, Escritor e Colunista;

 

Campeão do II Circuito de Canoagem do Mato Grosso do Sul (1989)

Ex-Professor do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA);

Ex-Pesquisador do Departamento de Educação e Cultura do Exército (DECEx);

Ex-Presidente do Instituto dos Docentes do Magistério Militar – RS (IDMM – RS);

Ex-Membro do 4° Grupamento de Engenharia do Comando Militar do Sul (CMS)

Presidente da Sociedade de Amigos da Amazônia Brasileira (SAMBRAS);

Membro da Academia de História Militar Terrestre do Brasil – RS (AHIMTB – RS);

Membro do Instituto de História e Tradições do Rio Grande do Sul (IHTRGS – RS);

Membro da Academia de Letras do Estado de Rondônia (ACLER – RO)

Membro da Academia Vilhenense de Letras (AVL – RO);

Comendador da Academia Maçônica de Letras do Rio Grande do Sul (AMLERS)

Colaborador Emérito da Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra (ADESG).

Colaborador Emérito da Liga de Defesa Nacional (LDN).

E-mail: [email protected].

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