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Hiram Reis e Silva

Terceira Margem – Parte DCLXIII - Gusmão e o Tratado de Madrid – Parte IV


Terceira Margem – Parte DCLXIII - Gusmão e o Tratado de Madrid – Parte IV - Gente de Opinião

Bagé, 15.11.2023

 

Estará o leitor recordado que as muitas testemunhas da informação jurídica, aberta pelos Padres jesuítas da missão do Uruguai coincidiram todas em declarar que os moradores de Buenos Aires, Santa Fé e Corrientes só por volta de 1717 ou 1718, começaram a entrar nas Vacarias do Mar, para se entregar às fainas da ganadaria. Todas declararam igualmente que desde essa data aqueles moradores se habitua­ram a permanecer anos seguidos, caçando sem medida as vacas para vendê-las ou os respectivos produtos, aos portugueses da Colônia. Entrada e permanência de santafecinos e buenairenses ([1]) nas campanhas do Uruguai coincidiram exatamente com a terceira fundação da Colônia pelos portugueses, a chegada em número relativamente grande dos casais transmontanos àquela Praça e o reaparecimento de um português, homem de grandes iniciativas comer­ciais e industriais, Cristóvão Pereira de Abreu.

Reconstruída a Colônia, recomeçou também a deser­ção dos portugueses, que em grande número bus­cavam a vida mais larga e fácil que lhes ofereciam as povoações platinas. Governava a Colônia desde 1722, o célebre Antônio Pedro de Vasconcelos, gran­de chefe militar que obrigava todos os moradores da Praça, e, em particular, os soldados a uma disciplina severa. As deserções eram frequentes. E em todas as classes. Não só os Soldados, mas alguns oficiais e até funcionários superiores se aproveitavam de qualquer ensejo para se evadirem.

Mais que ninguém, os soldados-vaqueiros eram favorecidos nesse desígnio, pelas circunstâncias. Os portugueses caçavam as vacas a cavalo e a tiro. Armados de espingarda, e cinturão abastecido, os que saíam da Praça a vaquear, e se afastavam nas suas correrias atrás das distantes manadas que vagueavam longe da Colônia, eram irresistivelmente solicitados a abandonar a tropa a que pertenciam, para se incorporarem aos vaqueiros espanhóis que vagabundeavam nas campanhas e partilhar da sua vida solta. Quando teriam começado os desertores portugueses a associar-se aos foragidos espanhóis que erravam nas campanhas?

Já aqui citamos uma carta do Governador do Rio de Janeiro, Luís Vahia Monteiro, na qual, em agosto de 1728, se referia ao fato de que nas campanhas entre a Colônia e o Rio Grande “andavam já coisa de trinta portugueses e sessenta castelhanos” e destes últi­mos dizia que eram gente criminosa em Buenos Aires e bandoleiros. ([2]) Lembremo-nos que para a Colô­nia se enviavam degredados e que estes não seriam, por via da regra, os últimos a desertar, atraídos pela vida daqueles bandoleiros.

Mais tarde o Padre Diogo Soares, que estava na Colônia havia um ano, escrevendo ao Rei em junho de 1731, referia-se também e por mais que uma vez aos desertores que abandonavam aquela Praça.

Depois de afirmar a necessidade de fortificar o Rio Grande, comentava:

Verdade é que não serão poucos os desertores, não obstante ter-me mostrado a experiência que estes buscam antes a guarda do [Rio] de São João que o Rio Grande...

A opção equivalia neste caso à da vida sedentária e mais ou menos tranquila das povoações espanholas, que lhes permitia a incorporação à sociedade das Províncias Platinas, representada pela guarda do Rio São João, em vez da vida nômade e insegura das campanhas do Rio Grande, pois ai não havia por então qualquer estabelecimento fixo. Mas que alguns desertores se escapavam nessa direção e para correr os riscos daquela vida aventurosa, se conclui da sequência da carta do Padre Diogo Soares:

Também não nego que pode haver alguns furtos nas cavalhadas e gados desta Colônia, mas creio que perto de 20.000 reses que faltaram nas de V. Majestade pou­co antes que eu aqui chegasse, não foram os deser­tores do Rio Grande os que se aproveitaram delas. ([3])

Quer dizer, a construção da fortaleza e a fundação do presídio do Rio Grande provocariam imediata­mente as deserções entre os soldados da sua guar­nição: e os desertores haviam de entregar-se pela fatalidade do meio geográfico e social que os recebia às práticas ilícitas dos gaudérios, aumentando assim os furtos dos cavalos e gados da Colônia.

Avaliava o Governador do Rio de Janeiro, Luis Vahia Monteiro, no ano de 1728, por informações diretas ali colhidas, em sessenta espanhóis e trinta portu­gueses, os “bandoleiros”, que vagueavam nas cam­panhas do Rio Grande, “até ao cerro de São Miguel e Rio de Martim Afonso”. Em que proporção teria crescido nos anos seguintes esta população? Nem os documentos o registram, nem seria fácil calculá-los. Também os documentos espanhóis, por nós consul­tados, não esclarecem esta dúvida. Um dado possuímos, todavia, para avaliarmos quanto era grande o número dos desertores da Colônia.

Em carta de 12.09.1695, o Procurador das Províncias do Prata, Gabriel de Aldonate y Rada, em petição dirigida ao Rei, informava, com alarma, que desde 1682 até àquela data haviam passado às Províncias e cidades platinas e peruanas, mais de 300 portugueses evadidos daquela Praça. O Procurador, após denunciar os perigos desta afluência de portugueses, pedia ao Rei que tomasse as devidas providências para que fossem todos recolhidos à cidade do Esteco. ([4])

Se entre 1682 e 1695, durante um período de treze anos e quando a Colônia iniciava, com escassos recursos e povoadores a sua carreira, foram tão numerosos os desertores, pode calcular-se como teriam aumentado, desde 1716, quando a população crescera rapidamente e mais que tudo aumentara a guarnição com tropas estranhas ao núcleo e ao meio dos casais transmontanos.

Seria de estranhar até que, em 1728, fossem apenas trinta os portugueses que andavam nas campanhas: mas é certo que o Governador Vahia Monteiro se refere exclusivamente aos que vadeavam na campa­nha do Rio Grande, por oposição à da Colônia, e que já então podiam, de parceria com os espanhóis, suprir um comércio razoável de couros, que as embarcações do Rio vinham buscar àquele porto. E é de presumir que nas campanhas do Sul fosse maior aquele número.

Estas relações dos gaudérios ou gaúchos com os portugueses, a quem vendiam gado vacum, cavalar ou muar, mantém-se, segundo o testemunho de viajantes e escritores espanhóis, durante todo o século XVIII.

Mas relações mais íntimas podiam travar-se entre portugueses fora da lei e os que viviam dentro dela. Quando, em 1735, rebentou o conflito do Prata e os espanhóis se preparavam para sitiar a Colônia, o seu Governador, Antônio Pedro de Vasconcelos, cuidou imediatamente de mandar aviso por terra a São Paulo e ao Rio; de arrebanhar gados para a Colônia nas campanhas, mais distantes; e, sendo possível, ocupar o passo de Rio Grande. A 29.10.1735, o Brigadeiro José da Silva Pais, que então governava interinamente a Capitania do Rio de Janeiro, escrevia ao Conde de Sarzedas, Governador de São Paulo, e, referindo-se àquele fato, comunicava que a Antônio Pedro de Vasconcelos se oferecera um Domingos Fernandes de Oliveira:

não só para trazer os avisos por terra, senão também convocar alguns desertores que se pudessem juntar, passarem à pampa e rebanharem todos os gados para a nossa parte. ([5])

Domingos Fernandes de Oliveira, depois de atravessar as campanhas do Uruguai, chegou a situar-se com a sua pequena força a 10 léguas da Barra do Rio Grande. Atacado por um corpo de tropa espanhola, muito mais numerosa, sob o comando de Estevão del Castillo, caiu em poder do inimigo com mais vinte e cinco homens. Apenas alguns dos seus subordinados conseguiram escapar.

Pela carta de Silva Pais, ficamos sabendo que não só continuavam os desertores portugueses a vaguear na pampa, mas que dentro da Colônia havia quem antecipadamente contasse com o seu auxilio, o que supõe relações anteriores entre os dois grupos.

De quantos homens se comporia o pequeno Corpo de Domingos de Oliveira e qual, dentro dele, a propor­ção daqueles desertores?

Como o Governador da Colônia não podia distrair ([6]), em véspera de ataque à Praça pelos espanhóis e os índios Tape, um número apreciável de defensores, supomos que a maior parte dos homens arregi­mentados por Domingos de Oliveira, seriam deser­tores, dos que erravam pelas campanhas do Uruguai e do Rio Grande.

Mas a posição do Passo do Rio Grande já então importava demasiadamente à economia do Brasil, e muito mais em ocasião de guerra para ser abandonada. Antônio Pedro de Vasconcelos escreveu, pois, ao Conde de Sarzedas, indicando-lhe o nome de Cristóvão Pereira de Abreu, que então se encontrava no Rio de Janeiro ou nas Minas, como a única pessoa capaz de substituir com vantagem Domingos de Oliveira na sua missão.

Já em marcha, Cristóvão Pereira escrevia a Gomes Freire de Andrade, de Santos, comunicando-lhe que se dirigia por terra ao seu destino, com o propósito de incorporar alguns voluntários pelo caminho “e os que mais houver nas vizinhanças do Rio Grande”. ([7])

Já do Rio Grande de São Pedro, a 29.09.1736, comunicava de novo a Gomes Freire de Andrade o resultado das suas diligências e como encontrara no Rio Grande “sessenta pessoas postas da outra parte, e esperando por mim”. ([8])

É de calcular que a maior parte dessas pessoas, “postas da outra parte”, isto é, do Sul do Canal, e a que não chama soldados, note-se bem, fossem os antigos desertores, reunidos pelo seu antecessor. Não nos faltam razões para supô-lo. Não só, à sua chegada, ele soube que esses homens acabavam de atacar uma estância das reduções dos Padres e algu­mas toldarias dos Minuano, desordens muito próprias de gaudérios e que podiam embaraçar a ação do seu novo Comandante, mas não tardava que, em carta de fins de janeiro de 1737, Cristóvão Pereira se quei­xasse a Gomes Freire de Andrade de que alguns des­ses homens haviam desertado e dos seus des­mandos. ([9])

As deserções continuavam, pois, a alimentar esse fundo de pré-gaúchos indisciplinados e depredado­res, que vagueavam, quer nas campanhas do Uru­guai, quer do Rio Grande do Sul. E pela primeira vez, ao que supomos, os responsáveis e representantes do Governo, procuram arregimentá-los de novo, chamando-os à disciplina militar, para defesa do Estado. Volvidos trinta anos sobre estas informações de Vahia Monteiro, o navegante francês Louis Antoine de Bougainville ([10]) escrevia:

Formou-se desde alguns anos ao Norte do Rio da Prata uma tribo de gente inculta que poderá converter-se cada vez mais em núcleo perigoso para os espanhóis, se não se tomarem medidas prontas para a sua destruição. Alguns malfeitores escapados à justiça tinham-se retirado para o Norte de Mal­donado. Agregaram-se-lhes muitos desertores. E insensível­mente cresceu o número deles. Com as mulheres tomadas aos índios começou uma raça que vive apenas de pilhagem. Assegura-se que passam já de 600.

Os historiadores platinos citam esse texto como sem­do o primeiro que se refere a esta nova agrupação social. E só mais tarde viajantes e demarcadores espanhóis, como Aguirre, Oyarvide e Azara, em suas descrições caracterizam os gaúchos ou gaudérios como homens rústicos e descalços, envoltos no pon­cho, “hipocentauros” ([11]) ou “sátiros” ([12]), aos quais não falta a viola e o cavalo, as bolas, o laço e a faca para apanhar uma rês e assar a carne de que se alimentam, trabalhando apenas para adquirir o taba­co que fumam ou o mate que bebem sem açúcar, durante todo o dia.

Apesar disso, como vimos, as origens do gaúcho podem rastrear-se desde muito mais cedo e seguir-se a formação do tipo, através dos documentos du­rante o meio século anterior ao texto de Bougain­ville. Muito antes dessas referências, o Governador de Buenos Aires D. Miguel de Salcedo, tendo-lhe constado, em agosto de 1735, que muitos espanhóis vagueavam, entregando-se à pilhagem, nas campa­nhas setentrionais do Rio da Prata e se refugiavam sob vários pretextos, nas estâncias das reduções dos índios da Companhia de Jesus, onde praticavam extorsões e roubos, mandava aos Alcaides dos Sete Povos que não dessem abrigo a nenhum espanhol sem licença especial para transitar por eles. E ao Padre Superior daquelas reduções rogava que mandasse distribuir por todas elas a cópia dessa Ordem. ([13])

Mas, na verdade, Padres e corregedores pouca auto­ridade poderiam exercer sobre os índios que viviam nas estâncias onde guardavam o gado cavalar ([14]) e vacum ([15]) e que se estendiam por larguíssimas dis­tâncias. Para se avaliar das possibilidades da inobe­diência ([16]) dos índios aos Padres, seus diretores, tomemos um caso dos mais típicos. Como é sabido, alguns milhares de índios, sob o comando dos Padres Jesuítas, auxiliaram os espanhóis a sitiar a Colônia durante os anos de 1735 a 1737. Ora, a 28.02.1738, o Governador de Buenos Aires, D. Miguel de Salcedo ordenava, com aspereza, ao Padre Lourenço Daffe que se retirasse imediatamente com seus índios para as reduções. Acusava-os nada menos do que have­rem introduzido carnes dentro da mesma Praça que estavam sitiando; de entrarem e saírem dela, aos grupos de trinta, em público e dia claro. Não obstan­te os reiterados pedidos àquele Padre para dar remédio a semelhante escândalo foi necessário que as tropas espanholas se opusessem pelas armas à traição desses índios. Tinham eles levado a ousadia até sair de noite, em grande número, para atacar as guardas espanholas. Por isso o Governador ordenava ao Padre que, no prazo máximo de três dias, se retirasse com os seus índios para as reduções, e que não permitisse a nenhum ficar nas campanhas. ([17])

Não eram apenas desertores de tropas de guarnição os portugueses que se juntavam a estes bandos de espanhóis. Outra ordem do Governador de Buenos Aires, D. Miguel de Salcedo, dos princípios do ano de 1740, deixa-nos entrever que outra espécie de por­tugueses e por outros motivos se juntasse à turma dos gaudérios.

Ao Governador Salcedo constara que nas campanhas imediatas à redução do Santo Ângelo, um dos Sete Povos Orientais do Uruguai, se encontravam vários portugueses que haviam desertado da Província de São Paulo com seus bens e escravos. Resolveu o Governador fazer conduzi-los a Buenos Aires com toda a segurança e sigilo. Deu, por consequência, ordens a D. Nicolau Melordui, segundo ajudante da­quela cidade, para que passasse com vinte soldados à redução do Japeiú e daí a S. Ângelo, para se fazer cargo das ([18]) pessoas e bens daqueles portugueses e conduzir tudo à capital portenha. E porque o bom êxito da missão dependia de auxílio que lhes dessem as reduções da Companhia, levava ordens para os Padres, corregedores e caciques respectivos, mi­nistrarem as balsas, carruagens e mantimentos que fossem necessários àquele oficial. ([19])

Não se conhecem os resultados da missão ordenada por D. Miguel de Salcedo. Em vão procuramos documento que os esclarecessem. Mas não é crível que portugueses de S. Paulo, isto é, paulistas com a prática do bandeirismo, se deixassem colher com a facilidade sonhada pelo Governador de Buenos Aires. Inclinamo-nos, sim, a crer que pelos seus contatos com os índios ou os gaudérios da região, eles fossem avisados a tempo de ludibriar a diligência do aju­dante Melordui. E se eles, como se depreende dos dizeres daquele Governador, eram foragidos à justi­ça, tão pouco poderiam acolher-se aos núcleos já então organizados e sob direção militar do Rio de São Pedro.

Julgamos com os documentos aqui citados haver trazido novas luzes ao problema da formação do tipo social do gaúcho. Os historiadores platinos não na­dam longe das conclusões a que chegamos. É assim que se referindo a este problema Pablo Blanco Acevedo escreve:

Mezcla heterogenia de aborígenes, de españoles desertores de tropas regulares, de criollos nacidos en el propio suelo, de brasileños y portugueses, las condiciones de su vida errante en la inmensidad del campo, sin más sujeción que la autoridad da un jefe o de un caudillo, dieranle al gaucho, producto típico de un ambiente así integrado, los caracteres precisos e indelebles con los cuales ha pasado a la posteridad. El gaucho Río-platense, el montonero artiguista Oriental o del litoral argentino, fue en su origen una expresión única y genuina de la campana uruguaya. Surgió en el período anterior a la guerra guaranítica y constituyó una entidad definida, cuando España y Portugal se disputaban el tesoro de los ganados que pastaban libremente en las praderas del país. ([20])

Embora tão cheias de substância, estas palavras não atingem, ao que nos parece, o fundo do problema. Voltemos ao princípio, isto é, ao título deste capítulo. O berço do Uruguai, como do Rio Grande do Sul, foi, o “Território da Colônia”, ou sejam as terras compre­endidas entre a margem Setentrional do estuário platino e a povoação da Laguna, sobre as quais Por­tugal reivindicava contra Espanha a soberania políti­ca. É deste choque de soberanias, naquela vastís­sima Terra de Ninguém, que vai nascer o gaúcho, “expressão única e genuína” não só, como diz Blanco Acevedo, da campanha Uruguai, mas também, como nós mostramos, da campanha do Rio Grande de São Pedro. Os gaudérios ou gaúchos nascem conjunta­mente dum gênero de vida novo, cujas sementes fo­ram lançadas pelos portugueses, em oposição essen­cial aos jesuítas, e dum hibridismo de cultura ibero-ameríndio. Há nesta gênese do gaúcho qualquer coisa de semelhante à dos bandeirantes paulistas.

Embora se filie na indústria da ganadaria, criada pelos portugueses à margem do estuário platino e sofrida, por muito tempo, sem hostilidade declarada pelos Governadores de Buenos Aires, esse gênero de vida cedo revestiu o caráter duma atividade ilícita e proibida. A nova sociedade dos gaudérios nasce da ilegalidade do contrabando. Germina à margem da lei, mas alimentando-se do que havia de inumano e de absurdo nessa lei.

Colocado fora da sociedade organizada, o gaudério regride ao primitivismo dos índios e à indisciplina, amoralidade e violência daqueles que a sociedade com obstinação repele.

Quando mais tarde o Estado, e os seus representan­tes, mercê de circunstâncias novas, procuram valer-se dos seus serviços e enquadrá-los em organismos próprios, eles reentram pouco a pouco na disciplina comum a esse novo grupo, embora guardando sem­pre a frugalidade silvestre, a bravura inata e o amor do perigo, da aventura e da independência, que constituem o travo especifico do seu caráter e tipo social.

Limitar, como faz Blanco Acevedo e outros historia­dores uruguaios, o habitat e a formação desse tipo à campanha uruguaia, é apoucar também os funda­mentos sociais e históricos da República do Uruguai. Os desertores portugueses ou “bandoleiros” espa­nhóis, igualmente inadaptados à disciplina da socie­dade a que fugiam, que se tornavam vaqueiros e contrabandistas, e, por hibridismo final de sangue e de cultura, sazonaram no tipo do gaúcho, fossem evadidos de Buenos Aires, de Santa Fé, da Colônia, da Laguna ou de São Paulo, terminaram por amal­gamar-se no mesmo grupo laxo ([21]) que se estendia desde as margens do Prata à Laguna, desde as estâncias dos Sete Povos até ao Mar ou às Lagoas Mirim ou dos Patos.

É certo que em dois documentos portugueses, as cartas de Vahia Monteiro e a do Padre Diogo Soares, que se referem aos desertores portugueses e à sua promiscuidade com os espanhóis, se alude a dois grupos: o da campanha da Colônia e o da campanha do Rio Grande. Ao que supomos esta diferenciação é de ordem geográfica e não social.

Desde os começos do século XVIII, pelo menos, se praticavam as comunicações diretas por terra, entre a Colônia do Sacramento e a Laguna. Em 1703, um certo Domingos da Filgueira escrevia o “Roteiro por onde se deve governar quem sair por terra da Colônia do Sacramento para o Rio de Janeiro ou Vila de Santos”. ([22])

Segundo o roteirista, saindo da povoação da Colônia, marchava-se, durante vinte e três dias, até à serra de Maldonado e à costa de Castilhos. Daí tomava-se e seguia-se constantemente a praia até dar em po­voado, o qual naquele tempo se deparava apenas na Laguna. De Castilhos até ao Rio Grande tardavam quinze dias. Aí chegados, era necessário construir uma jangada para atravessar a Barra. Dali até a Laguna gastavam-se ainda trinta dias. Mas as chuvas e outros contratempos alongavam a viagem por mais tempo.

Por esta espécie de cordão umbilical, que era o tra­jeto costeiro entre a praia de Castilhos e a Laguna, se unia o Rio Grande às campanhas da Colônia. Até as lagoas Mirim e dos Patos, com pouca diferença, se alargavam as estâncias de Sete Povos, onde vaga­vam as tropas de índios, a cavalo, comandadas por jesuítas ou pelos seus “comissários”.

Muito mais tarde, o geógrafo francês João Batista Bourguignon D’Anville, havia de referir-se em memória, de que adiante nos ocuparemos, àquelas incursões da “cavalaria dos Padres” até ao Mar. Desta sorte, os viajantes que em pequenos grupos faziam a travessia da Colônia até as povoações portuguesas mais próximas, seguindo pela beira-Mar, buscavam duas vantagens: a de uma estrada fácil e onde lhes era permitido caçar, a um lado, e pescar a outro; e, ao mesmo tempo, evitar os encontros inoportunos e perigosos com os Tape das reduções jesuíticas.

As campanhas da Colônia haviam sido, é certo, a matriz, onde sob a fecunda ação dos industriosos colonistas e de Governadores e homens de poderosa iniciativa, como Naper de Lancastre, Veiga Cabral, Cristóvão Pereira de Abreu e Antônio Pedro de Vasconcelos, se formara uma indústria riquíssima e um gênero de vida adaptado à geografia e riqueza econômica, regionais. Desses primeiros anos do século XVIII datam, como vimos, os primeiros pas­sos, ainda frouxos e logo paralisados, da colaboração entre portugueses e espanhóis nas mesmas fainas. Retomada a Colônia pelos espanhóis, só em 1717 renasce, mas desta vez com redobrado vigor e para não mais se extinguir a indústria da ganadaria, em cujas atividades comungam igualmente os portugue­ses da Colônia e os moradores de Buenos Aires, Santa fé e Corrientes. (CORTESÃO) (Continua...)

Bibliografia:

 

CORTESÃO, Jaime. Alexandre de Gusmão e o Tratado de Madrid ‒ Brasil ‒ Rio de Janeiro, RJ ‒ Ministério das Relações Exteriores ‒ Instituto Rio Branco ‒ Departamento de Imprensa Nacional, 1956.

 

DOMINGOS VIEIRA. Grande Diccionario Portuguez ou Thesouro da Lingua Portugueza – Portugal – Porto – Typographia de Antonio José da Silva Teixeira, 1873.

 


(*) Hiram Reis e Silva é Canoeiro, Coronel de Engenharia, Analista de Sistemas, Professor, Palestrante, Historiador, Escritor e Colunista;

 

Campeão do II Circuito de Canoagem do Mato Grosso do Sul (1989)

Ex-Professor do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA);

Ex-Pesquisador do Departamento de Educação e Cultura do Exército (DECEx);

Ex-Presidente do Instituto dos Docentes do Magistério Militar – RS (IDMM – RS);

Ex-Membro do 4° Grupamento de Engenharia do Comando Militar do Sul (CMS)

Presidente da Sociedade de Amigos da Amazônia Brasileira (SAMBRAS);

Membro da Academia de História Militar Terrestre do Brasil – RS (AHIMTB – RS);

Membro do Instituto de História e Tradições do Rio Grande do Sul (IHTRGS – RS);

Membro da Academia de Letras do Estado de Rondônia (ACLER – RO)

Membro da Academia Vilhenense de Letras (AVL – RO);

Comendador da Academia Maçônica de Letras do Rio Grande do Sul (AMLERS)

Colaborador Emérito da Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra (ADESG).

Colaborador Emérito da Liga de Defesa Nacional (LDN).

E-mail: [email protected].



[1]    Buenairenses: natural ou habitante de Buenos Aires. (Hiram Reis)

[2]    “Documentos Interessantes”, Volume L, página 193. (CORTESÃO)

[3]   Vide “Antecedentes”, Tomo I, doc n° LIX. (CORTESÂO)

[4]   “Campaña del Brasil Antecedentes Coloniales”, páginas 367 e 368. (CORTESÃO)

[5]    Vide General JOÃO BORGES FORTE “Rio Grande de São Pedro” páginas 58 e 59 e todo o capitulo a “Colônia do Sacramento e o Rio Grande” onde se refere largamente à missão de Fernandes de Oliveira e à sua substituição em 1736 por Cristóvão Pereira. (CORTESÃO)

[6]    Distrair: como termo militar – Distrair as forças do inimigo, obrigá-lo a que as divida... (DOMINGOS VIEIRA)

[7]    Revista do Instituto Histórico e Geográfico do Rio Grande do Sul, Porto Alegre, IV trimestre de 1946, página 425. (CORTESÃO)

[8]    Ibidem, página 358. (CORTESÃO)

[9]    Vide AURÉLIO PORTO, obra citada, páginas 366 e 367. (CORTESÃO)

[10]  BOUGAINVILLE, “Voyage autour du Monde”, Paris, 1771 , transcrito por Pablo Blanco Acevedo, obra citada, página 187. (CORTESÃO)

[11]  Hipocentauros: centauro ‒ ser mitológico, misto de homem e cavalo. (Hiram Reis)

[12]  Sátiros: ser mitológico, misto de homem e bode. (Hiram Reis)

[13]  B. N. R. J., Coleção De Angelis. (CORTESÃO)

[14]  Cavalar: equinos. (Hiram Reis)

[15]  Vacum: bovinos. (Hiram Reis)

[16]  Inobediência: desobediência. (Hiram Reis)

[17]  B. N. R. J., Coleção De Angelis. (CORTESÃO)

[18]  Se fazer cargo das: apresar. (Hiram Reis)

[19]  B. N. R. J., Coleção De Angelis. (CORTESÃO)

[20]  Obra citada, Tomo I, páginas 186 e 187. (CORTESÃO)

[21]  Laxo (do latim laxus): frouxo, bambo, não hirto. (DOMINGOS VIEIRA)

[22]  Vide SIMÃO PEREIRA DE SÁ, “História topográfica e bélica da Nova Colônia do Sacramento do Rio da Prata”, editora do Liceu Literário Português do Rio de Janeiro, 1900, com prefácio de Capistrano de Abreu no qual se inclui aquele documento, página XLVI. (CORTESÃO)

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