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Gente de Opinião

Hiram Reis e Silva

Demarcadores, Heróis Hlvidados – Parte IV


Hiram Reis e Silva  - Gente de Opinião
Hiram Reis e Silva

Bagé, RS, 09.03.2020

 

 

Jornal do Brasil, N° 63

Rio de Janeiro, RJ ‒ Sexta-feira, 14.03.1930

 

Os Nossos Limites com a Venezuela

 

O “Jornal do Brasil” ouve o Comandante Braz de Aguiar, Chefe da Missão Brasileira

 

A Comissão Mista e o que ela já Realizou ‒ Episódios Interessantes ‒ A Odisseia dos Trabalhos ‒ O contato com os Índios ‒ Tudo Nacional ‒ O Magnífico Estado Sanitário do Pessoal

 

 

O Comandante Braz Dias de Aguiar recebeu o redator do Jornal do Brasil na manhã radiosa de ontem, em sua aprazível residência da Tijuca, à rua Visconde do Cabo Frio. O Comandante Braz de Aguiar não perde, mesmo no Rio, nos poucos dias em que que aqui permanece, o hábito salutar da sua vida de campo: levantar com a madrugada.

 

Pouco depois das 7 horas ele já está em sua residência pronto para receber o mais matinal dos visitantes. Anteontem telefonamos para sua casa, pedindo-lhe que nos recebesse. E ele respondia-nos:

 

  Pois não. Já amanhã, posso recebê-lo em nossa casa, pela manhã.

 

  Às 11 horas. Comandante.

 

E ele:

 

  Não, venha mesmo às 8 horas que já me encontrará de pé.

 

E, assim, ontem, às 8 horas e pouco, apertávamos o botão da campainha do ponto de sua residência. Um minuto depois ele nos recebia na sua confortável sala de jantar.

 

No centro, divisamos um bronze representando um pirata pronto para a abordagem. Nas paredes, magníficas marinhas e, dando frente ao visitante, certamente sinal de fervor cristão da dona da casa, um grande quadro, também em bronze, representando o Coração do Jesus.

 

Os Setores das Nossas
Comissões de Limites

 

O Dr. Otávio Mangabeira, ao assumir o cargo de Ministro do Exterior, prestou o máximo da sua atenção, ao grave e sério problema da demarcação do nosso território procurando concluir dessa maneira, patrioticamente, a obra encetada pelo Barão do Rio Branco, e dividiu, com acerto, as nossas fronteiras, para a execução prática dessa tarefa em três setores: o Setor Norte, o Setor Oeste e o Setor Sul.

 

O Primeiro, compreende os nossos limites com a Venezuela e as três Guianas: o Segundo, diz respeito aos nossos limites com a Colômbia, Bolívia e o Terceiro ocupa-se das fronteiras brasileiras com o Paraguai, Argentina e o Uruguai. O chefe da Comissão de Limites do Setor Sul é o Marechal Gabriel Pereira Botafogo; o da Comissão do Setor Oeste é o Dr. Estanislau Bousquet e o do Setor Norte é o Capitão-de-Mar-e-Guerra Braz de Aguiar.

 

Foi a este, pois, que acaba de regressar de Cucuí, onde esteve iniciando, com a Comissão Venezuelana, o serviço de limites do nosso País com a Venezuela e que já se apresta para seguir com destino ao Norte, a fim de começar o trabalho, com a missão britânica, de demarcação com a respectiva Guiana, que fomos ouvir acerca do que ele já pode realizar.

 

Ouvindo o Chefe do Setor Norte

 

Durante duas longas e agradáveis horas o Comandante Braz de Aguiar expôs ao nosso companheiro os curiosíssimos episódios dessa primeira jornada, apontando-nos documentos, desdobrando-nos mapas das regiões a demarcar, para que bem víssemos a penosa tarefa que pesa sobre os ombros dessas Comissões Científicas, obrigados todos os seus membros, chefes, auxiliares e trabalhadores a desempenhar a sua missão, ora, vadeando Rios e cachoeiras, às vezes, com água até a cintura, ora, montando serras de centenas de metros de altura, de dia ou de noite, ao Sol e à chuva. Disse-nos o Comandante Braz:

 

É devido a esses graves empecilhos que os trabalhos de limites com um único País, mas que representam milhares de quilômetros de extensão, como as nossas fronteiras com a Venezuela, que vão a mais de 1.300, duram, de ordinário, meses e meses, anos e anos. É preciso estar bem a par dessas ocorrências para se poder ajuizar da demora de semelhante trabalho.

 

Não são apenas as condições do terreno que se deve atender. É preciso pensar nas condições climatéricas e meteorológicas. Ainda este ano quando procedia à demarcação de limites com a Venezuela, somente no mês de janeiro tivemos 30 dias de chuva forte. Que é possível fazer nessas ocasiões? Como, com um céu de chumbo, é possível tomar observações?

 

O Comandante Braz de Aguiar sorri e continua:

 

Tenho encontrado pessoas que me dizem, ao me encontrarem no Rio: “Dias, você traça limites daqui?

 

É que não sabem que nem sempre se pode executar o serviço. Aqui venho de fugida. Agora mesmo bati o “record” da distância entre Cucuí e Rio: vim de lá até aqui em 23 dias. Cheguei ao Rio no dia 5, à noite, e no dia 20 já vou regressar ao Norte. Outros me interrogam: “Mas, você vai traçar limites que o General Rondon já determinou?

 

Ledo engano; a Comissão do benemérito bandeirante não é de limites. Ela é de fiscalização de fronteiras, de determinação do Ministério da Guerra. Certo, no seu percurso, o General vai fazendo observações, mas nunca traçando limites.

 

A Partida da Comissão

 

Depois desse exórdio ([1]), em que o Comandante Braz de Aguiar procura desfazer erros em que muita gente labora, resultando em injustas críticas para essas Comissões técnicas disse-nos ele:

 

A Comissão que lidero partiu do Rio, a 10.10.1929, a fim de se encontrar a 1° de dezembro, com a Comissão Venezuelana, na vila de São Carlos, território da República da Venezuela. Passando sobre toda uma série de dificuldades, a maior das quais a exiguidade do tempo, a Comissão na véspera daquela data estava em Cucuí.

 

No dia 1° de dezembro, dirigi-me a S. Carlos verificando que a outra Comissão não e certificando-me de que, dadas as dificuldades do transporte, não poderia alcançar aquele ponto antes de 15 de janeiro.

 

 

O Início dos Trabalhos

 

Como não era possível aguardar tanto tempo a chegada da Comissão Venezuelana, iniciei o traçado da linha Cucuí até o salto Huá, no Rio Maturacá, seguindo o mais possível a orientação da Comissão Mello Nunes, em 1914. Partindo da ilha S. José segue a linha o rumo SE; depois do 4 minutos passa pelo Igarapé Bonte, cujas margens baixas e alagadas vão até aos Igapós manadeiros do Igarapé chamado da Joaninha.

 

Continua o terreno baixo e alagado até uma pequena elevação, onde existe uma capoeira. Saindo dessa capoeira, caímos em um grande baixo, onde somente em pontes do mais de 100 menos de comprimento conseguimos passar.

 

Só encontramos terra firme no quilômetro, 10 onde está o acampamento da Dúvida, colina de 39 m de comprimento, por 18 de largura e 1,60 de altura, em relação à planície circunvizinha. Daí por diante, encontram-se baixos, Igarapés, Igapós até o quilômetro 15, onde acertamos em outra elevação de uns 600 m do largura, por 1.000 de comprimento.

 

Daqui partindo, caímos na planície sempre molhada e sulcada por numerosos Igarapés e baixios, até encontrar as águas dos afluentes do Erubichy. Desse modo, a linha geodésica Cucuí-Maturacá corre em uma planície emoldurada pela serra de Parima ou do Canabury e a margem esquerda do Rio Negro, sulcado por inúmeros igarapés formando um plexo inextrincável do vasos comunicantes que, à menor chuva, enchem e transbordam, inundando a planície que se transforma em um oceano no meio da floresta. Tal foi o terreno em que operou a primeira das duas Turmas em que dividi a Comissão, de fins de 1929 a princípios de 1930. Estávamos em meio desse serviço, quando chegou a Comissão Venezuelana, formando-se, então, a Comissão Mista, que ultimou o traçado dessa linha de 84 quilômetros.

 

A outra Turma, que não teve trabalhos menos árduos, subiu o Rio Negro, entrou no Canal de Cassiquiare, depois no Pacimoni, no Bacia, no Maruracá, até o Salto de Huá. Depois de ter determinado as coordenadas desse salto e dos marcos da linha, partindo desse mesmo ponto, foi obrigada a retirar-se por que a enchente do Rio já não permitia o trabalho. Os oficiais, na última noite, já observaram com água pela cintura. Foram colocados cinco marcos na linha Cucuí-Maturacá, além dos quatro que já haviam sido deixados pela Comissão Mello Nunes – Duarte, em 1914, permanecendo assim essa linha perfeita e definitivamente demarcada, de acordo com o protocolo do 31.08.1929.

 

Como se Compunham as Comissões

 

A Comissão Brasileira, disse-nos o Comandante Braz Dias de Aguiar:

 

Compunha-se da minha pessoa, como chefe; CT Waldemar de Araújo Motta e Capitão Francisco Pereira da Silva, ajudantes; Capitães Drs. João Baulino de Carvalho e Manuel Maurício Sobrinho, médicos; Capitão Alfredo Luna, secretário; 1° Ten Floriano Machado, auxiliar técnico, além de quatro radiotelegrafistas e um contingente militar. Do lado dos nossos amigos venezuelanos, a Comissão era esta: Dr. José Francisco Duarte, chefe; Dr. Simonpletrl, engenheiro; Dr. A. Hernandez, médico; Félix Cardona, radiotelegrafista e J. Spooner, mecânico. Juntou-se a eles o ornitologista americano H. Halt ([2]), que se fazia acompanhar de sua esposa, trabalhando ambos para a Sociedade de Geografia de Washington. O Dr. José Francisco Duarte, é uma das mais vivas inteligências da Venezuela. De valor; mental inestimável, ele se encontrava, há anos, na Suíça, entregue a estudos de matemática pura.

 

O Magnífico Estado Sanitário da Comissão

 

Falou-nos, depois, o Comandante Braz do estado sanitário do pessoal que foi, uniformemente, excelente, não se registrando, apesar das zonas percorridas, em que os homens, muitas vezes, trabalhavam com água pela cintura, nem um caso de impaludismo, ou de gripe. Contou-nos o ilustre Chefe da Comissão:

 

Aliás, eu sempre que admito o pessoal, recito-lhe o meu regulamento:

 

Trabalhar ao Sol, ou à chuva, usar o mosquiteiro; tomar medicamentos sem discutir para que fim ele é ministrado; respeitar os índios e comer quando seja possível.

 

Esta última parte justifica-se. Às vezes, o rancho está distante. Não é possível destacar um homem para ir buscá-lo, sabendo-se que ele só teria de comê-lo no trajeto.

 

Os médicos da Comissão levaram ambulâncias de acordo com a nosologia da zona a percorrer. Foi instituída a profilaxia contra o impaludismo, a febre tifoide e paratifoide A e B.

 

Empregamos contra o impaludismo a profilaxia defensiva terapêutica e a mecânica. Na terapêutica, sais de quinino e arsenicais. Na mecânica os mosquiteiros.

 

Tudo Nacional

 

Desejo que o Jornal do Brasil frize ([3]) que o nosso aparelhamento é todo nacional; desde a lona até os víveres.

 

Estes os mais frugais e saudáveis: feijão, arroz, farinha. Carne: o “corned beef” ([4]), da indústria paulista, que foi muito apreciado pelos nossos companheiros venezuelanos. Gosto, no contato com o estrangeiro, de lhe demonstrar as nossas possibilidades econômicas. Parece-me que não faço mal com isso.

 

Cercados Pelos Índios

 

A uma pergunta nossa, respondeu o chefe da Comissão:

 

A segunda turma foi cercada pelos índios da tribo dos Macu. Eles se limitaram a observá-la, absolutamente não a molestando. O pessoal quis entreter com eles um comércio mudo, mas nada obteve. É que os rapazes da Turma deixaram os presentes dependurados nas árvores e eles não lhes tocaram. Quem sabe se não cuidaram que se tratava de oferendas que eles fazem aos seus deuses para aplacar-lhes a cólera?

 

Para o Estudo da Nossa Fauna
e da Nossa Flora

 

A Comissão que chefio arrecada sempre tudo quanto possa interessar à nossa geologia e aos museus. A minúscula colina, que encontramos na linha Cucuí-Maturacá, é constituída de um afloramento de cristal. Eu trouxe para a repartição competente amostras de todos os terrenos por onde passamos.

 

Nesse ponto da palestra que, reconhecemos, se fazia longa, levantamo-nos e despedimo-nos. O Comandante Braz de Aguiar, apertando-nos a mão, quis levar a sua gentileza ao ponto de conduzir-nos até ao portão de sua residência. (JB, N° 63)

 

Bibliografia:

 

JB, N° 63. Os Nossos Limites com a Venezuela - O “Jornal do Brasil” ouve o Comandante Braz de Aguiar, Chefe da Missão Brasileira ‒ Brasil ‒ Rio de Janeiro ‒ Jornal do Brasil, N° 63, 14.03.1930.

 

 

 

 

Solicito Publicação

 

(*) Hiram Reis e Silva é Canoeiro, Coronel de Engenharia, Analista de Sistemas, Professor, Palestrante, Historiador, Escritor e Colunista;

 

·     Campeão do II Circuito de Canoagem do Mato Grosso do Sul (1989)

·     Ex-Professor do Colégio Militar de Porto Alegre (CMPA);

·     Ex-Pesquisador do Departamento de Educação e Cultura do Exército (DECEx);

·     Ex-Presidente do Instituto dos Docentes do Magistério Militar – RS (IDMM – RS);

·     Ex-Membro do 4° Grupamento de Engenharia do Comando Militar do Sul (CMS)

·     Presidente da Sociedade de Amigos da Amazônia Brasileira (SAMBRAS);

·     Membro da Academia de História Militar Terrestre do Brasil – RS (AHIMTB – RS);

·     Membro do Instituto de História e Tradições do Rio Grande do Sul (IHTRGS – RS);

·     Membro da Academia de Letras do Estado de Rondônia (ACLER – RO)

·     Membro da Academia Vilhenense de Letras (AVL – RO);

·     Comendador da Academia Maçônica de Letras do Rio Grande do Sul (AMLERS)

·     Colaborador Emérito da Associação dos Diplomados da Escola Superior de Guerra (ADESG).

·     Colaborador Emérito da Liga de Defesa Nacional (LDN).

·     E-mail: [email protected].



[1]    Exórdio: prefácio.

[2]    Muitas Comissões foram contempladas com a participação de cientistas, pesquisadores e naturalistas estrangeiros ou nacionais.

[3]    Frize: enfatize.

[4]    Corned beef: carne enlatada.

Demarcadores, Heróis Hlvidados – Parte IV - Gente de Opinião

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