Quarta-feira, 7 de maio de 2025 | Porto Velho (RO)

×
Gente de Opinião

Frei Betto

MORTE, TEMA-TABU


 

Frei Betto

    

     Amanhã é dia de finados, daqueles  que findaram, os mortos. Será, no futuro, o dia de cada um de nós. Mas quem encara este destino inelutável?

     Entre crianças de seis anos de idade convidadas a escrever cartas a Deus, uma delas propôs: “Deus, todo dia nasce muita gente e morre muita gente. O Senhor deveria proibir nascimentos e mortes, e permitir a quem já nasceu viver para sempre”.

     Faz sentido? Seriam evitados a superpopulação do planeta e o sofrimento de morrer ou ver desaparecer entes queridos. Mas quem garante que, privados da certeza de finitude, essa raça de sobre-humanos não tornaria a nossa convivência uma experiência infernal? Simone de Beauvoir deu a resposta no romance “Todos os homens são mortais”.

     É esse ideal de infinitude que fomenta a cultura da imortalidade disseminada pela promissora indústria do elixir da eterna juventude: cosméticos, academias de ginástica, livros de autoajuda, cuidados nutricionais, drágeas e produtos naturais que prometem saúde e longevidade. Nada disso é contraindicado, exceto quando levado à obsessão, que produz anorexia, ou à atitude ridícula de velhos, que se envergonham das próprias rugas e se fantasiam de adolescentes.    

     Tenho amigos com câncer. Um deles observou: “Outrora, era tabu falar de sexo. Hoje, falar de morte”. Concordei. Outrora, a morte era vista como um fenômeno natural, coroamento inevitável da existência. Hoje, é sinônimo de fracasso, quase vergonha social.

     A morte clandestinizou-se nessa sociedade que incensa a cultura do prolongamento indefinido da vida, da juventude perene, da glamorização da estética corporal. Nem sequer se tem mais o direito de ficar velho. Nós, que já nos incluímos no Estatuto do Idoso, somos tratados por eufemismos que visam a aplacar a “vergonha” da velhice: terceira idade, melhor idade ou, como li na lataria de uma van, “a turma da dign/idade”. A usar eufemismos, sugiro o mais realista: turma da eterna idade, já que estamos próximos dela.

     No tempo de meus avós morria-se em casa, no espaço doméstico cercado de parentes, amigos e objetos que constituíam a razão de ser da existência do enfermo. Hoje, morre-se no hospital, um lugar estranho, cuidado por profissionais da saúde, cujos nomes ignoramos.

     A agonia é suprimida pelos avanços da ciência - o coma induzido, a medicação que elimina a dor. O rito de passagem – unção dos enfermos, luto, missa de 7º dia, proclamas – é quase imperceptível.

     “Morrer é fechar os olhos para enxergar melhor”, disse José Martí. As religiões têm respostas às situações limites da condição humana, em especial a morte. Isso é um consolo e uma esperança para quem tem fé. Fora do âmbito religioso, entretanto, a morte é um acidente, não uma decorrência normal da condição humana.

     Morre-se abundantemente em filmes e telenovelas, mas não há velório nem enterro. Os personagens são seres descartáveis como as vítimas inclementes do narcotráfico. Ou as figuras virtuais dos jogos eletrônicos que ensinam crianças a matar sem culpa.

     A morte é, como frisou Sartre, a mais solitária experiência humana. É a quebra definitiva do ego. Na ótica da fé, o desdobramento do ego no seu contrário: o amor, o ágape, a comunhão com Deus.

     A morte nos reduz ao verdadeiro eu, sem os adornos de condição social, nome de família, títulos, propriedades, importância ou conta bancária. É a ruptura de todos os vínculos que nos prendem ao acidental. Os místicos a encaram com tranquilidade por exercitarem o desapego frente a todos os valores finitos. Cultivam, na subjetividade, valores infinitos. E fazem da vida dom de si – amor. Por isso Teresa de Ávila suspirava: “Morro por não morrer”.

     Padre Vieira advertia no sermão do 1º domingo do Advento, em 1650: “No nascimento, somos filhos de nossos pais; na ressurreição, seremos filhos de nossas obras.”  
 

Frei Betto é escritor, autor de “A obra do Artista – uma visão holística do Universo” (José Olympio), entre outros livros.


http://www.freibetto.org/>    twitter:@freibetto.
 

Você acaba de ler este artigo de Frei Betto e poderá receber todos os textos escritos por ele - em português, espanhol ou inglês - mediante assinatura anual via mhgpal@gmail.com   

Copyright 2014 – FREI BETTO – Não é permitida a reprodução deste artigo em qualquer  meio de comunicação, eletrônico ou impresso, sem autorização do autor.


 

* O conteúdo opinativo acima é de inteira responsabilidade do colaborador e titular desta coluna. O Portal Gente de Opinião não tem responsabilidade legal pela "OPINIÃO", que é exclusiva do autor.

Gente de OpiniãoQuarta-feira, 7 de maio de 2025 | Porto Velho (RO)

VOCÊ PODE GOSTAR

Esquerda, o resgate do sonho

Esquerda, o resgate do sonho

         Pertenço à geração que teve o privilégio de fazer 20 anos nos anos 60: Revolução Cubana, Che, Beatles, Rei da Vela, manifestações estudanti

Democracia e valores evangélicos

Democracia e valores evangélicos

       No tempo de Jesus, a questão da democracia já estava posta, porém apenas em uma região distante da Palestina: a Grécia. Dominada pelo Impér

Pergunte à história

Pergunte à história

Eleitores nem sempre votam com a razão. Muitos votam com a emoção.

O cardeal eletricista

O cardeal eletricista

O cardeal polonês, de 55 anos, é o principal assessor do papa

Gente de Opinião Quarta-feira, 7 de maio de 2025 | Porto Velho (RO)