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Dante Fonseca

Início da navegação a vapor no rio Madeira: o 'Santo Antonio' (1865)


 

Dante Ribeiro da Fonseca

Até o final dos anos de 1860 não havia a navegação regular a vapor pelo rio Madeira. Contudo navios diversos fizeram explorações avulsas naquele rio.  Em 1866 Alexandre Paulo de Brito Amorim criou a Companhia Fluvial do Alto Amazonas. Sobre esse episódio, há nos arquivos da Biblioteca Nacional do Rio de Janeiro um manuscrito anônimo que trata da navegação no Amazonas. O documento, do ano de 1867, foi escrito por autoridade governamental, provavelmente o presidente da província. Nele, podemos constatar que Brito Amorim sugeriu uma lista de redução das tarifas de fretes de mercadorias conduzidas pela Companhia de Navegação e Comércio do Amazonas de Irineu Evangelista de Souza.

Essa empresa, segundo informa o documento, que havia pedido subsídio para a navegação do rio Madeira no valor de 96:000$ em 1865 propôs, em 1866, uma redução para 60:000$. Certamente a possibilidade da concorrência da Companhia Fluvial do Alto Amazonas, que naquele ano se constituiu, e cuja lei de autorização, segundo informa o manuscrito, foi votada naquele mesmo ano, teve influência nessa redução (Manuscrito anônimo. Notas sobre navegação fluvial. 1866).

A autorização ao comendador Brito Amorim foi estabelecida através do Decreto de número 3. 898, de 22 de junho de 1867, assinado por Manoel Pinto de Souza Dantas, Ministro e Secretario de Estado dos Negócios da Agricultura. Finalmente, a 6 de abril e 2 de dezembro de 1869 entraram no porto de Manaus respectivamente os vapores “Madeira” e “Purus”, da Companhia Fluvial. Eram vapores gêmeos, possuindo as mesmas dimensões, com lotação absoluta de 800 toneladas, sendo mais de 300 toneladas livres para carga e movidos por motores de 150 cavalos. Já no mês de março de 1870 o vapor “Madeira” havia realizado três viagens de teste e mais duas depois de inaugurada a linha para o rio Madeira (MATTOS, 1870, 38).

Os registros pesquisados revelam que os três primeiros vapores que percorreram aquele rio até o Crato, foram: o “Guajará” (1858), o “Pirajá” (1861 e 1864) e o “Inca” (1864). Contudo, duas fontes nos informam que um navio da Companhia de Comércio e Navegação do Amazonas saiu de Belém com destino a Santo Antonio do Rio Madeira em 1865. No destino, o navio embarcou a carga das canoas bolivianas que para aquele ponto haviam descido de Cuatro Ojos eExaltación, respectivamente nos rios Piraí e Mamoré, carregadas de produtos agrícolas e pecuários (ALBUQUERQUE, 1894, pp. 126). Assim, teríamos um quarto navio a vapor, que precedera o “Inca” a navegar o rio Madeira, o “Santo Antonio”. Outra fonte nos indica uma pequena lancha a vapor denominada “Onça” que também teria navegado comercialmente esse rio em 1866. Ambas as embarcações, segundo as fontes, pertenceriam à Companhia de Comércio e Navegação do Amazonas. A questão é que não encontramos confirmação das informações para a viagem de 1865, conforme exporemos adiante.

Não havia até 1869 a navegação regular a vapor pelo rio Madeira. Mas havia já o comércio entre a Bolívia e o Brasil por aquele rio, que embora pequeno era promissor. Ao tratar desse comércio em 1865, Tavares Bastos transcreve a seguinte informação:

Eis o que a este respeito lé-se no ultimo relatório da Companhia do Amazonas (pag. 22): «As relações commerciaes com a Bolívia pelo Amazonas, apezar da perigosa travessia das caxoeiras do Madeira, vão-se desinvolvendo, tendo já o anno passado (1865) subido a 64:004$150 o valor da importação e exportação. Para fazer esse commercio desceram de Cuatro Ojos no rio Piray e de Exaltacion no rio Mármore 98 embarcações lotando 32,000 arrobas e tripuladas por 1.276 Índios! (Relatório da Companhia de Comércio e Navegação do Amazonas de 1866, p. 22 apud BASTOS, 1866, p. 353).

. Chamo à atenção para o fato de que o relatório não declara o início dessas transações comerciais, mas seu desenvolvimento. Também Rebouças (1870, p. 19), informa que houve esse movimento comercial de 1865 com as seguintes palavras:

O commercio existente da Bolivia pela via do Madeira, insignificante como é, já revela a propensão, por assim dizer innata, dos povos do Beni e de Santa Cruz, de pratical-o por ahi. Em 1865, o valor da exportação e importação foi de 64:000$ ou cerca de 32.000 pesos, sendo de 32.000 arrobas a quantidade das mercadorias. Este reduzido commercio occupou 98 embarcações, tripoladas por 1.276 indios, que de certo na viagem redonda não gastaram menos de seis mezes!.

Rebouças utilizou os dados do relatório da Companhia do Amazonas de 1866, retirando-os da obra de Tavares Bastos (O valle do Amazonas), a qual cita, mas mantendo-se fiel aos mesmos.

Em 1894, vinte e oito anos após a publicação do Valle do Amazonas, surgiu um livro intitulado A Amazonia em 1893 de Luiz Rodolpho Cavalcanti de Albuquerque. Nele o autor, sem indicar suas fontes, interpreta as informações primariamente dispostas no Relatório da Companhia do Amazonas de 1866 da seguinte forma:

Republica da Bolivia

Só em 1865 esta nação ribeirinha iniciou regular commercio com as praças brazileiras da Amazonia e sob os auspicios da Companhia de Navegação e Commercio do Amazonas, por isso que a sua posição geographica ainda hoje não permitte, facilmente, quaesquer outras communicações entre a região do alto Madeira, Mamoré e Guaporé, etc., com o oceano Atlantico; pois é bem de avaliar os onus com que seriam sobrecarregados os trafegamentos de productos e mercadorias, procedentes ou destinadas a semelhante região, uma vez servidos ou encaminhados por portos de outra banda do continente.

Foi no anno de 1865 que chegou a Santo Antonio do Rio Madeira a primeira caravana desse extremo da Bolivia em demanda do primeiro vapor daquella companhia, que de Belém sahira com tal de tino - o porto de Santo Antonio.

Noventa e oito canôas e ubás, com a lotação de 32.000 arrobas de borracha, e tripoladas por 1276 indios, procedentes de Cuatro Ojos (no rio Pirahy) e de Exaltacion, fornecera a primeira carga do paquete, no valor official de 64:004$, conforme verifica-se do Relatorio. da Companhia do Amazonas. (ALBUQUERQUE, 1894, pp. 125-126).

Primeiramente, é necessário notar que embora pequena, havia sim uma relação comercial com a Bolívia anteriormente a 1865. Assim, não foi somente em 1865 que “[...] chegou a Santo Antonio do Rio Madeira a primeira caravana desse extremo da Bolivia [...], quando essa relação teria iniciado. Em segundo lugar, não encontramos nenhuma evidência que esse intercâmbio comercial tenha sido feito sob os auspícios da Companhia do Amazonas em 1865, que teria enviado de Belém um vapor para ir de encontro aos comerciantes bolivianos na cachoeira de Santo Antonio do Rio Madeira. Em terceiro lugar, o número de canoas e ubás, o número de remeiros, o peso da carga em arrobas é mencionado, no relatório da Companhia do Amazonas, como o produto de todas as viagens realizadas naquele ano, assim também as transações comerciais entre a Bolívia e o Brasil pelo rio Madeira (importação e exportação) totalizariam 64:004$ naquele ano. Esses totais não se constituíram, portanto, como a carga desse “primeiro” vapor, que teria que suportar 470 toneladas de mercadorias, bem maior que a capacidade dos vapores “Purus” e “Madeira”, da Companhia Fluvial do Alto Amazonas, que nos anos de 1870 operavam no rio Madeira. É de se notar que Albuquerque acrescentou aqui um vapor, inexistente nas obras de Tavares Bastos e Antonio Rebouças já citadas.

Serzedelo Correia, em sua obra cujo título é O rio Acre. (Ligeiro estudo sobre a occupação Paravicini no rio Acre; limites, navegação e commercio com a Bolivia), publicada em 1899 (p. 20), informa que:

Com a Bolivia, não mantínhamos até 1865 nenhuma relação commercial. Foi nesse anno que chegou a Santo Antonio do Madeira a primeira caravana boliviana à procura do primeiro vapor da Companhia do Amazonas, chamado Santo Antonio, que com aquele destino sahira de Belem. (CORREIA, 1899, p. 20)

Serzedelo Correia utilizou-se da obra de Albuquerque, a qual cita. Acrescentou, entretanto, às informações daquela obra, o nome do vapor que teria ido a Santo Antonio ao encontro dos comerciantes bolivianos: chamava-se também “Santo Antonio”.

Consultando jornais amazônicos da época e os relatórios das presidências das províncias amazônicas daqueles anos, não encontramos qualquer menção a esse vapor “Santo Antônio”. Também não encontramos notícias acusando qualquer iniciativa da Companhia do Amazonas, no ano de 1865, para enviar algum vapor a Santo Antonio do Rio Madeira com o objetivo de transportar mercadorias oriundas da Bolívia para Belém. Supomos que se houvesse de fato essa iniciativa, sua menção seria inevitável nos jornais e relatórios presidenciais da época, dada a importância já estimada da navegação a vapor naquele rio.

Assim, não encontramos vapor com o nome de “Santo Antonio” operando na Amazônia naquele momento para a Companhia do Amazonas ou para particulares. Na verdade, até 1886 não existiu nenhum vapor com esse nome no Brasil, a se acreditar na Lista alphabetica dos navios de guerra e mercantes do imperio do Brazil (NASCIMENTO, 1886). Talvez o relatório da Companhia de Comércio e Navegação do Amazonas do ano de 1865 possa trazer esclarecimentos sobre essa situação.

Na segunda metade do século passado operava na Amazônia um barco cujo nome era “Santo Antonio”. A partir de Belém esse barco promovia o comércio no Amazonas conduzindo cargas até Manaus e Belém com escalas em Breves, Gurupá, Santarém, Óbidos, Faro e outras localidades. Seus proprietários ou consignatários eram todos de Belém. Pertencia à Viúva Fernandes & Filhos em 1855. Em 1856 seu consignatário era José Gougenner Faget. Em 1859 estava consignado à firma Francisco Honório da Costa Batalha e Cia. (Treze de Maio de 14/08/1856; Gazeta Official de 14/09/1858; Treze de Maio de 25/10/1855; Diario do Commercio de 10/01/1859).

Não encontrei qualquer indicação de expedição desse barco pelo rio Madeira, mas ainda estava ativo em 1868 (Diario de Belem de 22/10/1868). É certo que não pertencia à Companhia do Amazonas e não era um vapor, mas um veleiro (Gazeta Official de 14/09/1858) Assim, não é dele que falam Serzedelo Correia (1899) e Luiz Albuquerque (1894). Não eram comuns os vapores no rio Madeira naquela época, ao contrário Tavares Bastos (1866) reclama o estabelecimento de linhas de navegação naquele rio, cujo comércio com a Bolívia havia, até aquele momento, se servido de canoas movidas a remo, com rara exceção. Essas canoas navegavam todo o rio Madeira e eram deixadas em Serpa (Itacoatiara), no rio Amazonas próxima a embocadura do rio Madeira, de onde sua carga e proprietários seguiam em vapores para o Pará. Os índios remeiros que permaneciam à espera do retorno ocupavam-se em serviços públicos em Manaus (BASTOS, 1866, p. 221).

* O conteúdo opinativo acima é de inteira responsabilidade do colaborador e titular desta coluna. O Portal Gente de Opinião não tem responsabilidade legal pela "OPINIÃO", que é exclusiva do autor.

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