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Sandra Castiel

Nossa insustentável leveza


Nossa insustentável leveza - Gente de Opinião

 

Há alguns anos assisti, no Rio de Janeiro, a um filme sobre a vida pessoal de Charles Darwin, o cientista inglês cuja teoria contida no livro A Origem das Espécies impactou boa parte da comunidade científica mundial.

O filme é muito bom, chama- se Criação. Mostra um Darwin ainda jovem, na Inglaterra dos idos de 1830 mais ou menos, casado e pai de muitos filhos.

Darwin era cristão. Mas à medida que avançava nas descobertas científicas, suas convicções religiosas diminuíam. Perdeu completamente a fé, quando morreu sua primogênita, Anne Elizabeth, de dez anos, uma menina linda e inteligente, com quem compartilhava profunda e transcendental conexão.

 

MORTE E CULPA 

Atormentado e cético, Darwin tenta trazer para sua realidade a esposa que, desesperada, busca na religião algum consolo para suportar a dor da perda. - O céu não existe! – Diz à esposa um Darwin cruel, tentando fazer com que a mulher, de joelhos diante do altar, enxergue o mundo através de seu olhar de cientista.

Pobre mãe... Como suportar tanta dor, a não ser imaginando a filha no céu, sorridente, a brincar com anjinhos, saltitando por entre os jardins celestiais?

Darwin era casado com uma prima, Emma, e atribuiu ao parentesco a enfermidade e a consequente morte da filha. Culpou-se por ter tirado a criança da casa de campo, onde a família vivia, e levado-a para a cidade, a fim de ser tratada pelo médico em quem confiava. O tratamento não conseguiu debelar a doença, a criança passou por grande sofrimento, definhando longe da mãe e dos irmãos, alojada com o pai em um quarto de hospedaria, onde se deu a morte. 

 

OS PASSOS DO ESPÍRITO 

De volta ao lar, Darwin vê o espírito da filha com frequência; busca auxílio médico, porém discorda da argumentação de que seu inconformismo estaria fabricando alucinações. Resolve voltar à hospedaria onde ficara com a filha e onde se dera a morte. Ali, tenta seguir os passos de seu espírito; dorme na mesma cama em que a filha dormira,  agonizara e morrera. Enfim, naquele cenário que o atormenta, deixa que o pranto até então contido lhe lave a alma. Quanta dor! ...                                                                                                       


REFLEXÃO

O aspecto mais marcante dessa história é ver na tela, em relevo, a fragilidade de nossa existência e de nossas convicções; a inconstância de nossa alegria; a insustentabilidade de nossa leveza.

Os extremos presentes na vida de Darwin, fé e descrença, felicidade e tristeza, reportaram-me à problemática filosófica das dualidades ontológicas do ser: leveza e peso. A condição humana é marcada por essa dualidade

Não obstante os postulados filosóficos, acredito que a leveza do ser está naquilo que é imutável (exclua-se deste raciocínio a morte) e que lhe alimenta a alma, tais como, o riso de uma criança, o amanhecer de um novo dia, o pôr do sol, as estrelas do céu, o voo de um pássaro, o amor pelos filhos, a própria subjetividade e tantas outras coisas verdadeiramente importantes, que levam este ser a amar a vida.

 Em contrapartida, não há como sustentar esta leveza, diante de uma tragédia pessoal, como à de Darwin.

 Manter a leveza pressupõe desconectar-se do mundo e dos outros, como uma forma de negar a dor e o sofrimento inerentes à existência?

Existir e ser é difícil.

Sandra Castiel - sandracastiell@gmail.com

* O conteúdo opinativo acima é de inteira responsabilidade do colaborador e titular desta coluna. O Portal Gente de Opinião não tem responsabilidade legal pela "OPINIÃO", que é exclusiva do autor.

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