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Vinício Carrilho

Pensamento escravista no século XXI - Exploração do trabalho e a hegemônica violência contra os Direitos Humanos


Pensamento escravista no século XXI - Exploração do trabalho e a hegemônica violência contra os Direitos Humanos - Gente de Opinião

       Todos os dias têm trabalho escravo acontecendo no Brasil. Todo dia está em vigência o pensamento escravista neste nosso regressivo e repressivo século XXI. Podemos simplificar o pensamento escravista como a aliança imoral (cultural e institucional) entre o racismo e a exploração do trabalho – em condições análogas à escravidão: do trabalho escravizado no campo à uberização. Assim, também podemos entender como opressão sistêmica, subalternização (vide a uberização hegemônica), recrudescimento do supremacismo branco (racista e violento), negação, exclusão e imposição de exceções como regras e normas (pejotização, negação das políticas sociais, em prol do capitalismo rentista), “normalização dos absurdos” – violência social, política, institucional contra a cultura dos Direitos Humanos.

Se alguém nos diz que não se pratica violência física, moral, coativa, coercitiva em quem se vê prostrado, subalternizado, negado em sua mínima condição de dignidade, submetido ao trabalho escravo, ao alcance do racismo inabalável na sociedade brasileira, então temos que reinventar a roda, voltando ao ensino fundamental. O Brasil parece preso, repetindo um looping infinito, condenado ao eterno retorno da mais antiga 5ª série primária. De fato, a combinação entre subjetividade (racista) e a base material da exploração do trabalho, revigorado no século XXI (uberização), que alcança o trabalho escravo, é a combinação mais primária e bárbara que possamos imaginar.

Os casos de pessoas libertas do trabalho análogo à escravidão nunca cessam. Aliás, a atualização mais recente da “Lista Suja” de empregadores condenados por trabalho escravo bateu o recorde, com a inclusão de 248 novos nomes (entre pessoas físicas e jurídicas)[1]. Esses trabalhadores e trabalhadoras são, em maioria, pretos e pardos, o que não é de modo nenhum um acaso. O racismo também permanece. Uma trabalhadora idosa resgatada em 2023 contou: “Acordava de manhã e só ia dormir quase meia-noite. Sem contar que eles me xingavam muito, ficavam falando palavrão. Ficavam xingando minha raça, chamando de negra e aquelas coisas todas” [2].

O racismo e a exploração do trabalho (até níveis análogos à escravidão) são persistentes, resilientes, parecem muito bem acomodados na cultura, conectados com a máxima expropriação das condições de trabalho e reprodução do capital. Produtores da maior exportadora de café do Brasil foram incluídos na lista suja do trabalho escravo em 2024[3]. No Rio Grande do Sul, trabalhadores foram resgatados trabalhando em condição análoga à escravidão em uma pedreira clandestina, e recebiam como pagamento, pedras de crack e cocaína[4].

Mesmo que haja uma previsão punitiva séria, há um silogismo constitucional, um abrandamento moral/social com esses dizeres (trabalho análogo à escravidão), uma vez que, na prática, de sol a sol, são trabalhadoras e trabalhadores brutalmente escravizados, sem que os paliativos linguísticos façam qualquer diferença em suas vidas negadas. Não são sujeitos de direitos, não têm o status de seres sociais (por isso são escravizados, com ou sem normativas legais). São completamente retidos na condição subalterna, inferior, na qual não deveriam estar se fossem considerados plenamente como “animais políticos” – dotados de liberdade, vontade, autonomia.

Não será incomum encontrar uma classe média – inclusive com “famílias abolicionistas”, “liberais”, “iluminadas” – que mantém um porão ou o mais genuíno “quartinho da empregada”. “Ah, mas ela tem registro em carteira”, dirão esses “esclarecidos”. O que não nos dizem é que essa pessoa (via de regra negra, parda) está ali sempre à disposição: 24 horas por dia, sete dias por semana[5].

No geral, essas pessoas “tidas como se fossem da família” não têm carteira assinada, podendo se enquadrar nas diversas tipologias hoje existentes para a exploração do trabalho: precário, degradante, semiescravo, trabalho forçado e embrutecido, análogo à escravidão. Na “lista suja” do trabalho escravo de 2024, as atividades de âmbito doméstico (domésticas, cuidadoras e caseiros) tiveram o maior número de empregadores incluídos, a maior desde a criação da base de dados em 2003[6].

É essa combinação perversa entre racismo e exploração do trabalho (análogo à escravidão ou mascarado pelo “quartinho de empregada”) o que chamamos de pensamento escravista. A ocorrência do pensamento escravista, como vemos em todos os meios de comunicação menos obtusos, percorre o meio rural e os ambientes urbanos, como se estivessem repetindo a estética e os lemas de Casa Grande & Senzala.

A classificação racial da população, necessária para a dominação colonial, mantém-se como padrão de poder e racionalidade. O pensamento escravagista, por um lado, prospera nas subjetividades (racismo); por outro, objetivamente e no âmbito da exploração do trabalho, sustenta a reprodução do capital. Não se trata do resquício de um passado mal resolvido, mas de um passado-permanente e inerente às dinâmicas sociais brasileiras. Nessa “lógica”, o povo pobre, negro e oprimido ainda é escravo.

A Modernidade Tardia brasileira, sob essa forma de revolta passiva dos escravizadores (muitos são rentistas também), segue desafiando a lógica e a dignidade humana. Equivale a dizer que não basta explorar, subjugar, subordinar (como fez a Reforma Trabalhista de 2017), é preciso aniquilar, extorquir ao máximo a dignidade. O próprio conceito (dignidade), além de não constar do vocabulário dessas pessoas (senhores escravocratas pós-modernos), aparece como ofensa de quem a pronuncia. Lembremos que o trabalho análogo ao escravo é um silogismo para diminuir alguém à condição de coisa, isto é, ainda mais inferiorizado do que os animais domésticos e de criação. Os animais do agronegócio são tidos como bens e capitais – seus trabalhadores, não.

O pior, da perspectiva social, é saber que não são apenas os escravistas que pensam e agem desse modo. As chamadas “elites” – brutas e brutais –, mais assemelhadas a quem não tem nenhuma condição de elitizar-se (na cultura, na sociabilidade, na própria educação formal), tratam o povo e entendem os Direitos Humanos da mesma forma como se organizam para enfrentar o Estado de Direito: têm como fim corromper todas as institucionalidades e normalidades.

O nível do atraso societal, das “elites” plutocráticas, é tão pronunciado que qualquer referência aos Direitos Humanos é sempre vista como motivação para as piores reações (agressões físicas, verbais, demissões, perseguições). Isso tudo, é claro, segue como parte da composição subjetiva do pensamento escravista. Seus apoiadores, perpetradores, admiradores (incluindo-se, sobretudo, quem diga “não é bem assim”), não se cansam de reproduzir o passado perverso, pervertido, abatido pelas piores doenças de sucumbência moral.

É o mesmo “raciocínio” que tanto vemos coordenar as ações policiais nas periferias, porque o embrutecimento guia os dizeres que se estampam nas mentalidades e nas ações dos “portadores do Estado”: é negro, é pobre, é marginalizado, logo, será reprimido e condenado. A periferia conhece do poder público apenas a visão e audição do giroflex. Não é preciso dizer que não há inclusão social, simplesmente, porque não há nem mesmo igualdade formal onde prospera o escravismo pós-moderno.

Para conhecer o país, seu funcionamento sistêmico, sua própria origem, a gestão dominante (hegemônica) das estruturas, do sistema institucional e econômico, a regência das condições de reprodução social, torna-se cada vez mais evidente que é obrigatório recorrer a esta chave que designamos como “pensamento escravista”, e, sob o qual há um país fervendo na forma de um capitalismo escravista do século XXI. Como enunciamos, a reforma trabalhista de 2017 emplacou a uberização, a extrema subalternização e expropriação do trabalho – o que, obviamente, é a outra perna desse capitalismo de barbárie que nos dirige em 2024, ou capitalismo escravista, se pensarmos em quanto trabalho doméstico é mantido sem nenhum registro formal e nas fazendas que alimentam o agronegócio.

O que o país esperava é que, em 2022, as tais “elites” dos “cidadãos de bens” apontadas para o ponteiro regressivo da civilização (plutocracias e governo dos piores), fossem pelo menos domadas, numa tentativa de serem alinhadas com o futuro. Por enquanto, quase nada saiu do lugar, seja com a elevação das condições de trabalho, do nível civilizatório mínimo que retire/anule o trabalho precarizado, seja com a castração econômica dos racistas e escravizadores (prevista com gravames constitucionais: crimes inafiançáveis, imprescritíveis).

Por isso, o pensamento escravista segue firme e forte, aqui e aí, com ou sem participação direta dos aparelhos ideológicos e repressivos de Estado, por todos aqueles que repelem qualquer cultura de direitos humanos e se aplicam na eliminação moral e física dos já-marginalizados: os negros, os pobres, os oprimidos.

          Temos negado, sistematicamente, na história e nas mentalidades, até mesmo os marcos ou padrões civilizatórios mais elementares. É óbvio, então, que a plutocracia nacional sequer reconhece o estágio inicial, elementar, de cidadania ao povo brasileiro. Escravos e escravas do Brasil todo, mais ou menos acorrentados (ou não), definitivamente, não são cidadãos e cidadãs.

          É assim que o Brasil vê o seu povo.



* O conteúdo opinativo acima é de inteira responsabilidade do colaborador e titular desta coluna. O Portal Gente de Opinião não tem responsabilidade legal pela "OPINIÃO", que é exclusiva do autor.

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