Quinta-feira, 30 de outubro de 2025 - 15h24

A chacina ou o massacre – como se queira chamar – levados a cabo pelas
forças policiais do Rio de Janeiro, a mando do Governador do Estado, no dia 28
de outubro, pode e deve ser visto como crime e atrocidade do Poder Público.
Contudo, deve ser avaliado com lentes multifocais – especialmente para sairmos
um pouco do senso comum, da luta ideológica em torno das narrativas ideológicas
e da luta eleitoral que já se pronunciou. 
          O que já se sabe, com
certeza, é que se ultrapassou o número de mortos do Carandiru, em São Paulo. O
episódio paulista foi de tão extremada gravidade que impulsionou a geração do
PCC, e que hoje já atua no formato de máfia. A operação deflagrada na Faria
Lima, em busca de lavagem de dinheiro no centro econômico do país, é suficiente
para esclarecer o que é o modelo de máfia.
          Enquanto o CV investe em
disputa e controle territorial, com muito armamento pesado e confronto direito
com rivais do crime organizado e a própria polícia, o PCC em São Paulo é
hegemônico – isto quer dizer que, sem “inimigos” aptos em seu território, o PCC
evita o confronto direto. 
No modelo de máfia, o PCC emprega seus recursos menos em armas do que em
fundos e empresas listadas na Bolsa de Valores, por exemplo. Além disso, o PCC
investe em inversão de capitais, como na aquisição (ou roubo) de lojas de
marca, postos de gasolina, empresas diversas, propriedades rurais e até mesmo
em usinas alcooleiras. Talvez venham dessas usinas as mortes por metanol mais
recentes.
          Em parte, isso explica
porque as ações e os confrontos entre o CV e as forças policiais geram chacinas
como essa, porque outras facções criminosas também disputam o controle
territorial.
          Do que decorre uma outra
parte da análise: o Estado perdeu essa luta ou guerra faz muito tempo. A origem
do alegado “problema geográfico” – presente no RJ e ausente em SP – remonta ao
recorte da luta de classes no Rio de Janeiro, quando as elites dominantes
empurraram forçosamente as populações pobres, sobretudo, negros recém libertos,
para os morros. Assim, as elites se apossaram em definitivo do centro
territorial e das regiões mais privilegiadas, com acesso às melhores praias e
belezas naturais.
          O Estado perdeu essa
guerra quando iniciou uma batalha feroz pela criminalização do povo pobre,
negro e oprimido. Quando, no plano nacional, mantinha-se o famigerado “crime de
vadiagem” – tipologia que jamais alcançou os filhos das tais elites, por mais
que fossem ociosos e desapegados de qualquer responsabilidade social. 
O crime de vadiagem, por óbvio, sempre vitimou (vitima) os pobres que
não tinham (tem) empregos fixos e regulares. Uma outra amostragem disso se
verifica quando o policiamento exige que a pessoa apresente sua carteira de
trabalho: o documento indicaria que aquele indivíduo, se tivesse registro, não
seria um “vadio” (hoje a polícia chama de “vagabundo”). Em tempos digitais, a
polícia logo apreende o celular.
          É óbvio que isso
exemplifica o racismo institucional, uma vez que nunca se pede a carteira de
trabalho para os filhos brancos das elites. Mas, além disso, nos esclarece que
a luta de classes no Brasil tem que ser vista a partir das condições raciais,
propriamente racistas. Só podemos entender a dinâmica do capital por meio desse
recorte racista. Tanto é assim que impera, inclusive economicamente, um
Pensamento Escravista – sendo formado pela junção do racismo exuberante
(institucional, social) e a exploração do trabalho análogo à escravidão[1]. 
          Isso colabora para
entendermos essas ações tão letais do Poder Público: há uma perspectiva
profundamente elitista e racista. Lembrando-se que esse modus operandi policial não é exclusividade do Rio de Janeiro,
posto que é operado em maior ou menor escala, igualmente, em São Paulo, na
Bahia, em Goiás, no Ceará e em outros Estados brasileiros. Definitivamente, no
Brasil, a luta de classes se alimenta do ódio social, racial, misógino,
homofóbico, pedófilo, elitista e fascista[2].
          O que se denominou,
teoricamente, de Necropolítica – muitas vezes com imprecisão conceitual[3] –,
no Brasil, pela leitura das Ciências Sociais se define como uma ferrenha,
intestina, luta de classes racista. Não se costuma enveredar muito por esse
caminho (como desbravou Florestan Fernandes) porque quando se trata de luta de
classes – para além da morbidade deste ou daquele agente público às voltas com suas
chacinas – a questão é remetida para o “depois do epifenômeno”, para aquilo que
só se vê sob o uso do “método a contrapelos”. 
          Com essa leitura a
contrapelos, outro fator para nossa análise que se desdobra desse morticínio no
Rio de Janeiro (mais de 134 pessoas, em menos de 15 horas de confronto[4]) nos
revela uma guerra civil[5] – em
curso há muito tempo. Há muitas provas que cabem nesta avaliação da luta de
classes racista que se amotinou enquanto guerra civil: os armamentos de guerra,
os indescritíveis níveis de violência e crueldade, a letalidade programada, o
tratamento brutal e específico dado aos “inimigos”, o recorte absurdamente
evidente entre brancos e negros (não-brancos) e ricos e pobres.
          Porém, o aspecto que se
destaca no miolo disso tudo e nos traz de volta ao Estado é identificado como a
perda da soberania legislativa, por parte do Poder Público[6]:
quem define as regras e suas exceções nas comunidades, morros e favelas
ocupadas e controladas pelo crime organizado não é o Estado Democrático de
Direito[7]. As
regras que vigem sob a Lei do mais forte, sob a orquestração do crime
organizado, são as que definimos democraticamente como exceções, privações,
destituições, abusos e corrupções do sentido público. 
É muito fácil perceber que quem diz o que é certo e errado, o que pode
ou não pode ser feito, é o crime organizado, ou seja, as regras de organização
do poder, as normas de convivência social não são definidas pelo Estado, mas
sim pelas facções e grupos organizados para o cometimento dos piores crimes
(hediondos, assim como são hediondas as chacinas públicas). Neste caso, a
conclusão é simples: soberania legislativa[8]
mudou de mãos.
          É óbvio, portanto, que
desse modo o “poder decisional” – e que inclui o direito de vida e morte – não
tem mais os limites legais, constitucionais[9],
não mais se reconhece como público, não se valida como legitimamente
constituído e, a partir daí, passa a reinar a Lei do mais forte (neste caso, a
lei do capital que abastece e oxigena o crime organizado). 
Desse modo, já concluindo, dizemos que, com isso, o Estado perde por
completo o domínio territorial, a soberania territorial e simbólica naquelas
áreas. Não são apenas “rivais” do Estado os que decidem contra a vida daquelas
pessoas todos os dias, com seus fuzis de guerra, são definitivamente inimigos
do Estado. No entanto, note-se, sem glamour nenhum, que os inimigos do Estado
são abertamente os inimigos daquelas populações – usem ou não fardamentos[10],
usem ou não gravatas.
          Possivelmente já esteja
claro nesta análise, entretanto, destaquemos que não há pendores para esse tipo
de morticínio estatal e muito menos para a ação dos mais violentos grupos e
organizações criminosas que colonizam as comunidades pobres do Rio de Janeiro e
de qualquer localidade brasileira[11] –
quem busca glamour na Lei do mais forte capital criminoso veja o que é o
conhecido Tribunal do Crime. 
Afinal de contas, são os reféns da violência estatal e da brutalização
imposta pelo crime organizado quem sofre diretamente com essa mudança radical
da soberania territorial e legislativa. São os que mais sofrem, os atingidos de
uma forma ou de outra, os que, provavelmente, não terão a oportunidade de ler
esse texto, assim como seus filhos e filhas estão proibidos de irem à escola.  
Sob o escrutínio da Lei do mais forte, do capital que pertence aos
grupos e às organizações criminosas, não se encontram os Princípios Gerais do
Direito, os direitos humanos e sequer se pronuncia a dignidade humana[12].  
No nosso caso, o pior está em pensar que as mortandades vão continuar a ocorrer, com mais ou menos vítimas, porque a guerra civil no meio da luta de classes racista está só no alvorecer pós-moderno. O Estado aplaudirá sua própria barbárie por muito tempo ainda.
          
[1]  Nas suas múltiplas formas:
trabalho propriamente escravo (vide o Rock in Rio de 2025), uberização,
precarização absoluta do Mundo do Trabalho (pejotização, exploração de
terceirizados e estagiários, mormente no setor público), expropriação do
trabalho infantil, adultização. Essas formações sociais de organização
pós-modernas (neoliberais, neocoloniais), em conluio com as formas
pré-capitalistas de organização e de expropriação da força de trabalho, mostram
que o Brasil vive os dilemas do século XXI associados a restos históricos do
período colonial: o futuro é sempre incerto. Certeza mesmo nós temos é de que o
presente é o passado presente (MARX, Karl. Formações Econômicas
Pré-capitalistas. Rio de Janeiro: Paz e Terra, 1991).  
[2] MARTINEZ, Vinício Carrilho. Fascismo Nacional – Necrofascismo.
Curitiba: Brazil Publishing, 2020.
[3] A contabilização de um milhão de presos no Brasil, por óbvio, em si já
credencia o funcionamento do sistema panóptico de exclusão, encarceramento e
punição social e racista; porém, não está legalizado o Apartheid – e isso traz
uma atenção quanto aos conceitos (MBEMBE, Achile. Necropolítica. São Paulo: N1
Edições, 2018). No mesmo sentido, apesar do encarceramento social e racial,
extensivo e massivo (uma fábrica de repressão racista), o sistema panóptico do
Estado Penal não está plenamente ajuizado no país – o que nos leva a outro
cuidado conceitual (LOIC, Wacquant. Punir os pobres: a nova gestão da miséria
nos Estados Unidos. 2ª ed. – Rio de Janeiro: Revan, 2003).
[4] Apurar e responsabilizar os agentes e as autoridades
públicas pelos homicídios é uma obrigação pública e, se condenados, devem
receber as penas mais severas que o suporte legal do Estado Democrático de
Direito permitir. Entretanto, o fato mais mórbido, por sua vez, é que, enquanto
miolo político e ideológico (cultural) da luta de classes racista, sequestrado
pelas elites incultas, o Estado brasileiro é programado para a repetição desses
mesmos crimes sociais e raciais. Veremos morbidades como essa muitas vezes.  
[5] Eufemisticamente se chama a guerra civil de “guerras
assimétricas de rua”; no entanto, isso produz o mesmo efeito escapista
(ideologia farsesca) de quando se referencia o trabalho escravo por seu
apelido: “exploração do trabalho análogo à escravidão”. Quando, na prática, se
não são apenas modismos são ideologias farsescas – no Brasil são modismos
mórbidos. 
[6] Na versão clássica de Zippelius, corresponde ao Estado de Direito: “a
obrigação de criar e manter determinadas instituições públicas” (ZIPPELIUS,
Reinhold. Teoria Geral do Estado. 3ª ed. Lisboa: Fundação Calouste Gulbenkian,
1997, p. 377).
[7] CANOTILHO, José Joaquim Gomes. Direito Constitucional e Teoria da
Constituição. 4. ed. Lisboa-Portugal: Almedina, 1990.
[8] “a Constituição designa o conjunto de normas jurídicas que definem os
órgãos supremos do Estado, determinam a forma de sua criação, sua relação
recíproca e seu âmbito de atuação, como também fixam a posição do indivíduo em
relação ao poder do Estado” (PEÑA, Guilherme. Direito Constitucional – Teoria
da Constituição. Rio de Janeiro: Lumem Júris, 2003, p. 61).
[9] JELLINEK, Georg. Teoria General del Estado. México: Fondo de Cultura
Económica, 2000.
[10] Aliás, neste cenário de guerra civil, muitos associados às
organizações criminosas utilizam “coletes táticos”, como se fossem membros
integrantes de forças militares regulares. 
[11] Cabe sempre lembrar que “é crime a advocacia do crime”: uma
coisa é defender pessoas associadas, outra bem diferente é defender essas
organizações.
[12] LUÑO, Antonio Enrique Pérez. Derechos humanos, Estado de Derecho y
Constitucion. (8ª ed.). Madrid : Editorial Tecnos, 2003.
[13] Após minuto de silêncio, deputados aplaudem morte de
"bandidos" no RJ: https://share.google/hwQWWfDTjK5hh4qMX. Acesso em 30/10/2025. 
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