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Música nos espaços públicos: o som que acolhe ou afasta


António da Cunha Duarte Justo - Gente de Opinião
António da Cunha Duarte Justo

Da calma ao caos: como o rasto sonoro invisível dos nossos dias influencia o nosso humor, o nosso consumo e o nosso bem-estar.

Vivemos numa era de pouco silêncio. O ruído de fundo tornou-se uma constante, da azáfama do trânsito aos ecrãs que falam, dos cafés às praças públicas. Neste panorama, a música surge como uma dupla face: pode ser uma companhia que acalma ou uma invasão que agride. A fronteira é ténue. Quando o volume sobe demasiado ou os graves fazem tremer as paredes, o prazer transforma-se em incómodo. O som, afinal, tem o poder de moldar comportamentos, estados de espírito e até decisões de consumo (1). A questão que se coloca é: como podemos usar a música para criar espaços mais acolhedores e harmoniosos?

O Ritmo certo para cada Lugar

A chave está na adequação. A mesma música que anima uma festa pode ser tormento num hospital. O sucesso da experiência sonora depende de entender o espaço e o seu público.

Nos Centros Comerciais, o objetivo é incentivar a permanência. Estudos indicam que música clássica suave ou instrumental relaxante cria uma atmosfera de calma, convidando os clientes a circular sem pressa (2). Pelo contrário, batidas agressivas de techno ou pop alto geram cansaço e ansiedade, antecipando a hora de sair.

Em Restaurantes e Cafés, o sabor também é sonoro. Estilos como jazz suave, bossa nova ou música acústica facilitam a conversa e permitem saborear a refeição (3). Já a música alta e ritmada força os clientes a elevarem a voz, criando um ambiente de fadiga que prejudica a experiência.

Nos Hospitais e Unidades de Saúde, o som deve ser um aliado da cura. Música clássica, sons meditativos ou da natureza demonstraram acalmar pacientes, reduzindo a ansiedade (4). Qualquer som alto ou com graves marcados deve ser evitado. Curiosamente, até a pecuária beneficia: vacas produzem mais leite com música clássica (5). Se o efeito é tão poderoso nos animais, no ser humano é ainda mais evidente.

Nos Espaços Públicos, como praças ou jardins, a música deve ser um pano de fundo discreto e inclusivo. Música neutra, tradicional instrumental ou ambiental são boas escolhas. O problema reside nos sons graves agressivos e no volume excessivo, que se transformam numa imposição para todos, inclusive para os vizinhos.

Em Casamentos e Festas, o equilíbrio é crucial. Música clássica ou coral marcam momentos solenes com dignidade, enquanto pop, tradicional ou rock leve podem animar a pista de dança, se o volume for moderado. O excesso de colunas e graves desconfortáveis pode transformar uma celebração num incómodo. Muitas vezes, são animadores sem formação adequada que, tal como o cozinheiro, se tornam os "senhores da festa", ditando um ritmo que nem todos conseguem acompanhar.

O verdadeiro Vilão é o Volume e os Graves

Mais do que o estilo musical em si, são o volume elevado e os graves profundos os principais causadores de conflito. Estas frequências têm um poder invasivo único: atravessam paredes, vibram no corpo e impõem-se a quem não as escolheu. Os mais afetados são frequentemente os mais vulneráveis: pessoas sensíveis, idosos, crianças ou doentes que, no seu direito ao descanso, se veem a braços com uma invasão sonora com impactos comprovados na saúde (6).

Música como Ferramenta de União e não de Divisão

A música é uma das forças mais poderosas de união humana. Quando usada com critério, pode e deve ser uma ferramenta de bem-estar e inclusão. Numa sociedade já marcada pelo stresse e pela aceleração, não precisamos de estímulos sonoros agressivos, mas de sons que promovam a harmonia, o encontro e a permanência.

A boa música de ambiente é aquela que não se impõe, mas que transforma positivamente a experiência de quem a ouve. É tempo de elevar o padrão e exigir profissionalismo e respeito pelo bem-estar coletivo. Afinal, como defende o autor, merecemos mais do que a lógica do “para quem é bacalhau basta”.

António da Cunha Duarte Justo
Notas de referência em Pegadas do Tempo:
https://antonio-justo.eu/?p=10344

 

O JARDINEIRO E AS PLANTAS COM ESPINHOS

 

O Irmão Mateus subiu a colina sob um céu de chumbo; sentia o seu coração mais pesado do que os sapatos enlameados. Cada passo era um eco das dores que o traziam à cela do Abade Tomás, um homem cuja idade parecia ter-se fundido com as próprias paredes do mosteiro, tornando-o numa figura serena e inabalável.

Ao entrar, o aroma a cera e a ervas secas acalmaram-lhe o espírito, mas não apagaram a amargura. O Abade, sentado num banco rústico, entalhava uma pequena ave num pedaço de madeira. Nem precisou de olhar para o jovem.

“Mateus, os teus passos hoje não trazem a leveza de quem vem buscar paz, mas o peso de quem carrega ferrugem”, disse de voz suave como o vento nos ciprestes.

Mateus desfiou a sua ladainha de desilusões: o irmão que o humilhara em público, o amigo da aldeia que tecera mentiras sobre ele, a confiança traída por alguém a quem dedicara anos de lealdade. “Padre, como posso perdoar? Como posso encontrar Deus nestas ações tão vis?”

O Abade pousou a ave de madeira e apontou para a janela, que dava para o horto. “Vem, olha para o jardim do mosteiro. Vês aquele roseiral?”

“Vejo, Padre. Está cheio de rosas magníficas.”

“E vês aquele cardo, ali ao lado, espinhoso e agreste?”

“Vejo. É uma praga. Deveria ser arrancado.”

“Talvez”, segredou o Abade. “Mas olha mais de perto. Ambos crescem no mesmo solo. A rosa, para florescer, precisa de sol e de água boa. O cardo, porém, cresce onde a terra é pobre, seca e pedregosa. Os seus espinhos não são maldade intrínseca; são a sua linguagem de sobrevivência. É a forma que a natureza encontrou para ele dizer: ‘Estou a sofrer’. Quem anda descalço e é espetado por ele tem uma dor real e legítima. Mas a culpa não é apenas do espinho; é da terra árida que o criou.”

O Abade virou-se para Mateus, de olhos profundos como lagos de montanha. “Compreender que quem te espezinha pode esconder uma dor própria, não torna a tua ferida menor. A compaixão é ver o cardo na pessoa, mas a sabedoria é calçar as sandálias para não te magoares.”

Mateus ficou em silêncio, ponderando. “E a mentira, Padre? Como pode a mentira ter uma causa que não a malícia?”

O Abade levou-o até à fonte no centro do claustro. “Vês esta água? É clara e reflecte a verdade do céu. Mas experimenta atirar uma pedra ao charco. A água turva-se, o lodo do fundo sobe e a imagem desfaz-se. Quem mente, meu filho, muitas vezes tem a sua fonte interior turva por medo ou por um vazio tão grande que teme que os outros vejam o fundo seco. A mentira é a agitação que tenta esconder a falta de água pura.”

“Compreender que a mentira pode ser um grito de um vazio interior, não significa que devas beber da água enlameada. A tua tarefa é compreender a sede do mentiroso, mas construir a tua casa junto da fonte da honestidade.”

“E a traição?”, insistiu Mateus, com a voz mais contida. “Essa é a ferida que mais sangra.”

O Abade conduziu-o até à muralha do mosteiro. “Este muro protege-nos dos ventos gélidos e dos invasores. Foi construído pedra sobre pedra, com confiança. Se uma pedra for mal assentada ou se soltar, todo o muro fica vulnerável. Quem trai é como essa pedra solta. Muitas vezes, não é por desejar a queda do muro, mas porque ela própria está rachada por uma solidão profunda, incapaz de suportar o peso da confiança.”

“Ter empatia pela solidão do traidor não te obriga a reconstruir o muro com a mesma pedra quebrada. Perdoar é reconhecer a falha na pedra; seguir em frente é escolher pedras sólidas para a tua própria fortaleza.”

O jovem monge respirou fundo. As alegorias do Abade começavam a clarear a sua mente. “E o escárnio? O desrespeito?”

“Ah”, o Abade sorriu tristemente. “Isso é o fumo, não o fogo. Quem escarnece de ti está a apontar para um espelho quebrado que carrega dentro de si. O desrespeito é o cheiro da miséria interna a queimar. Tu podes reconhecer o incêndio na alma do outro sem teres de te deixar consumir pelas chamas. A auto-compaixão é a manta corta-fogo da alma.”

“E a inveja?”

“A inveja é o sinal mais claro de frustração. É um homem a morrer de sede a observar outro a beber de um poço que julga ser seu por direito. Entender a sede do invejoso não significa que lhe entregues o teu cântaro, pois ele não o quer para matar a sede, mas para o partir.”

Mateus olhou novamente para o jardim. Já não via um cardo a ser arrancado, mas uma planta a clamar por melhor solo. Já não via um inimigo no mentiroso, mas um sedento. Já não via um traidor, mas uma pedra solta.

“Padre”, disse ele, de voz já mais leve. “Então, o caminho não é ignorar a dor que me causam, mas também não é deixar que ela defina o meu terrenoho”, concluiu o Abade, voltando à sua ave de madeira. “Entre a compreensão infinita e a autoproteção necessária, há um equilíbrio: o de ser terra fértil para os que buscam cura, mas ser também jardineiro sábio, que sabe podar os galhos doentes para que todo o jardim não pereça. Na vida mística, encontramos o outro não na conivência com a sua sombra, mas na coragem de lhe mostrar, com os nossos próprios limites, onde começa a luz.”

E pela janela, um raio de sol furou as nuvens, iluminando tanto as rosas como o cardo, sem fazer distinção (1).

António da Cunha Duarte Justo

Pegadas do Tempo: https://antonio-justo.eu/?p=10342

  1. Em homenagem ao mestre de noviços salesiano, o Pe. Magni, no meu noviciado em Manique do Estoril

 

 

O CONCERTO DOS CÃES ACORRENTADOS

 

Conto fruto do conflito entre Dignidade Humana e o Bem-Estar Animal, ao ser confrontado em férias com o triste latir dos cães

Na remota aldeia Monte Negro, onde o vento sussurra histórias antigas entre as pedras das casas, o crepúsculo não trouxe apenas a noite. Também trouxe o coro dos exilados: um concerto de vozes solitárias que ecoava da parte alta da aldeia até à parte baixa, uma sinfonia de solidão entrelaçada com o nevoeiro que subia pesadamente do vale. Eram os cães da aldeia, acorrentados com correntes enferrujadas ou presos em canis escuros, que entoavam os seus lamentos ao sol que os abandonava.

Vicente, um velho cão pastor da parte baixa da aldeia, cujo pêlo outrora dourado fora engolido pela sujidade e pela tristeza, iniciou o diálogo. O seu uivo, profundo e quebrado, foi um questionamento lançado à escuridão. Da parte alta da aldeia, uma resposta surgiu: um latido mais agudo, mais ansioso, era de Luna, uma galga de olhos melancólicos que vivia acorrentada à soleira de uma propriedade senhorial.

«Outrora», gritou Vicente para a noite, «a dor ardia como um ferro em brasa no meu peito. Sonhava com campos, com caçadas, com o cheiro da terra molhada. O meu único consolo era a tigela com ossos e restos que me atiravam nas horas tardias e sombrias. E eu acreditava que as pessoas ali, atrás das paredes quentes, levavam uma vida de pura felicidade.»

Luna, cuja voz era um fio de som que serpenteava pelo vale, respondeu:

«Eu também acreditava nisso. Mas depois comecei a ver. A minha mansão é magnífica, os meus donos são gente fina e bem-cuidada, mas as paredes têm ouvidos, e eu tenho olhos. Vi a violência doméstica que se esconde por trás das cortinas de seda, ouvi os gritos abafados, as ameaças que pairaram no ar como um mau cheiro. Eles respeitam a minha integridade física, sim, não me batem. Mas apercebi-me de que a dor deles não é menor do que a minha. A compaixão, surge, por vezes, onde menos se espera: do reconhecimento de que a jaula e os cadeados não são só de ferro.»

Vicente refletiu longamente sobre estas palavras.

«É verdade», disse ele finalmente, «mas o erro não justifica o erro. A infelicidade deles não alivia as minhas correntes. Mas a minha dor é mais profunda do que a solidão. Ela vem da invisibilidade. Eles não veem em mim o que eu sou. Eles veem um alarme, um guarda, um hábito. A minha essência, a minha vontade de correr, o meu ritmo de vida, tudo é menosprezado. Eu não desejo ser humano; eu desejo ser um cão perfeito e realizado.»

«Compreendo», sussurrou Luna. «Vejo e observo as festas em casa. As crianças correm para mim e as suas mãos delicadas são como um bálsamo no meu pêlo. Mas depois vão-se embora e a corrente fica. E vejo os cãezinhos de colo da senhora da cidade, adornados com fitas, mimados com guloseimas. São mais amados do que os próprios familiares. É um excesso que confunde e quase nega a natureza de ambos.»

E Luna contou a Vicente sobre uma tarde em que testemunhou uma discussão entre duas senhoras.

Uma delas, com um cãozinho nos braços, exclamou com fervor:

«Esses seres merecem a mesma dignidade que nós! São pessoas não humanas e devemos tratá-las como tal!»

A outra, com uma voz mais calma, mas igualmente firme, respondeu:

«Não se trata de lhes conferir a nossa dignidade. Trata-se de reconhecer o seu valor intrínseco. Respeitá-los, não porque são quase humanos, mas porque são animais: com necessidades, medos e capacidade de sofrer, o que nos impõe um dever moral.»

Luna inclinou a cabeça, como se quisesse compreender o invisível. Nessa discussão, ela viu a raiz da confusão humana.

«Compreendi, Vicente», disse ela na noite seguinte. «As pessoas têm uma capacidade moral que nós não temos. Elas ponderam o bem e o mal. Somos moralmente importantes para elas; a nossa vulnerabilidade, a nossa sensibilidade à dor comprometem-nas. A sua própria vulnerabilidade é diferente, baseada na razão e na consciência. A nossa é simples, física, instintiva. Mas é precisamente por sermos vulneráveis como eles que merecemos respeito.»

«E o que significa respeito?», perguntou Vicente, deixando o seu corpo cansado cair no chão frio.

«Não é dar-nos dignidade humana», explicou Luna. «A dignidade humana é inviolável, é um fim em si mesma. Mas nós merecemos integridade, bem-estar. Respeitar um animal significa não o transformar completamente numa ferramenta, não o reduzir a mera utilidade ou capricho. Significa preservá-lo do sofrimento e conceder-lhe uma vida que corresponda à sua própria natureza. É deixar um cão ser cão, cheirar a terra, correr, ter companheiros e não o rebaixar a criança humana ou a alarme de quatro patas.»

Um silêncio solene pairou sobre Monte Negro. O concerto dos cães tinha cessado, substituído pelo peso de uma verdade mais profunda.

Então Vicente levantou-se, e a corrente tilintou com um som triste e metálico que cortou a noite.

«Então», gritou ele, não com raiva, mas com uma nova clareza, «o meu sofrimento não é por não ser humano. É por me impedirem de ser o que sou. E isso, Luna, é uma falta de ética. É não ver que mesmo o propósito mais útil deve ter um limite moral.»

«Sim», choramingou Luna baixinho. «O caminho a fazer pelos humanos ainda é longo. Esse caminho não deve levar a humanizar-nos, mas sim a serem humanos connosco. Eles precisam de aprender que a grandeza da sua humanidade também é medida pela forma como tratam as criaturas que compartilham com eles o dom de sentir amor, medo, frio e fome.»

Naquela noite, o concerto não recomeçou. Um silêncio pensativo tomou conta de Monte Negro. Era o som de uma esperança nostálgica: a esperança de que um dia as pessoas compreendam que o cuidado não nasce da igualdade, mas da diferença; não daquilo que somos para elas, mas do que elas escolhem ser para nós: guardiãs, não carcereiras; companheiras, não proprietárias. E que a carícia de uma criança, por mais doce que seja, nunca é tão nutritiva para a alma de um cão como o simples e tão frequentemente negado direito de correr livremente sob as estrelas.

António da Cunha Duarte Justo

Pegadas do Tempo: https://antonio-justo.eu/?p=10332

 

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