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Crônica

Sermão pela vida

Mote: CONFLITO – “Por falta de bandeira branca, hasteou a própria vida” – nanoconto de autoria do escritor Viriato Moura.


Sermão pela vida - Gente de Opinião

O uso de bandeiras representativas remonta à Idade Média, época em que cada povo, cada agrupamento militar, cada reinado possuía a sua própria bandeira, colorida ou com o brasão das armas pintado no centro. Foi nessa época que surgiu a ideia de se usar a bandeira branca como símbolo de neutralidade, ou seja, o grupo que não quisesse se envolver em conflitos hasteava uma bandeira branca. Hoje, o significado da bandeira branca evoluiu e é regulamentado pela Convenção de Genebra: seu uso indevido é considerado crime de guerra. Todavia, o símbolo ganhou força e se confunde com a paz, em todos os sentidos, inclusive nas brigas de amor.

Quem viveu os carnavais das décadas de 1970/80 lembra bem de “Bandeira Branca” uma composição romântica de Laércio Alves e Márcio Nunes com melodia e versos tristes, mas que tornou-se, paradoxalmente, o último clássico dos carnavais de outrora, que reverbera até hoje: “Bandeira branca, amor / não posso mais / pela saudade que me invade / eu peço paz...” Foi também um dos últimos sucesso de Dalva de Oliveira

Contudo, em pleno século pandêmico, com ameaça russa de guerra nuclear, o escritor Viriato Moura extrapola todos os significados simbólicos, só possível pela fabulação, e hasteia, na terceira pessoa, uma bandeira humana, viva: − “Por falta de bandeira branca, hasteou a própria vida” − como se dissesse ao mundo: a evolução humana não comporta mais tantas mortes absurdas.

Corpo e pano branco entremeados com a vida, resultando numa bandeira viva, neutra, sem cor, mas bordada com sentimentos, emoção e alteridade, personificando aquele estudante chinês, que em 5 de junho de 1989, postou-se em frente a um comboio de tanques de guerra, em Pequim, na paradoxal Praça da Paz Celestial e, com a mão levantada, pediu que parassem, oferecendo a própria vida como estandarte da paz. Por breves instantes foi atendido; seu gesto entrou para a história, como um símbolo de luta pela paz e atingiu a nascente emotiva de milhares de litros de lágrimas internacionais. Durou pouco, mas abriu um precedente inesquecível.

A bandeira ficcional do personagem de Viriato Moura, em formato de nanoconto, possui um significado tão amplo, que ultrapassa nações, religiões, sistemas de governo, lideranças egocêntricas e até mesmo o próprio personagem.  Não é uma bandeira qualquer, feita com um pano sujo de pólvora, perfurado de balas, um pedaço de morim, usado como cobertura de uma mesa nua de alimentos, um lenço, onde o personagem assoou restos de coronavírus, um lençol velho, marcado com manchas da procriação e do prazer.

É uma bandeira viva com a sensação de sobrevivente, que dá voz à essência das palavras e as espalha ao mundo, como se um novo sermão, o da planície, pedindo o fim de todos os conflitos, mais que um simples fim, uma trégua definitiva, que atinja não só o coletivo, mas também o individual, devolvendo ao ser humano o prazer pela vida. Toda e qualquer bandeira confeccionada pelas fraquezas humanas, centradas no ego e no mal, pode ser vencida pelo tremular do amor ao próximo, hasteado no humano.

Essa narrativa breve, concisa, nos mostra, pelo caminho da literatura minimalista, que sugerir pode ser mais forte do que mostrar, porquanto força o auxílio da interpretação subjetiva, nas pistas sutis da criatividade imaginativa.

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