Sábado, 20 de dezembro de 2025 - 08h25

Valorizar
aquilo que chamam de “sinceridade” e “opinião”, quando articuladas acima da
substância, pode até produzir ignorantes heroicos e imbecis adoráveis, mas
obscurece a importância e a fundamentalidade da competência, do aprendizado e
do pensamento crítico.
Há semanas em que o noticiário nacional parece reescrito por um roteirista que
misturou realismo fantástico com direito penal do improviso, compliance
do jeitinho e processo legislativo em modo tricô e crochê. Um personagem
público tenta burlar medida cautelar como se fosse conserto doméstico. O
Parlamento costura ajustes para aqueles percebidos como aliados e punir quem
lhes parece adversário, como se “princípio” fosse apenas um acessório de
ocasião. Um escândalo bilionário sangra aposentadorias e pensões, e a
indignação coletiva vira, em horas, meme, bordão e briga tribal. Uma
fraude de estelionato, protagonizada por uma autoproclamada vidente, transforma
arte de valor incalculável de Tarsila do Amaral em adereço desprezível,
escorado no chão da sala de um banqueiro, como um objeto qualquer. A cultura
reage como quem assiste a uma novela: comenta, torce, cancela, esquece.
O cerne, porém, não é o caos. Caos sempre houve. O ponto central é o aplauso.
Este, hoje, raramente é prêmio por acerto. Foi transfigurado em bônus por
performance, produtor de engajamento. E performance, no ecossistema da atenção,
não exige verdade: exige impacto. A opinião virou substituto barato do
conhecimento: rápida, autoconfiante, dita “autêntica”. Como toda moeda
inflacionada, circula demais e compra de menos.
Há épocas em que a realidade não pede interpretação: pede legenda. Ainda assim,
não raro, a legenda falha. Não por falta de fatos, mas por excesso de ruído. O
século da informação criou um paradoxo: jamais se teve tanta evidência
disponível e, ao mesmo tempo, tanta disposição social para tratá-la como
inconveniente. A realidade vira incômoda; o incômodo vira ofensa; a ofensa vira
censura; e, num passe de mágica retórica, a ignorância passa a ser vendida como
virtude cívica.
A literatura sempre soube disso e é farta na coleção de tolos. Não o “tolo”
como ofensa, mas como personagem: aquele que erra com uma espécie de pureza,
ora comovente, outrora ridícula. Dom Quixote, em Cervantes, é um delírio com
código de honra: ele se engana, mas se engana em nome de um ideal e é
justamente essa grandeza deslocada, que confunde bacias de barbeiro com elmos
resplandecentes, que o torna inesquecível. O príncipe Myshkin, em Dostoiévski,
é o “idiota” que entra na sala como quem entra numa zona de guerra sem colete:
não por burrice, mas por uma confiança quase religiosa na bondade humana,
pagando caro por isso. Mr. Collins, em Jane Austen, é a caricatura social do
sujeito que confunde deferência com virtude: ele é ridículo porque é
perfeitamente adaptado ao ridículo das convenções. E Policarpo Quaresma, em
Lima Barreto, é o nosso monumento nacional ao idealismo maltratado: um patriota
tão sincero que fica indefeso diante do cinismo institucional.
Esse “tolo” clássico tem uma marca distintiva: ele é trágico porque tem
complexidade; não é apenas performance. Pode ser pedante, ingênuo, excessivo,
mas há algo nele que não se esgota numa caricatura. Ele não é só um erro
ambulante. É uma pergunta viva, encarnada. O tolo literário, no fundo, expõe a
falha do mundo ao redor: a sociedade é que não comporta a delicadeza de
Myshkin; a política é que mastiga Policarpo; a etiqueta daquele tempo e lugar é
que produz Collins; a cultura é que enlouquece Dom Quixote.
A novidade do nosso tempo é outra espécie: o imbecil celebrável. Não o
“ignorante” que aprende, nem o “tolo” que sofre, mas o personagem que faz da
ausência de substância uma estética e da autoconfiança um método. O salto é
qualitativo: do equívoco humano para a negligência intelectual como virtude
pública.
Ignatius, em Uma confraria de tolos, é um marco nessa transição. O personagem
criado por John Kennedy Toole não é apenas um sujeito que não entende o mundo;
é alguém que entende o mundo o suficiente para desprezá-lo com teatralidade,
fazendo de tal desprezo uma blindagem para não encarar a própria mediocridade.
O “eu sou assim” vira argumento filosófico. A pose vira epistemologia. Chance,
o jardineiro criado por Jerzy Kosinski — e magistralmente interpretado no
cinema por Peter Sellers —, é a caricatura perfeita do ecossistema midiático:
um homem quase vazio, que fala sobre jardinagem, e é interpretado como
estadista. Ele não engana; ele é lido. E isso é ainda pior: o problema não é o
que ele diz, mas o que projetam nele.
Eis o coração da romantização: a sociedade passa a tratar falta de densidade
como “leveza”, falta de estudo como “verdade do povo”, recusa em se informar
como “independência”. Cria-se uma moral do atalho: pensar dá trabalho; sentir é
instantâneo. Aprender exige tempo; opinar exige wi-fi. O resultado é uma
cultura que confunde franqueza com competência e barulho com coragem.
Há, inclusive, uma perversão conceitual sofisticada nisso. A democracia depende
da igualdade política, mas não depende da equivalência cognitiva. Ninguém nasce
sabendo e o acesso à informação é desigual. Mas o espaço público não pode
tratar palpite como argumento. O problema é que, na praça pública digital,
argumento passou a ser tratado como “elitismo” e método, como “arrogância”.
Como se estudar fosse humilhar. Como se exigir consistência fosse um ataque
pessoal. Como se a humildade intelectual — esse motor silencioso do
conhecimento — fosse sinal de fraqueza, e não de maturidade.
É aqui que o tema deixa de ser apenas cultural e vira institucional. No
direito, não aceitamos — ao menos em tese, neste tempo de insegurança — decisão
sem fundamentação. A Constituição exige motivação, racionalidade, consistência
mínima. Em administração pública, eficiência não é adorno: é princípio. Em
ciência, hipótese precisa de teste. Só no debate público é que se tolera — e se
premia — a irresponsabilidade cognitiva como se fosse espontaneidade.
O ambiente perfeito para isso é o que podemos chamar de mercado de
sinceridades: um regime em que autenticidade performada produz engajamento e
vale mais do que verificação. O sujeito não precisa estar certo; precisa
parecer “verdadeiro”. E parecer “verdadeiro”, hoje, significa falar com
convicção e com simplicidade agressiva, preferencialmente contra um inimigo abstrato
(“o sistema”, “a mídia”, “os especialistas”, “a ciência”, “o direito”, “os
professores”, “os dados”). É o ressentimento convertido em método.
Quando o noticiário vira desfile de improvisos, é tentador rir. E deve-se rir,
sim: o humor é uma forma de higiene mental. Além disso, faz-nos lembrar as
palavras do eterno Jô Soares, “o final da irreverência é o começo do
reacionarismo”. Mas a sátira só funciona se não nos anestesiar. O riso, quando
vira resignação, deixa de ser arma e vira sedativo. Há um ponto em que a piada
deixa de expor o absurdo e passa a normalizá-lo. O absurdo, então, senta-se na
sala, pede café e vira rotina.
Por isso, é útil voltar à diferença essencial: o tolo literário nos humaniza; o
imbecil contemporâneo nos desobriga. O tolo revela nossa fragilidade; o imbecil
legitima nossa preguiça. O tolo erra tentando ser melhor; o imbecil erra
tentando ser aplaudido. No meio disso, o público troca admiração por
identificação: “ele fala o que eu penso”; “ele é gente como a gente”; “ele é
autêntico”. Como se autenticidade dispensasse consequência.
A romantização da imbecilidade é, no fundo, um pacto confortável: eu finjo que
não preciso saber; você finge que não precisa provar; e todo mundo sai com a
sensação de ter vencido alguma guerra moral idiota. Só que, fora desse teatro,
decisões reais continuam acontecendo: com orçamento, com pena, com política
pública, com regulação, com aposentadoria, com clima, com saúde. E essas
decisões não brotam de curtidas ou compartilhamentos. Elas são tomadas por
fatos, por limites, por causalidades, por incentivos. A realidade é indiferente
à nossa estética do atalho.
Aliás, não faltará quem confunda esse diagnóstico com nostalgia,
conservadorismo, tecnocracia ou “ódio ao povo”. Não é. O povo não é inimigo da
competência; o povo é sua maior vítima quando ela desaparece. O problema não é
o ignorante. É o orgulhoso da ignorância. O problema não é quem não sabe. É
quem passou a tratar “não saber” como identidade moral e, pior, como forma de
superioridade. É a inversão do eixo da responsabilidade: em vez de elevar o
padrão do argumento, rebaixa-se o padrão do mundo.
Ao romantizarmos a imbecilidade, estamos, na verdade, tentando escapar do fardo
da lucidez. Em um mundo de crises políticas, socioculturais e climáticas, olhar
para o “tolo” e chamá-lo de “autêntico” pode ser mecanismo de defesa. O perigo
é que, ao elevarmos a falta de conhecimento ao status de virtude,
deixamos de admirar competência real, aprendizado e, sobretudo, pensamento
crítico, para celebrar a negligência intelectual. Se antes o tolo literário era
um espelho da nossa humanidade perdida, agora o imbecil celebrável corre o
risco de ser o protótipo do nosso futuro desinformado: ruidoso, confiante,
indignado, sempre pronto para um inimigo abstrato e incapaz de reconhecer o
próprio limite.
Noutras palavras, o escândalo maior não é a imbecilidade existir. Ela sempre
existiu. O que mudou é o incentivo e os prêmios. Hoje, a falta de densidade
ganhou narrativa, marketing, estética e palco e passou a ser vendida como
“autenticidade”, amortecida pela “liberdade de pensamento”, como se opinião
fosse salvo-conduto para a irresponsabilidade cognitiva. Isso é uma fraude
moral.
Não se engane: a romantização da imbecilidade não é um fenômeno alheio. Ela é
um pacto de conforto que você assina toda vez que troca o rigor do argumento
pelo prazer do engajamento. Enquanto celebrarmos o vazio disfarçado de
“autenticidade”, estaremos apenas financiando o colapso das instituições que
nos protegem. Quando o orçamento secar, a regulação falhar ou as instituições
colapsarem, a realidade não abrirá uma “caixa de comentários” para você
reclamar. Ela fará apenas uma pergunta, e não será sobre quão “verdadeiro” você
se sentiu, mas se estava preparado para as consequências de ter escolhido o
aplauso em vez da competência.
No teatro do absurdo, o público é o último a sair, e é ele quem limpa o sangue
do chão quando as luzes se apagam. A lucidez não é mais uma opção; é o único
colete salva-vidas que nos resta. Você vai continuar aplaudindo o naufrágio ou
terá a coragem de exigir densidade e excelência?
*Helder
Caldeira é advogado, escritor e pesquisador. Doutorando em Direitos
Fundamentais Civis pela Universidade do Oeste de Santa Catarina (UNOESC),
mestre em Direito pela Universidade Federal de Mato Grosso (UFMT), além de
membro efetivo da Comissão de Estudos Constitucionais da OAB/MT. Autor dos
livros Águas Turvas (2014) e (Quase) Borboleta (2020), além de
coautor de Direitos Fundamentais e Constituição (2023) e Direitos
Humanos Contemporâneos (2023). Contato: helder@heldercaldeira.com.br
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