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O BRASIL NO QUAL VIVEMOS E DEVEMOS MUDAR - Por Frei Betto


 
Frei Betto

O tema desta XI Conferência Nacional de Assistência Social é a “Garantia dos direitos no fortalecimento do SUAS”, o Sistema Único de Assistência Social. Vocês estão aqui para avaliar e aprimorar o 2º Plano Decenal de Assistência Social (2016-2026). Tornar a assistência social acessível a todos os brasileiros.

O 1º Plano Nacional de Assistência Social (2005-2015) foi um avanço. De 2003 a 2009 se consolidou a institucionalização do SUAS: adesão de 99,4% dos municípios; implementou-se o CensoSUAS e o Cadastro Único das Famílias. Em 2015, 30 programas federais utilizaram o Cadastro Único.

Em 2011 se lançou o Plano Brasil Sem Miséria, cujo público alvo eram aqueles que se encontravam em situação de extrema pobreza. O objetivo era que nenhum brasileiro(a) recebesse, a cada mês, menos de R$ 70. De 2011 a 2014, o Plano Brasil Sem Miséria livrou 22 milhões de pessoas da extrema pobreza. E em 2014 o Brasil saiu do Mapa Mundial da Fome, para o qual tende a retornar agora.

Entre 2005 e 2015 houve aumento de 56,6% de famílias beneficiárias do Bolsa Família, o que equivale a 13,9 milhões de famílias. E cresceu em 81% o número de favorecidos pelo Benefício de Prestação Continuada, o que corresponde a 4,2 milhões de famílias.

Agora vocês aqui se reúnem para garantir os avanços do 2º Plano Decenal de Assistência Social (2016-2026). Sabem, contudo, que a conjuntura brasileira sofreu drástica mudança. Um golpe parlamentar, comandado pelo então deputado federal Eduardo Cunha, do PMDB, e hoje encarcerado por corrupção, derrubou a presidente constitucional e democraticamente eleita, Dilma Rousseff. Seu lugar está ocupado por Michel Temer, do PMDB, acusado de graves crimes, e que ainda não é réu perante a Justiça porque a Câmara dos Deputados decidiu, por duas vezes, obstruir a Justiça quanto ao andamento do processo contra ele.

Em um ano e meio de governo golpista, Temer provoca um retrocesso de pelo menos 150 anos no Brasil. Fez aprovar a Emenda Constitucional 95/2016 que congela e reduz os investimentos nas políticas públicas por 20 anos, A Resolução 12/2017 do Conselho Nacional de Assistência Social propôs um orçamento de R$ 59 bilhões para 2018. O Ministério do Planejamento reduziu para R$ 400 milhões, em evidente ação de desmonte do SUAS.

O governo Temer desarticula as bases estruturantes do SUAS pela descontinuidade de\repasse dos recursos; pelo descumprimento do comando único; e ao reforçar a criação do Fundo de Solidariedade nas instâncias estaduais e municipais em detrimento do fundo público estabelecido pela LOAS (Lei Orgânica de Assistência Social) em 1993.

As bases do SUAS são fragilizadas pela implementação de programas pontuais voluntaristas, como o Criança Feliz; pela extinção do Serviço Social nas unidades do INSS; pela desprofissionalização das políticas sociais e a precarização das condições de trabalho de 600 mil pessoas, na maioria mulheres chefes de família.

O governo Temer promove, aceleradamente, o desmonte do Brasil ao reduzir o orçamento do programa Minha Casa, Minha Vida; ao fechar as Farmácias Populares; ao anular o Ciência Sem Fronteira; ao abrir o Pré-Sal ao investimento estrangeiro e, ao mesmo tempo, decretar o fim da obrigatoriedade de participação da Petrobras na exploração do Pré-Sal, o que se decidiu em outubro último.

A reforma do ensino médio foi feita sem qualquer debate com a sociedade. Retirou a obrigatoriedade de matérias como Filosofia e Sociologia, que ensinam a pensar criticamente. Em abril deste ano o MEC ousou passar a tesoura na Base Nacional Curricular e cortar as expressões “identidade de gênero” e “orientação sexual”, como se a ausência delas encobrisse a evidência dos fatos.

O Brasil retrocede quando o governo Temer torna-se cúmplice do trabalho escravo, da invasão de terras indígenas e quilombolas, e libera a venda de nossas terras a estrangeiros, negocia com os EUA a Base de Alcântara, sucateia a FUNAI e os bancos públicos, e implementa uma reforma trabalhista que tira dos trabalhadores brasileiros direitos adquiridos nos últimos 70 anos, e propõe uma reforma da Previdência que sonega direitos e promete insegurança àqueles que labutam pelo progresso desta nação.

A distância que nos caracteriza

A Oxfam Brasil divulgou, em setembro último, o informe “A distância que nos une — um retrato das desigualdades brasileiras.” Entre os dados preocupantes se destaca que apenas seis bilionários brasileiros acumulam riqueza igual à da metade mais pobre da população, cerca de 100 milhões de pessoas.

Apesar dos avanços das políticas sociais na última década, o Brasil ainda é um dos países mais desiguais do mundo. Mais de 16 milhões de pessoas vivem abaixo da linha da pobreza.
Segundo o informe, os 47 milhões de brasileiros que ganham um salário mínimo por mês precisam trabalhar quatro anos para ganhar o mesmo que recebem, em um mês, os privilegiados que formam 1% da população. E demorariam 19 anos para juntar o equivalente a um mês de renda média do segmento 0,1% mais rico.

Se for mantida a tendência dessa injusta distribuição de renda dos últimos 20 anos, as mulheres brasileiras terão renda igual à dos homens somente em 2047, ou seja, daqui a 30 anos. E a população negra conseguirá ganhar o mesmo que a branca somente em 2089, ou seja, daqui a 72 anos!
Se a redução da desigualdade de renda permanecer no ritmo médio constatado desde 1988, o Brasil levará 35 anos para alcançar o atual nível de desigualdade de renda do Uruguai, e 75 anos para alcançar o patamar da Inglaterra.

“Existe uma distância absurda entre a maior parte da população brasileira e 1% mais rico, não apenas em relação à renda e à riqueza, mas também ao acesso a serviços básicos, como saúde e educação. Atacar essa questão é responsabilidade de todos”, ponderou Katia Maia, da Oxfam.

O que já é absurdo, entretanto, pode piorar. A diretora da Oxfam Brasil enfatizou que estimativas do Banco Mundial indicam que, ainda neste ano de 2017, 3,6 milhões de brasileiros devem voltar para a situação de pobreza, devido aos retrocessos do governo Temer em matéria de políticas sociais.

Nosso atual sistema tributário reforça as desigualdades. “O efeito da tributação no Brasil é, no geral, de aumentar a concentração da renda ou, no mínimo, não alterá-la. Trata-se de uma situação já resolvida na maioria dos países desenvolvidos (onde a tributação, de fato, distribui renda), e que compõe barreira estrutural na redução de desigualdades no Brasil.

Segundo Rafael Georges, coordenador de campanhas da Oxfam Brasil, a trajetória de redução de desigualdades, que vinha desde 1988, foi interrompida e o país está hoje “dando muitos passos para trás na garantia de direitos à população”. “Enquanto isso, a concentração de renda e de patrimônio continua intocável. Se não enfrentarmos essa situação, vai ser ruim para todos no país, mas principalmente para quem pouco ou nada tem para se proteger”, afirma.

Recessão

Com a atual recessão, a população brasileira já empobreceu 9,1%, segundo dados do IBGE divulgados na primeira semana de março. A economia retraiu 3,6%. É a mais longa recessão da história do país. O consumo das famílias decresceu 4,2% em relação ao ano passado. O desemprego, que já atinge 13 milhões de pessoas, e o endividamento das famílias, são as principais causas do empobrecimento do brasileiro.

Nau sem rumo, o governo Temer não sabe como sair do atoleiro. Mas, como no naufrágio do Titanic, tenta salvar os camarotes dos ricos com “reformas” que ampliam os privilégios da elite e ferem os direitos dos trabalhadores. Hoje, 18% de nossa população, cerca de 37 milhões de pessoas, vivem com menos de meio salário mínimo por mês, o que equivale a R$ 468,50.

A desigualdade social brasileira acentua a disparidade entre brancos e negros. Entre os 10% mais pobres do país, 75,5% são negros ou pardos. Já os brancos são apenas 23,4%. Na ponta de cima da pirâmide, habitada por 1% da população, a parcela mais rica, a proporção se inverte: 79,7% são brancos, e apenas 17,8% são negros e pardos.

Embora a carga tributária brasileira seja das mais altas do mundo, nosso dinheiro some nos ralos da corrupção e do desgoverno. Os serviços públicos são precários: 34,7% da população não contam com coleta de esgoto; 14,6% não têm água encanada; e 11% não dispõem de coleta de lixo residencial. Depois há quem se espante ao constatar o reaparecimento de enfermidades debeladas há um século, como a febre amarela. Nas 16 mil favelas existentes em nosso país vivem 11 milhões de pessoas, segundo o IBGE.

Com a aprovação da PEC 55, a despesa obrigatória do governo federal com a educação, que era de 18% da receita líquida dos impostos que pagamos, agora cai para 13% nos próximos 10 anos, e para 10% nos próximos 20 anos. Além de mais pobre, a nação está condenada a ficar mais ignorante.

Toda a proteção social oferecida como direito aos brasileiros mais carentes se encontra ameaçada. Ela foi conquistada pela Constituição de 1988, adulterada pela PEC 55. Graças àquela carta cidadã, foram criados o SUS, o Sistema Único de Assistência Social, o Bolsa Família e o Benefício de Prestação Continuada. Também a universalização da educação básica, a ampliação do ensino superior, a expansão da Previdência Social à população rural e aos trabalhadores do setor informal. Tudo isso vem sendo desmontado, do mesmo modo que a Petrobras está sendo “higienizada” para ser privatizada.

Em novembro de 2016, o Congresso aprovou a PEC do Teto dos Gastos Públicos, transformada em emenda constitucional em dezembro. Ela desarticulou os mecanismos constitucionais de vinculação do gasto público federal em educação e saúde, e congelou o conjunto dos gastos sociais nos valores atuais. Estima-se que a despesa primária do governo federal destinada à área social sofrerá redução de 20% para 12% do PIB nos próximos 20 anos.

Em resumo, o Brasil caminha de marcha ré. Não haverá nem como se aproximar da ponte que nos levaria ao futuro. Seguimos rumo ao abismo, a menos que a mobilização social leve o país para novos rumos.

Sonegação e Previdência

Pagar menos impostos é fácil no Brasil. Basta ser empresário, tomar dinheiro emprestado do governo e depois recorrer ao pai de todas as sonegações, o chamado Refis (Programa de Recuperação Fiscal).
Na hora de pagar a dívida, você recorre e o governo negocia em condições mais do que de mãe para filho. Mas não se apresse. Deixe de pagar e aguarde o próximo Refis, pois com certeza os juros serão ainda mais baixos.

O governo brasileiro tem a receber, de impostos atrasado, uns R$ 300 bilhões. Parcela dessa dívida o gato comeu, pois os devedores já faleceram ou as empresas faliram. E quando se deixa de pagar imposto isso significa menos hospitais, menos escolas, menos obras públicas, enfim, menos benefícios para a população.

Como cobrir o buraco nas contas do governo? Temer simplesmente aumentou este ano o PIS/Cofins que pagamos ao botar combustível no carro, o que assegura à Receita uma entrada de R$ 10 bilhões, e meteu a tesoura em mais R$ 5,9 bilhões, corte que significa menos saúde, menos educação etc. Em nome do ajuste fiscal, o presidente já havia cortado R$ 45 bilhões.

Poucos dias antes de a Câmara dos Deputados obstruir a Justiça e impedir que o presidente fosse investigado pelo STF, Temer editou Medida Provisória que livra os produtores rurais de quitar, nos próximos anos, mais de R$ 10 bilhões de impostos. Foi reduzida a alíquota paga por eles ao Funrural. E os ruralistas com dívidas com a União terão descontos nas multas e poderão pagar de forma parcelada.

Para a Associação Nacional dos Auditores Fiscais da Receita Federal do Brasil, a medida retira recursos da Previdência em um momento em que o governo propõe mudanças nas regras de aposentaria para conter o déficit do INSS, e beneficiará grandes empresas.

Segundo números da Receita Federal, somente com o perdão de juros e multas a perda de arrecadação será de R$ 7,6 bilhões em 15 anos, prazo de parcelamento dos débitos. Com a redução da alíquota do Funrural, o governo deixará de receber R$ 4,36 bilhões entre 2018 e 2020. Somadas, as perdas com perdão de juros e multas, e com a redução da alíquota, chegam a R$ 11,96 bilhões. E esse valor pode ser maior se a redução da alíquota vigorar além de 2020.

E ainda dizem que a culpa da falta de dinheiro do governo é da Previdência Social.

Pelos cálculos de Anelize Ruas, diretora de Gestão da Dívida Ativa da União da Procuradoria-Geral da Fazenda Nacional, a soma dos débitos da sonegação fiscal no Brasil é de R$ 1,8 trilhão.

Há 4,3 milhões de devedores. Destes, quase 13 mil (0,3% do total) são grandes devedores, responsáveis por 63,7% de uma dívida de R$ 1,4 trilhão, a não previdenciária. Ela não inclui, por exemplo, os recolhimentos devidos do FGTS.

A Fazenda Nacional considera como “grande devedor” pessoas físicas ou jurídicas responsáveis por débitos maiores que R$ 15 milhões. Os valores do levantamento são referentes a setembro de 2016.
Em dezembro, o presidente Michel Temer e o ministro da Fazenda, Henrique Meirelles, decidiram que parte da dívida tributária das empresas deve ser perdoada.

Anelize Ruas afirmou que há uma tendência, principalmente na última década, de resistência das empresas a pagar impostos: “Quando você olha que 64% da dívida está nas mãos de 13 mil empresas, você fica vendo que não é só a crise econômica que está levando o estoque da dívida a crescer desse jeito”, disse ela.

Além dos cerca de R$ 900 bilhões apontados, o restante –aproximadamente R$ 510 bilhões– é de responsabilidade de outros 4,2 milhões de devedores. O levantamento da Procuradoria Geral da Fazenda Nacional foi apresentado em audiência da Câmara dos Deputados. (Vide http://imguol.com/blogs/52/files/2016/11/relatorio-pgfn-divida-impostos-9nov2016.pdf)

Reforma tributária

Estudos contidos no livro “Tributação e desigualdade” (Rio, Letramentos, Casa do Direito e FGV Direito, 2017) demonstram que, no Brasil, a alíquota do imposto direto cresce na medida em que o rendimento aumenta. Mas isso somente para quem ganha, por ano, de R$ 24,4 mil a R$ 325 mil. Nesses casos, o imposto é de 12%.

Quem ganha mais de R$ 325 mil por ano é beneficiado por aberrações de nosso sistema tributário. A alíquota entra em ritmo de queda, e cai de 12% para 7% para quem ganha anualmente mais de R$ 1,3 milhão.

Por quê? Porque a maior parte dos rendimentos dos mais ricos provém de lucros e dividendos isentos para pessoas físicas!

O resultado é a brutal distorção: a parcela 0,05% da população brasileira (100 mil pessoas) paga, proporcionalmente à sua renda, menos imposto que 5,8 milhões de pessoas que ganham mais de R$ 81,4 mil por ano.

A solução, diz o estudo, não reside apenas em criar alíquotas mais altas para quem ganha mais, o chamado imposto progressivo. É preciso mudar todo o sistema tributário brasileiro.

A maior parte da renda dos 100 mil mais ricos não deriva do trabalho, como acontece com o comum dos mortais, sujeitos à alíquota progressiva. Dois terços dos mais ricos são isentos!

Nosso sistema tributário figura entre os 15 mais injustos do mundo, porque concentra renda no topo da pirâmide social em vez de distribuí-la. Hoje, a carga tributária responde por 33% do PIB.

A Receita Federal cobra muito das empresas, mas quase nada das pessoas físicas e da renda patrimonial dos ricos. Como os empresários exercem poder sobre o governo, obtêm com frequência isenções tributárias e perdões de dívidas.

Criar alíquotas para lucros e dividendos pode resultar na redução de nosso sistema produtivo. O dinheiro migrará da produção para aplicações financeiras.

Já os impostos indiretos, embutidos no consumo de bens e serviços, pesam mais no bolso dos mais pobres. Os 10% mais ricos da população abocanham 47% da renda nacional e respondem por 43,7% da arrecadação. Os 10% mais pobres ficam com apenas 0,7% da renda nacional e respondem por 1,6% da arrecadação.

A tributação indireta sacrifica mais os pobres porque eles não conseguem poupar, enquanto os ricos investem o excedente de seus ganhos no mercado financeiro. Segundo a Fipe (Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas), 53% das famílias brasileiras não conseguem fazer poupança. Apenas 10% das famílias poupam com regularidade. Em média 20% de sua renda anual.

Nos países mais desenvolvidos, que pertencem à OCDE, os mais ricos são tributados de modo mais justo. Os impostos indiretos, embutidos em bens e serviços, respondem, em média, por 34% da arrecadação. No Brasil a mordida do Leão responde por 53%!

A Receita Federal alega que é mais fácil arrecadar os impostos indiretos. Ora, com as novas tecnologias é possível tributar menos o consumo e mais a renda e o patrimônio. Falta é vontade política.

Um estado como São Paulo concede, com frequência, desoneração do ICMS sem prejudicar a arrecadação, o que não podem fazer os estados mais pobres.

Ao comparar a tributação de duas famílias que ganham dois salários mínimos por mês, uma em São Paulo e outra no Pará, constatou-se que a do Pará paga o dobro de impostos sobre alimentos do que a família de São Paulo.

O governo brasileiro não obedece aos princípios de capacidade contributiva, seletividade e progressividade dos impostos, previstos na Constituição de 1988. Segundo o princípio da seletividade, os governos teriam a obrigação de aplicar alíquotas menores a produtos essenciais, como cesta básica. A energia elétrica, um produto essencial, tem tributação alta.

As distorções de nosso sistema tributário afetam a Previdência. A participação dos contribuintes que ganham acima de dez salários mínimos por mês na arrecadação do INSS caiu de 31,5% em 1988 para 2,7% em 2015!

Não falta dinheiro para desenvolver o Brasil. Faltam governo, justiça social e iniciativa privada mais voltada à coletividade.

Ricos pagam menos impostos

O Brasil tem, hoje, 206 milhões de habitantes. Toda a estrutura do Estado, dos tribunais aos recursos para programas sociais, é mantida pelos impostos pagos por 27 milhões de brasileiros. Portanto, pouco mais de 10% da população sustenta, com seus tributos, todo a máquina pública, dos hospitais do SUS aos jantares oferecidos por Temer no Alvorada.

Dos 27 milhões de contribuintes, 13,5 milhões, a metade, recebem, a cada mês, no máximo o equivalente a cinco salários mínimos (R$ 4.685). É muita gente que ganha pouco e, ainda assim, é obrigada a entregar uma fatia ao Leão. E todos os impostos pagos por essa gente corresponde a apenas 1% do que a Receita Federal arrecada por ano.

Um mínimo de justiça da reforma tributária dispensaria esses 13,5 milhões de trabalhadores de pagarem impostos. E isso reverteria em mais saúde, educação, alimentação, enfim, uma vida menos apertada para todos eles.

Quem mais canaliza recursos para o Leão são pouco mais de 2 milhões de pessoas que ganham, por mês, de 20 (R$ 18.740) a 40 salários mínimos (R$ 37.480).

Apenas 0,5% da população economicamente ativa, pouco mais de 1 milhão de pessoas, ganha por mês de 40 a 160 salários mínimos (R$ 149.920).

E acima desses milionários há ainda uma categoria mais privilegiada, segundo dados revelados pela Receita Federal: as 71.440 pessoas que têm renda média, anual, de R$ 4 milhões, e patrimônio calculado em R$ 1,2 trilhão. Graças a elas o Leão abocanha, por ano, cerca de R$ 300 bilhões – 14% da renda total das declarações de IR.

Em 2013, desses super ricos, 52 mil receberam lucros e dividendos isentos de IR. Do total de rendimentos desses bilionários, apenas 35% foram tributados pelo IR de pessoa física. Já na faixa de quem ganha de 3 a 5 salários mínimos, mais de 90% da renda foram abocanhados pelo Leão.

Portanto, fica evidente que, no Brasil, o trabalhador assalariado paga imposto, o que não acontece com os lucros dos bilionários. Alguém poderia objetar: mas todos pagamos IPTU! Sim, mas os imóveis em bairros de classe alta são taxados na mesma proporção dos que se situam em bairros habitados por famílias de baixa renda. E os imóveis rurais não pagam quase nada de IR, além de obterem crédito barato.

Para alcançar uma boa arrecadação sem por a culpa na Previdência, bastaria a Receita Federal cobrar devidamente de 100 mil dos 17 milhões de contribuintes.

Uma reforma tributária deveria, para ser efetiva, isentar todos que ganham, por mês, até 10 salários mínimos (R$ 9.370); adotar o imposto progressivo e taxar mais os ricos, inclusive mudando as regras que permitem a eles isenção e desconto para lucros e dividendos; cobrar Imposto Territorial Rural das propriedades do campo; e tributar as heranças, exceto pequenos valores.

O Brasil tem solução. Faltam apenas vontade política e vergonha na cara.

Cidadania e solidariedade

Qualquer pessoa ou instituição - movimento social, denominação religiosa, ONG, escola, empresa, associação etc - pode e deve promover iniciativas que reforcem a cidadania e a solidariedade: mesas-redondas; campanhas; palestras; mutirão que beneficie, sem assistencialismo, a população mais pobre.

Não há quem não possa fazer um gesto para promover debates em salas de aula sobre as causas da pobreza e os entraves à melhor distribuição de renda; introduzir na escola educação nutricional; promover exposição sobre os direitos dos povos indígenas ou ações de combate ao trabalho escravo e à prostituição infantis; organizar uma horta comunitária; lutar pela melhoria da educação, do acesso a medicamentos seguros e baratos ou abrir um curso de alfabetização de adultos; denunciar o preconceito contra homossexuais e o uso da mulher no estímulo ao consumismo.

É preciso mobilizar a nação em torno de ações concretas que nos permitam construir o "outro Brasil possível". E priorizar, em pleno neoliberalismo que assola o Planeta, valores antagônicos ao individualismo e à competitividade, como o são a cidadania e a solidariedade.

Não é fácil ser cidadão brasileiro. Nascemos como nação-colônia, aprendendo que o estrangeiro é sempre melhor que o nacional. Tivemos o mais longo período de escravidão da América Latina - 350 anos!

Essa submissão atávica está entranhada em nossas veias. Basta alguém se revestir dos símbolos do poder - riqueza, autoridade e ostentação - para ser tratado como se fosse um ser naturalmente superior a seus semelhantes.

Cidadania rima com soberania. É preciso gostar de si próprio para conquistá-la. Ocorre que a globalização detona todos os fundamentos de nossa soberania.

O neoliberalismo nos impõe o Estado mínimo e o mercado máximo, tão livre que paira acima das leis e da decência. As privatizações do patrimônio público (Siderúrgica Nacional, Vale do Rio Doce, Usiminas, sistema de telefonia etc.) são o exemplo maior de dependência de nosso país ao capital privado, em geral estrangeiro. E o que é mais grave: privatizam-se também nossos valores. Corroem nosso espírito cidadão. Estamos

ficando cada vez menos solidários, menos cooperativos, menos participantes.

Até a fé religiosa é privatizada, destituída de sua ressonância social e política. Como se Deus fosse um balcão de atendimento de emergências e mero anabolizante de exaltações espiritualistas que não se traduzem em serviço libertador ao pobre, ao enfermo, ao excluído.

Saída para a crise

É difícil algum novo escândalo de corrupção, nepotismo e tráfico de influência surpreender quem acompanha de perto a política brasileira. O tecido da nossa institucionalidade política esgarçou, carcomido pela podridão. Os eleitores votam, o poder econômico elege e, lá em cima, os eleitos se entendem, se congratulam, se recompensam, e com certeza riem da nossa cara.

Nem por isso devemos descrer na democracia, desde que haja disposição de botar abaixo a plutocracia. A Lava Jato é, nesse sentido, uma iniciativa positiva, malgrado seu risco de também cair na tentação de fazer jogadas partidárias.

O Brasil está nu. E desmoralizado. Os poderes republicanos adotaram o parlamentarismo de fato. Este governa de fato o país. Até o STF se dobrou ao Congresso Nacional.

Poém, se queremos resgatar a democracia é melhor correr o risco com o povo do que pretender solucionar a crise sem ele.

Esperança e utopia

Distopia é o oposto de utopia. O apagar da esperança. Sou da geração que tinha 20 anos na década de 1960. Éramos viciados em utopia. Não queríamos mudar apenas os costumes (revolução sexual, nova gramática da arte etc.). Queríamos mudar o Brasil e o mundo. Corriam em nossas veias valores, ideais, projetos históricos. Ousávamos enfrentar a repressão da ditadura. Inventávamos o futuro. O Brasil cabia em um único adjetivo: novo. O cinema era novo; a bossa, nova; o projeto de desenvolvimento encabeçado por Celso Furtado, igualmente novo.

Vivemos agora em tempos de distopia. Imobilidade, apatia, indiferença. Como Qohélet, autor bíblico do Eclesiastes: “Todas as palavras estão gastas... O que foi é o que será, o que se fez é o que se fará: nada de novo sob o sol!” (1, 8-9).

John Donne (1572-1631) dizia que “nenhum homem é uma ilha”. No reino animal, somos a espécie que mais precisa de cuidado para se tornar autônoma, cerca de 12 anos. No entanto, a cultura da desesperança nos induz a ficar ilhados em nossos confortos, medos ou inseguranças. Sabemos o que não queremos e manifestamos o nosso desagrado, a nossa frustração, até o nosso ódio contra tudo e contra todos nas redes sociais. Não sabemos, porém, o que propor ou buscar.

A crise é civilizatória. O mundo é dominado pela financeirização da economia. Um pequeno grupo de empresas transnacionais tem mais poder do que os Estados. Tudo é pensado em função da acumulação do capital e a preservação da natureza é considerada entrave ao progresso.

O que isso tem a ver com a espiritualidade? Ela é a essência de nossa subjetividade, altar no qual erigimos e adoramos os nossos deuses. Não há ninguém desprovido de espiritualidade. Há, sim, quem a nutre em fontes altruístas, como Buda, Moisés, Jesus ou Maomé, e quem elege o interesse egocêntrico como bem supremo. Nossas opções dependem de nossa espiritualidade.

A mercantilização dos bens da vida e das relações humanas propicia o surgimento de religiões sem teologia, igrejas sem liturgia, fiéis sem caridade. Abraça-se o transcendentalismo que atribui todos os males à luta entre o Bem e o Mal. Inútil buscar as causas dos males na vida social. Há que se resignar à “vontade de Deus” e orar para que o milagre aconteça...

O neoliberalismo dissemina a cultura de que “a história acabou”, nada haverá de mudar, e elege o Estado como culpado de todos os problemas, devido aos gastos excessivos, à corrupção e à politicagem. Assim, aceitamos trocar a liberdade pela segurança, os princípios pelos interesses, o público pelo privado, o bem pelos bens.

Entre os mais pobres, premidos pela imediata preservação da vida biológica, a ausência do Estado (escola, cultura etc.) os leva a buscar cidadania na pertença à igreja, e direitos sociais nos serviços assegurados pelo narcotráfico.

Onde a saída para a esperança? Para os imediatistas, nos avatares. Haverá de irromper um “messias” que fará chover bonança. A Bíblia é rica em períodos de desalento como o que ora atravessamos. Porém, os Profetas sublinham que só haverá saída, como na descrição de Ezequiel 37, se até os mortos puderem recobrar vida e se levantar.

A saída não depende apenas de minha vontade, de meu partido, de meu projeto. Depende de uma obra coletiva embasada em uma nova maneira de pensar e agir. De uma espiritualidade holística, socioambiental, como propõe o papa Francisco na encíclica Louvado sejas.

Por isso, Jesus não teve pressa para que o Reino de Deus, tal como seu Pai quer e a quem rogamos que “venha a nós”, acontecesse logo. Adotou a única atitude que faz da esperança proposta efetiva: organizou um grupo de doze companheiros, que se fizeram 72, que se fizeram 500... Plantou as sementes de um novo projeto civilizatório que se caracteriza, nas relações pessoais, pelo amor e a compaixão; e nas relações sociais, pela partilha dos bens da Terra e dos frutos do trabalho humano.

Se queremos resgatar e aprimorar a democracia brasileira não há outro caminho senão fortalecer o empoderamento popular, ampliando a rede de movimentos sociais, promovendo alfabetização política, e mobilizações na conquista e na defesa de nossos direitos sociais.

Frei Betto é escritor, autor de “Calendário do Poder” (Rocco), entre outros livros.

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